Ao conjunto de imagens, fantasias e pensamentos que se apresentam à mente durante o sono, dá-se o nome de sonho. Ao mesmo conjunto de devaneios, na ficção literária, dá-se o nome de poesia. Se tal sucessão de planos, ainda que absurdos e sem coerência aparente, for definida e ordenada em sequência alfabética, dá-se o nome de dicionário. A um dicionário de sonhos, o premiado poeta e escritor César Magalhães Borges deu o colorido título de Dicionírico, seu mais novo livro, cujo nome completo é Dicionírico, Prosa, Poesia e Riso (de A a Z), publicado pela editora Pasavento. Com o ambicioso conceito de organizar o caos onírico de um mundo de fantasias, Borges tenta trazer à luz em "linguagem de dia de semana", como dizia Guimarães Rosa, aquilo que é típico da arte, da brincadeira, da fantasia, o que, em última instância, é (para ficarmos no universo lexical do dicionário) sinônimo de realidade.
O livro é uma compilação de textos, os quais tornam complexa a tentativa de encaixá-lo em um gênero "puro sangue". Estamos diante de um livro híbrido, composto de poemas, contos e crônicas, escritos com leveza, conectados por um humor gracioso e inteligente, embrulhado em uma comicidade quase pueril. Neste dicionário onírico, César Magalhães Borges convida o leitor a percorrer o livro como quem se prepara para brincar, para se divertir. O projeto gráfico e as ilustrações de Fausto Bergocce constroem um casamento harmônico com a escrita de César, colocando ordem cartesiana em universos surreais. Dicionírico é construído com a junção de dicotomias, já que a ordem é apenas aparente, pois, embora à letra A se siga a B, à B se siga C, caminhando desta forma até o final do alfabeto, as letras, todas elas, quebram, para os olhos do leitor, a previsibilidade, pois os enredos nunca são óbvios, fazendo com que mergulhemos em um mundo espelhado, escrito com sonhos concretos e com realidades voláteis, como no poema "Pomares":
Adão e Eva
Cometeram o pecado original.
Tudo o que se seguiu, desde então,
Foi plágio!
A leveza do livro é também aparente. Ela existe, sim, mas não passa de uma casca, uma superfície doce, uma isca que atrai o leitor a morder mais e a descobrir, não sem surpresas, a seriedade escondida por trás de uma brincadeira. Tem-se a impressão de que o livro é infantil, mas a brincadeira ganha tons dramáticos em alguns sonhos. No universo onírico e dionisíaco do paulista Borges (ironicamente xará do argentino famoso), existe uma tentativa de organizá-lo, como quem monta um quebra-cabeça, arquivando os sonhos em ordem alfabética. As letras deste abecedário são coloridas, as ilustrações têm cores, o verso da página que inicia cada letra é verde. Seria isso uma sutil referência ao Palmeiras, time do poeta Magalhães Borges? Ou uma leve lembrança verde-oliva militar que ditou no Brasil, por 20 anos, as regras em uma sangrenta ditadura? O riso aqui é mais que um léxico dicionarizado; é, talvez, a doce metáfora que, com a arma da palavra, desafia e apaga o fogo do invisível fuzil apontado para o leitor.
A leveza ácida na qual os textos são tecidos sai da dramática voz de um eu lírico e de narradores em primeira e em terceira pessoas em achados poéticos e aforismos que tecem críticas agudas em prosa e em versos aliterados, versos brancos, versos livres, fixos, encadeados em hai kais, enraizados em caules, como flores no oásis, que surgem no meio de em um deserto. Dicionírico, Prosa, Poesia e Riso (de A a Z), aliás, não tem prefácio nem posfácio; tem um "interfácio", localizado no meio do abecedário, no meio da letra M, décima terceira letra do nosso alfabeto de vinte e seis letras. Número 13, mau presságio? Mais uma brincadeira escondida nas minúsculas letras deste maiúsculo sonho. César escreve com sotaque roqueiro, e o livro pode ser lido como quem ouve um disco de vinil ou um CD com faixas de A a Z (tem até uma "bonus track", após a letra Z, chamada no livro de "Bônus Trecos").
Com textos escritos entre 1986 e 2015, CMB faz, através de tipos e questionamentos políticos e sociais, um apanhado das transformações e das influências pelas quais o Brasil passou a partir do quarto final do século 20, especificamente após a redemocratização, até os dias atuais, em que, ironicamente, se discute se a democracia aqui foi colocada em cheque. Neste sentido, Dicionírico, com sua proposta de começo, meio e fim (não necessariamente nesta ordem) compreende um ciclo.
Sonho e realidade dialogam bem, embora exista certa ingenuidade em alguns momentos. Às vezes há excesso de didatismo, às vezes César oferece ao leitor mais do que o necessário, exagerando no tempero, como, por exemplo, no poema "Quebra-cabeças", montado em partes separadas e distribuídas na frente da página, seguido de sua "resolução" no verso da mesma página. Pequenos lapsos que desaparecem no todo do livro, carregado de "definições" instigantes, como:
São Tomé das Letras... só acredito... lendo.
É exatamente como em uma brincadeira, na qual temos que acreditar no faz-de-conta e suspender a descrença, que se dá a fricção do sonho com o real. É desta fricção que o Dicionírico constrói sua ficção, que é o sonho mais real que existe. Esta é a próxima letra do alfabeto que César Magalhães Borges nos oferece em seu gostoso desfile de letras pintadas, cantadas, narradas e sonhadas. Ao mergulhar neste dicionário, apague a luz. Boa leitura e sweet dreams, leitor.
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O livro: César Magalhães Borges. Dicionírico, Prosa, Poesia e Riso (de A a Z).
São Paulo: Pasavento, 2016, 200 págs., R$ 45,00.
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setembro, 2016