Noturno do Chile. Autor, Roberto Bolaño. Um livro. A história de uma vida e suas contradições. 118 páginas. Tudo em um único parágrafo.  O narrador enxergando sua morte, que se aproxima. Um monólogo visceral que traz neste longo parágrafo um sentido de urgência angustiante. O narrador, Sebastián Urrutia Lacroix, escritor, crítico literário e padre-querendo-abandonar-a-batina, descreve seu convívio com os  principais escritores chilenos da década de 70 (inclui-se nesse círculo o poeta Pablo Neruda). Ele é apresentado a esse ambiente intelectualizado pela lente do maior crítico literário chileno, o "célebre"  Farewell, que carrega a despedida no próprio nome. É em tom de despedida que Sebastián busca explicar sua vida, em uma espécie de confessionário, no qual quem o ouve é o leitor (que poderá perdoá-lo ou não). "Eu me chamo Sebastián Urrutia Lacroix. Sou chileno. (...) Eu não procuro confronto, nunca procurei, procuro a paz, a responsabilidade dos atos, das palavras e dos silêncios". A confissão traz consigo culpa. Sebastián silenciou quando poderia falar. E fala agora sobre o silêncio que o calou e o calejou. E padre, pregador da paz, não foi, na cruel ditadura do general Pinochet, pacífico; foi passivo. Não reclama da ditadura, não protesta contra ela: lê os autores gregos. Faz crítica literária, mas não critica a sociedade chilena sob Pinochet. É convidado por dois personagens estranhos, o senhor Odem e o senhor Oidó, a dar aulas de marxismo ao general Pinochet. E note o anagrama formado pelos nomes dos estranhos (medo e ódio), e Sebastián aceita a tarefa e ensina teorias marxistas a Pinochet e tem medo dele e o acha simpático. E frequenta saraus literários em uma mansão. E descobre que, nesta mansão, com o consentimento do dono da casa, comunistas são torturados. E Sebastián lê livros e escreve poemas e críticas literárias. Mas "não há consolo nos livros". E Sebastián lê os gregos como quem vê o prenúncio de uma tragédia grega no Chile. E há o toque de recolher à noite. E à noite acontecem os saraus. E Sebastián silencia. E, no silêncio calado da noite, dá aulas para Pinochet. A noite no Chile é escura e melancólica como um noturno tocado no piano de Chopin. "Para mim as coisas iam bem, mas para a pátria não iam bem". O Chile se transformava: de Allende para Pinochet. A poesia de Sebastián se transformava: "de angelical a demoníaca". No Noturno do Chile, os porões. O "noturno" do título desta novela, portanto, remete à melancolia da música de Chopin e à escuridão da noite em que tudo é sombra.  "Pra que serve a vida, pra que servem os livros, são apenas sombras". Escuras sombras. "As fardas brilhavam, ora como cartões coloridos, ora como um bosque em movimento. Minha batina negra, mais que ampla, pareceu absorver num segundo toda a gama de cores". Sebastián não quer mais ser padre. Mas não tira a batina, que lhe serve de escudo. E suas resenhas e poemas são lidos. Há tortura recolhida nos quartos escondidos da mansão onde intelectuais discutem literatura. E Sebastián não protesta: reza. Será tudo obra de Deus, Opus Dei? E entrega a Pinochet o veneno-remédio que é a arma dos opositores ao regime: O Capital, Engels, Lênin, Trotsky, Stalin, Mao, Tito e Fidel Castro. !Hasta la Victoria! E Roberto Bolaño, escritor chileno reconhecido internacionalmente, traz em seu Noturno do Chile uma reflexão sobre o próprio ato de escrever. E Sebastián é pintado por Bolaño com um quê de tintura autobiográfica, de quem esteve lá e sofreu nos porões escuros de DOI CODIs e Fleurys do país vizinho. Bolaño foi preso no Chile logo após o golpe de Pinochet por apoiar o governo socialista de Allende. Suspeito de ser terrorista, foi solto ao ser reconhecido por dois guardas da prisão, que haviam sido colegas de escola dele. E o Chile hoje é uma democracia sadia. Pinochet está morto. Roberto Bolaño está morto (morreu prematuramente aos 50 anos). E Sebastián  Urrutia Lacroix agoniza sua novela esmagada nesse parágrafo. É num sopro de ar sufocado que a leitura de Noturno do Chile flui. E traz a nós, brasileiros, a sensação de ver, na escuridão do Chile, uma História que é prima da nossa História recente. Também somos um parágrafo localizado ao sul de Equador.

 

E a última linha do livro é o segundo parágrafo da novela de Bolaño. Vale a pena rever essa história.

 

 

 

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O livro: Roberto Bolaño. Noturno do Chile.

São Paulo: Companhia das Letras, 2000, 115 págs., R$ 37,90.

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março, 2016