Onde fica mesmo a nossa pátria interior, aquele reino onde estamos como que protegidos do mundo pela alegria, a felicidade de sermos nós mesmos, abençoados pelas sensações que um meio exterior autoriza e estimula? É possível que em alguma cidade, bairro ou rua precisa, entre os muitos lugares que conhecemos em vida e que vão sendo descobertos ainda em maior quantidade e diversidade com o tempo; é possível que não seja num lugar muito específico, mas em todas as partes do mundo.
O célebre "há muita beleza aqui/porque há muita beleza em toda parte", de Rilke, me agrada porque me parece um brado poético que jamais servirá para algum bairrista ou para alguém muito preocupado em definir coisas e lugares como privilegiados, exclusivamente dotados de algo precioso (noção muito vulgar, nascida de folhetos turísticos).
Não há lugar onde não se possa ver alguma Beleza e ser reconfortado por ela como se esta, estranha ou nova quanto seja, houvesse viajado de algum momento em nosso passado e se estabelecido ali, sem relação objetiva ou temporal alguma com o lugar de que se parece originar. A imaginação pode estar nos iludindo grandemente, mas ali nos deparamos com algo que é de nossa essência — o que justifica plenamente a ideia de que a Beleza está menos no exterior que no interior de cada um e que cada um a transplanta para o lugar onde está, encontrando pelo mundo réplicas ou variações que, ilusórias quanto sejam, nos oferecem um grande consolo. O consolo de sermos intimamente universais. De comungarmos com cenários desconhecidos coisas que parecem residir na nossa mais funda particularidade. Isso é uma salvação, ainda que a percepção desse maravilhoso espalhado por toda parte possa ser muito, muito fugaz.
Cheguei a Brotas/SP, de mudança, num dado outubro. É um novo lugar para mim; mudanças são coisas cansativas, embaraçosas, a um só tempo excitantes e confusas, e demora muito para que a gente se assente psicologicamente e possa ir entendendo melhor o novo mundo, a nova casa, as novas caras, ruas, geografias. Meus primeiros contatos com a cidade, até aqui, resumiram-se a andanças pelas ruas de seu centro e imediações, pelos entornos do rio Jacaré-Pepira, por algum passeio mais longo proporcionado por uma amiga com seu carro. Dou pequenos passos, lentos, contemplativos. Não é preciso pressa alguma; talvez a grande qualidade das cidades pequenas resida mesmo nisso de nunca nos pedir pressa para nada, principalmente para a tarefa de conhecê-las não só nas obviedades, mas nos pequenos segredos sussurrados a cada identidade que percorre seus meandros.
Falo de sussurros? Pois fui acolhido em Brotas por uma coisa que venero: o vento. Um vento noturno que me remeteu de imediato a outro vento — o que me acompanhava nas andanças noturnas pelas ruas de Novo Horizonte, o que Cat Stevens cantava em "The Wind" — "I listen to the wind/to the wind of my soul/where I'll end up, well, I think/only God really knows". Nenhuma cidade do mundo seria familiar para mim se não houvesse esse vento, que sopra de paisagens remotas menos exteriores que interiores, coisas talvez mais imaginadas que vividas, isto é, se podemos dissociar umas das outras com a racionalidade presunçosa de que dispomos.
O vento e suas artes em árvores. Aqui, nessas ruas, são outras as árvores — miniflamboyants, como uma amiga as definiu, corrigindo quando eu as chamei de brincos-de-princesa, pois era assim que eu conhecia essas flores em Novo Horizonte. E flamboyants enormes, talvez até centenários, como um que existe no parquinho da rua onde moro, com uma cor mais laranja comum que laranja-fogo, um laranja salpicado de amarelos e brancos; a galharia é vasta, chegando à horizontalidade, e as flores caem sobre o parquinho, enfeitando bancos e brinquedos infantis que há ali, numa área aberta muito acolhedora. A cidade é pródiga neles. Com seu alaranjado, fazem pensar em flores ígneas que um Van Gogh pintaria. De repente, apontam na paisagem de cores comuns como verdadeiros assombros botânicos, que não cessam de nos surpreender. E há também ruas com pitangueiras, e uma alegria é poder apanhá-las logo à mão. Afora os resedás, espirradeiras, manacás, frangipanis e as tantas outras árvores cujos nomes não sei, mas cujo frescor conversa profundamente comigo.
As casas antigas, algumas parecendo esperar demolição, outras restauradas, são cheias de quintais muito vastos. De dia, aquele verdor escuro de santuário apenas imaginado — pois o vejo de longe, da calçada — faz com que eu deseje mergulhar em mais verde, colher folhas pelo chão, aspirar mais cheiros — os de frutas, de terra úmida, de troncos e seivas. Quero enveredar por ele e ir ter em outros reinos — de puro mistério subjetivo.
Por toda parte, devido à exiguidade do espaço urbano, sente-se a furtiva onipresença do rio Jacaré-Pepira, principal atração turística da cidade. Esteja a gente onde estiver, ele estará ali, rumorejando, como um elemento indispensável, uma água oculta, fecunda, que nos sustenta com seus canais naturais e psíquicos. Fala-se que é dos rios menos poluídos do estado de S.Paulo. Suas cascatas são exaltadas. Um passeio pelas ruas e passagens construídas ao seu lado é sempre interessante. Mas, aqui como em Poços de Caldas, cidade onde morei por 20 anos, evito os clichês turísticos, tão entupidos de palavrório que já não guardam mais vida original nenhuma. A vida real é sempre outra, graças aos céus, rara e imprevista. O trabalho de não sei quantos milhares de poetas não pode nos dar mais que uma pista para aquilo que possamos sentir de original diante de uma coisa bela por unanimidade. Nossos riscos são outros.
Aqui como em toda parte... O conhecimento de Brotas me vem facultado pelo conhecimento de outras cidades, outras sensações que se fundiram a essas que ela vem me causando. Verde, água e vento. Isso é antigo em mim, essa adoração que nem sei se é pagã, mas evoca o Caeiro de Pessoa: "Só para ouvir o vento valeu a pena ter nascido".
Numa virada de esquina, de repente se está no mundo rural, diante de arame farpado e vacas, diante de uma estradinha que vai dar, no fundo, a ele, o rio Jacaré-Pepira, como sempre. Noutra virada, três altas palmeiras e um círculo imenso de lua por trás delas. E o vago cheiro de laranjais. Ao visitar a cidade pela primeira vez, fui saudado por extensos laranjais numa estrada, e concluí que não pode haver cheiro mais embriagador que esse, de laranjais noturnos. Também em Coin, terra natal de meu pai em Málaga, Espanha, segundo li, há laranjais. Pensei se não carrego cá comigo esse cheiro como um atavismo bendito.
Em todo caso, como beleza não falta em parte alguma do mundo, espero continuar andando. Tangido pelo vento e... "aonde irei acabar/bem, eu acho/que só Deus realmente sabe...". Espero acabar em vento e verde, dissolvido em arvoredo, redimido pela água.
dezembro, 2016