para falantes doutras línguas

 

                                      [o dicionário num seis de janeiro]

                                      - com Nathaly Hanemann

 

saudade

 

sau da de

 

nome

a depender da edição

substantivo

 

feminino singular

 

um

 

mito do labirinto

desses criados e regidos

por essa entidade

 

que aos olhos

ao tato

nega

o que à imaginação reitera

que te lembra de não feitas

revisitadas viagens

embarga teus aviões imaginados

esconde malas não aprontadas

pesadas já do que não cabe

que divulga na tua timeline

um evento que já passou

que coloca na tua mão papéis

com histórias inescritas

te faz rever tudo o que é entrelinha

que passeia pelo punho do velho violonista

as peças já até decoradas

mas crava com a dor da artrite

a incapacidade de executá-las

que te coloca uma outra última vez

frente ao massacre que extingue

o último dos samurais

na quase lágrima derramada chorar

todo o silêncio de vidas passivas

impotência

não poder correr dar um último abraço

que te faz dar murro em ponta de porta

órfã de fechadura

 

onde será que ela guarda essas coisas

qual será a gaveta mais bonita

 

de guarda há distância

afiada tipo navalha

 

atadura que não estanca nada

essa foto na palma

há espaços ainda

em tempo de serem jamais

uma derradeira vez habitados

 

a cada seis de qualquer mês

um pouco de janeiro

pra fazer valer essa coisa

que se faz taxa sobre os devaneios

pagar pelos próprios sonhos

pesadelo

 

ah saudade e seus subprodutos

 

no mais metáforas e chinelas

já há muito pisoteadas

tinta e papel

mais nada

crescendo em campos no sul

de portugal

 

 

 

 

 

 

total eclipse of the heart

 

                                     

                                      para Gam Marfinati

 

 

vermelho

 

vivo desligamento de um sol

vivo

 

o que é que fica do que passa

tem vez que o melhor lugar pra sentar é de fora

do tempo

 

vermelho

 

entrementes

corre ali ver a previsão

do evento

quiçá nuvens esparsas

 

 

 

 

 

 

hóstia

 

 

"Você daria um osso de plástico a um cão faminto?"

(Linus van Pelt)

 

às bocas

de carne sedentas

só restos de migalhas

abstratas

hipóteses do pão

e a fome

em placebo saciada

 

 

 

 

 

 

lágrima

 

materialização da incontinência

sentimental

da imaterial irrealidade

que é

a alma

quando a gente cede à sede

e chega quase enche um copo

de corpo

 

um choro vale tanto quanto outro

 

e derramá-la

 

 

 

 

 

 

intranquilidade

 

 

                                      para Lucas Bronzatto, autor dos "Cantos Tortos"

 

sonho incômodo

 

nele éramos todos amigos

próximos

confinados em cômodos

separados de uma mesma casa

que nós

isolavam e excluíam

uns dos outros

 

um pobre inseto coitado

levava de cela em cela

um barbante que se tornava elo

esticado e amarrado no prego ali do lado

pra cada verso pensado um toque

no barbante que reverberava

por cada canto torto

dos sujos e apertados quartos

 

ia com o cuidado

de se conter na ideia

linha complexa

curta por outro lado

que não excedesse o trajeto entre verso

e horário

 

pra segurar o poema só palma aberta

como um mal me quer bem me quer inverso

da mão de cada poeta em verso uma pétala

ressarcida

às flores de todos

os tempos

 

vai já longe

inseto

me despeço

com o perdão da ingênua ousadia que é lhe ter

e me oferecer pra si

irmão

um incômodo

 

como fosse um heterônimo

 

 

 

 

 

 

dos segredos que partilho com ninguém

 

 

                                      para Letícia Leão

 

de todas não há

distância que talhe

mais forte

corte inestancável

que a despresença

tem multidão que é só

amontoado sem gente

 

e tudo

o que verte do olho

descortina segredos

ingastada procura

da cortininha da vista

a pálpebra nula

 

há impresenças tão ou mais bonitas

que muita física ausência

 

e mais

a distância tolhe

que os olhos te olhem

mais te ver a cada piscar

pelos lábios

do olhar te tomar

 

