[A Muralha]

 

"Construímos muralhas por todos os lados

para que o olhar não sofresse de imensidão"

— Tiago Fabris Rendelli

 

Ergueram uma muralha no horizonte

de nosso coração enraizado.

Por todos os lados

as pedras tapam

a imensidão furtada

de tuas raízes soníferas.

Onde estará a vastidão do mundo

já que tu és tão pequeno?

Tu és tu mesmo quando repousas

o peso da miséria na piedade de terceiros?

Tu és tu mesmo quando

persegues o crepúsculo de tua hora

numa ânsia nem do dia nem da noite?

Quando rodeias em dança

a cabeça do Batista

festejando o esquartejamento

dos santos no século?

Quando te vingas dos pássaros

que escrevem no céu

teu nome conjugado

com a morte?

Quando vais ao mercado

ofertar teu sexo de máquina por

bananas nanicas?

Quando beijas alguém não por paixão

mas para povoar, num desespero,

teu atiçado desejo miserável?

Tu és tu mesmo quando o sono

quebra teu dente

e numa fome de sonâmbulo

te empanturras das fatias lazarentas

de teu espírito moderno?

Tu és tu mesmo

quando te omites de ti?

Quando te afugentas da febre

que amanhece tua alma trancafiada?

 

[Fresta]

(Que paixões cantam os pássaros

para além desses muros?

De que brincam as crianças

que correm por essa vastidão?

Quais as novas cores

desse céu de aquarela?

Que desenhos rabiscam

as nuvens de lá?)

 

Ide! Eu sou a Dinamite

A dilacerar teus estreitos limites

A predar a pedra

que edifica tua ninharia

A lançar veredas

que te lavem os olhos.

 

Se Creres, hás de despertar

e levantar quando ouvires:

"— Lázaro, vem para fora".

 

 

 

 

 

 

Salmo do Abandono

 

 

o Teu corpo, Senhor,

é uma escadaria interminável

que se pode guardar

na despensa da cozinha

e às vezes encontrá-lo

distraído

lavando a alface

com a barriga

encostada na pia,

cozinhando o tempo

enquanto rezo:

bem-aventurados os que passam fome

mesmo se fartando com Teus sanduíches.

 

os adolescentes empinam papagaios

até o Teu ombro, Senhor,

retornarão eles com Tua língua

pendurada na rabiola?

poderemos finalmente aprender

o encanto de Teu alfabeto?

será a Tua voz

uma porta rangendo?

 

Tua lanterna mágica

escurece meu silêncio

descubro uma multidão dançando

no salão de meu esqueleto

não quero a amizade

de manequins

nem amigos caindo como

meteoros

da beira dos pontilhões:

nossas falsas constelações.

já não basta de tarja preta

cartas de amor, perdões renegados

e tanta técnica

nos restarão ainda intermináveis

banhos de Coca-Cola?

será nosso corpo

essa pia entupida?

 

quero ajudar a soprar, Senhor,

as Tuas trombetas finais

quero nadar na rachadura

do céu impossível

vejo o deserto de São Paulo

como o mais belo castigo

Anhanguera desmata uma rodovia

em meu coração

estou só e viajo

de minha extinção

em linha reta

até o Teu abandono.

 

 

 

 

 

 

A Queimada

 

 

Tentei avisar da queimada

mas é sempre tarde

quando o vento esculpe

cinzas em nossa língua.

É sempre cedo para descobrir

as pedras atrás do olho

e o porquê de nunca chorar.

Quem traz o espelho

no corpo deve calar-se

não há barulho algum

no reflexo do fogo.

As palavras não ditas

são a fuligem da boca

dessas deve-se arrepender.

Tentei avisar da queimada

mas os anjos tiveram medo

de revelar meu sinal

às custas de uma asa incendiada.

Desisti de orar no templo

de seu corpo sacrificado.

O pó jamais volta

a ser brasa.

Revirei sua carne

como quem desenterra um cadáver.

Provei de suas entranhas

no desencontro dum mês a gosto.

Quem se esqueceu do sal?

Quando envenenaram nosso cio?

Tentei avisar da queimada

depois preferi que não soubesse.

Embrulhei-me num relâmpago.

Chovi. Fiz o mato

matar nossa horta.

 

 

 

 

 

 

Poema Abandonado

 

 

Instruções de desuso:

 

a) regar o rio três vezes ao dia e com especial zelo em feriados militares;
b) esquecer uma utopia na engorda a fim de espernear pelo estatuto dos parafusos ou estatística da tolice, tanto faz;
c) contar uma por uma as pernas do mundo para descobrir como fugir sem sair do lugar;
d) estender os olhos no varal e justificar a amargura seca pela ausência de lágrimas;
e) plantar dinamites antes de começar a horta é a melhor maneira de dizimar gafanhotos e o amor;
f) ignorar a indisposição para rezar tentando descobrir como a poeira se junta por conta própria se não tem alma ou sua predileção pelos retratos de família e quinas da saudade;
g) visitar o manicômio às terças para obter a previsão do tempo e desenhar a giz, sob tempestade, os filhos espúrios da América;
h) esperar a menstruação da pátria descascando uma laranja. Com as cores inventar o poente do descaso;
i) enterrar um pardal vivo. Dar-lhe o nome de Judas e admitir-se inocente;
j) desistir de curar a doença das pétalas secas. Comprar flores de plástico pela internet;
k) jamais inventar uma solução para pesadelos;
l) incendiar formigueiros quando criança é revelar aos adultos que a ordem não passa de um subterfúgio para abolir a liberdade em nome da decência. De quem?
m) causar inveja aos anjos decifrando o enigma dos corpos, no outro dia constatar amnésia e se ver livre de conclusões;
n) esquecer que se existe não é fugir à vida, senão toma-la para si sem senha;
o) dançar a melodia do abandono ou sintonizar o chiado do amor com o dos venenos é justamente o que

 

 

 

 

 

Agulha Roxa

 

 

Eu sou a agulha roxa

que enfiastes no meio da coxa

Asfixio teu rebento sujo

— ele bole com o diabo —

com entranhas faço cólera

te bendigo ao avesso

Eu fui a agulha roxa

que martelastes no meio da coxa

Vendi a estrela de teu útero

aboli teu céu abandonado

jamais verás novamente pipas ou anjos

manchei de coral teu azul

assim falece minha cor

Eu fui a agulha roxa

que enfiastes no meio da coxa

Torci os olhos do infante

e bebi suas lágrimas

Meu caminho escuro

é aquele que cega

Meu beijo agudo

é aquele que nega

Eu fui a agulha roxa

que martelastes no meio da coxa

vi tuas pernas vomitarem a vida

vi a morte em teu trópico

fiz do ventre a cova.

 

 

 

 

 

 

Itinerário de balões

 

 

Impossível ouvir o colibri

que enferruja na garganta,

entoar a melodia das orações

e confessar tolices ou covardias.

Um dia minhas mãos

vão crescer para balões

deixarei de ser o inimigo das alturas

e me chamarei amante das vertigens.

Jamais confunda esse nome

que nasce sempre em agonia

com as árvores que choram

no inferno de outubro:

Dali brotarão borboletas de pranto

não consolo para nosso desespero.

Não há remédio para

esse mistério pisoteado

nem júbilo algum neste

calendário de catástrofes.

Poderia chamar de aurora

de cruz de água

Lavar a angústia e o lamento

como quem enxagua pés imundos

Despregar o riso do medo

o peso e o tédio dos adultos

Mas nome algum é possível

quando se perdeu a carne

em algum vendaval de junho

ou nos tambores do carnaval,

quando o medo se acumula em nós

como uma sucessão de fraquezas

presas em nosso espelho pessoal.

Impossível algum batismo se os frutos

maduros se abrem para corações podres

se despencam como balões estourados.

Minha boca crescia numa liberdade de cavalos

no entanto esqueci como falar em línguas

Apenas pude inventar propagandas para fanáticos

e fazer publicidade com meu corpo obsceno.

Acabei desistindo de me salvar

como fizeram todos vocês.

Mesmo assim feri os homens

com cicatrizes virtuais

e acabei coletando uma coragem

para semear sertões

uma vontade de soltar balões

para subirem além de Deus.

Aboli as ofertas que nos apartam

— Não há o que buscar no futuro —

por isso imitei uma técnica antiga:

enchi o vazio com o silêncio de um sopro

 

 

 

 

 

 

Meteorologia dos Corpos

 

 

Nenhum dilúvio limpará esse ódio

haverá sempre uma vingança justa

sempre uma revolta necessária.

Qualquer apelo é inútil

rezar nem se fala.

Não há onde esconder esse desespero

As crianças não cabem nos bolsos

e ainda precisam empilhar corpos

como os brinquedos de uma guerra.

Um olho nunca será uma bolinha de gude,

uma amarelinha não se pula sobre cadáveres.

O único céu é o da boca

quieta como um dia nublado

em que a chuva encontra o silêncio

que abandonou a carne.

Sangue não é urucum

para pintar o rosto da cidade

com pavor e medo.

Nem tente recostar seu rosto

nessas bochechas que desmancham,

qualquer carinho é um crime

toda empatia uma cumplicidade.

Do telhado do país

a vertigem das gotas,

em vão esfrega essas mãos:

água não lava o horror.

No Jornal Nacional tudo será

paz e progresso

e a previsão do tempo

indicará estiagem

seca das lágrimas

racionamento da saudade.

A vida escorre confundindo

choro com chorume...

Daqui algum tempo,

quando o sol evaporar o medo

o ódio grudará nas nuvens

escurecendo o céu

e novamente seremos

mortos

órfãos

ou cúmplices.