 

 

 

 

 

orion

 

                                      [em um riff do Metallica]

 

                                      para Paulo Medina, Rafael Barbosa e Felipe Lima

 

sem medo sentir

tocar

uma constelação

por algumas oitavas

trilhá-la

com as pontas dos dedos

 

culpar estrelas

ou temê-las

é pouco e é fraco

 

conjurá-las

sem dizer palavra

 

baixo

bateria e guitarra

 

solos

 

compondo universos

aos modos gregos

em cada um

um braço de orion

e possibilidades

 

abraçar

ou estilhaçar os astros

 

 

 

 

 

 

do fundamentalismo de um lar

 

 

mariazinha cresceu

em uma casa bem família

com pai de família

na patente mais alta

bem cidadão de bem

 

firmemente orientada

a ser mulher extremamente

direita

docilmente

pela voz materna domesticada

 

seja vaso e escrava

mais nada

 

mais ou menos

quando deixava de ser menina

se percebeu

gostando de meninas

 

a mulher que nela se precipitava

divagou sobre as reações

do tal lá do patente alta

algumas gravadas no espelho

por vezes em segredo

negado

rosto de mãe

trincado pela mão de macho

 

no quarto sozinha

enquanto a corda terminava de estrangulá-la

seu último sopro aliviou

 

já nem mulher nem menina

passa agora

a mais nada

 

e desabitou a casa

 

 

 

 

 

 

vulgar display of power

 

"That's much too vulgar display of power, Karras".

[Regan MacNeil/The Demon]

 

"You're making us fucking hostiles".

[Pantera]

 

sempre achei muita baixeza

disfarçar anzol

de minhoca

e arregaçar boca

de peixe

 

até o diabo

que é ruim sabe

 

pra muita gente tanto fez tanto faz

mas vem hora

que peixe se enche

 

 

 

 

 

 

cálice entornado

 

 

ficar só não é tão fardo

repara

que em muito solitário

 

cala a boca

 

há um pouco de

há um não eco

que a ele mesmo responde

 

não calo

 

 

 

 

 

 

amarelinha

 

[nessa pedrinha jogada por Daniel Tossato:

"Saudades de quando a felicidade era desenhada no chão..."]

 

 

céu inferno

 

no meio

terra

batida e brincada

caminhos

riscados pisados pulados

idos e voltados

mas escritos

onde não chegam pra apagá-los

num chão de memória que pisoteia

a sola do tempo

no pé de criança o pó de lembrança

que os caminhos que me trilham

têm sempre à mão

um caco de telha ou giz

ou uma lasca de tijolo baiano

o que seja

prontos pro rabisco

céu e inferno estirados na mesma altura

no meio

saudade em particípio

 

 

 

 

 

 

smultronstället

 

                                      [en film av Ingmar Bergman]

 

 

foi acusado de culpa

disse um deles

papo de heterônimos em um balcão

de memória qualquer

 

uma conquista perfeita professor

 

qual será a pena

 

a pena de sempre certamente

 

a de sempre

 

solidão

 

a solidão

 

exatamente solidão

 

não podemos ser clementes

 

não me pergunte não sei

 

precisar

lugar de remissão

em um canteiro de morangos

silvestres reminiscências

nem sempre o tempo é de colheita

 

 

 

 

[imagens ©ramin haerizadeh]

 

 

 
 
Ricardo Escudeiro (Santo André/SP, 1984). É autor do livro de poemas tempo espaço re tratos (Editora Patuá, 2014). Graduado em Letras na USP. Possui publicações em mídias digitais e impressas: site da Revista CULT, Mallarmargens — Revista de Poesia e Arte Contemporânea, Revista Nefelibata, Revista Gente de Palavra, Revista SAMIZDAT, 7faces caderno-revista de poesia, Revista Soletras (Moçambique). Participou do Espaço Literatura da 13ª Feira Cultural Preta.