 

 

 

 

 

 

Poema Absurdo

                     

 

 I

              

olho lacrado

óleo muro

condenado olho

tapado fusco

olho escuro

limo musgo

olho o absurdo guardado no bolso

do coração onde esconde-se

uma dúvida: o pesadelo

cai no hábito como horizonte

para onde olham os girassóis

(a colisão do olho do sol

   com a escuridão do homem)

      o limite limita

            o limite

          e de tanto

       reflete emite

     o excesso imita

          o escasso

(como por exemplo, na cidade:

uma margem encontra

outra margem em seu extremo

na alma: o olho que tanto amou seca

e ostenta falso brilhante

ou no corpo: a vagina morde

a boca; no contrário mora o beijo)

de ponta cabeça o céu

é abismo e mesmo o

mundo não cai

ou flutua

hoje mesmo se esconde

em algum inédito

num abandono

ou na fresta do olvido

 

porque há tanto sono no país?

 

 

II

 

Fingir-se de anjo

seria um apelo desesperado

sabotar o tempo

e cortar legumes como se

   a vida fosse eterna

       e tudo coubesse

       no almoço de um só dia

 

Fabricar meninices

subir em árvores ao invés de prédios

provocar apagão na cidade coletando

lâmpadas como antigas estrelas

 

costurar um eclipse na bandeira

seria o mais honesto e

talvez

   a única saída

confiscar a constelação

     dos estados

e hastear o apocalipse

   no 7 de setembro

nosso dever cívico

 

Mas

no fim

uma semana e seriam tédio

concretariam as pitangueiras

inventando a arquitetura do descaso

odiariam as asas e enforcariam

    Deus por criar as penas

         mas não pode haver pena alguma

     dos que escolhem a servidão

sem colher nenhum espanto

 

 

 

 

 

 

Interior Vermelho

 

 

sempre abri essa porta amarela

mas nunca pensei que veria seu perfil

estampado na parede como um cotidiano

que insiste em fugir da paisagem.

lembro de quando você fugia

como o jornal foge do vento

isso era quando as maçãs

enchiam nossa mesa azul

como um estúpido enfeite

que insiste em apodrecer.

era engraçado, mas reparei ali

o princípio de nosso amor:

era repleto de vermelho

crescia para decorar uma mesa

onde ninguém jamais se sentou

depois decompunha como as coisas

sem importância alguma.

vez ou outra nossos ouvidos

eram dois barulhos

sem dúvida os relâmpagos

mordiam nossas bocas

e não havia um interior mais vermelho

que a tempestade do rancor

essa que inundava de riscos

nossa contínua descrença no amor.

 

 

 

 

 

 

Poema do Tempo

 

 

O tempo nunca é o mesmo.

Instantaneamente pode-se subir

a incrível escadaria dos corpos

ou passar a eternidade carregando

a pedra do coração acima do perdão.

 

O tempo nunca é o mesmo

tempo que leva as mesmas coisas.

Não é à toa que uma laranja

apodrece antes das outras e

a fruteira dura mais de uma feira.

Uma pessoa não é a mesma

depois de abrir uma janela

nem a paisagem é a mesma

ainda que se abra a janela todas as manhãs.

 

O tempo não é o mesmo

quando se pinta com carvão

a mágica noite da carne

ou se aguarda o fim

sentado no tédio

colhendo libélulas de mentira.

 

O tempo nunca é o mesmo

até para os mesmos acontecimentos:

o café coa mais rápido

quando a quarta está quieta

do que numa segunda, mesmo muda.

O sol desaparece mais veloz

quando nos apaixonamos pelas sombras

e tudo é noite mais depressa

de propósito

e a noite não passa nunca.

 

O tempo nunca é o mesmo.

Ainda que um encontro

seja marcado na mesma hora

cada um chegará num tempo diferente:

este pode ser eternamente um sorriso louco

aquele acaricia para sempre sua desgraça.

Ambos chegam às 3 no café

cada um em seu tempo:

um demente sorrindo às 3

outro carinhoso e perverso às 3.

Na mesma hora se encontram

em tempos desencontrados.

 

O tempo nunca é o mesmo

tempo que dura o tempo

que bate em nossas caras.

Hoje o tempo bateu e escrevi um poema.

Ontem eu estava morto

e poema não existia.

O tempo nasce pra mim

nunca sendo o mesmo.

 

 

 

 

[imagens ©matt wood]

 

 
 
 

Pedro Spigolon (Araras/SP, 1992). Do signo do fogo. Quando criança teve catapora, como quase todas as crianças. Aprendeu a cavalgar no sítio de seu avô. Graduou-se bacharel em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas. Em 2015, publicou espanto, seu primeiro livro de poesia. Tem poemas na revista literária euOnça e na antologia do Jornal RelevO. Já morreu diversas vezes nesta vida. Usa a poesia para dar corpo à sua imaginação. Mais aqui: www.pedrospigolon.com.br | www.facebook.com/oespanto.