"For the benefit of Mr. Kite" toca há coisa de séculos. Ainda à mesma valsa dança o cavalo Henry e a plateia de esqueletos aplaude polidamente, ossos contra ossos. Há qualquer coisa nessa canção dos Beatles que a faz eterna, como se o grande circo de frieza, horror e morte de nossa época fosse um espetáculo infindável conduzido por um vendaval alegre de fantoches, trapezistas, engolidores de fogo etc. É música de humor e calafrio. O grande circo é satirizado, mas não perde seu poder de aniquilamento satisfeito. E a realidade se impõe: "And tonight Mr. Kite is topping the bill...". O showbiz confunde morte e alegria. Dancemos, dancemos sobre os cadáveres conservados a néon, vítimas de uma estranha epidemia de felicidade.

 

Vi uma mulher chorando num canto do salão vazio. Digo vazio, mas era preciso um adjetivo mais forte: ali o vazio era coisa absoluta, vazio de vazios, ausência de ausências, frio reduzido a frio, o zero apoteótico. Seu pranto discreto não pôde ser discreto: o vazio o reproduzia em ecos despudorados. Encolhida ao máximo, enrodilhada em si mesma, mutilada de intenções, contrastava com o vazio da sala, era esmagada por ele. Um quadro de Bacon. Feito para admiradores do horror bem captado, para o museu dos distraídos.

 

O máximo horror de nosso tempo é que não há impacto que não possa ser absorvido e digerido indiferentemente pelo homem da rua. O grande circo. Passando pelo grande circo, toda indignação se esvazia.

 

No salão fantasma a pianola prossegue. Automática, há décadas toca a mesma canção, incansavelmente. E há décadas os pares defuntos dançam-na escrupulosa e lentamente, os passos repetidos. São múmias silenciosas e obedecem serenamente à maldição de estereotipia e anacronismo. No obsoleto resistente há um desespero que não se declara. A pior maldição é sobreviver.

 

As mulheres caras jazem inertes, longas piteiras e vestidos dourados, no piso axadrezado do salão. Dormem, estão despertas? Ninguém sabe, não há necessidade de saber, e elas são estátuas lânguidas que têm o fim exclusivo de ornamentar o descaso do salão. O descaso eterno, que os deuses sempre reservam para a prodigalidade.

 

O que houve ali foi um excesso de satisfação e brilho, o pecado de uma diversão vívida demais para que a própria natureza do farrista suportasse. Estátuas de Marilyn Monroe sentindo o ar do metrô estão espatifadas e grandes ratazanas lambem lantejoulas, vidrilhos, diamantes, pérolas. A carne antiga do salão não resiste à invasão das baratas. Sobre o açúcar dos derramamentos sentimentais as formigas pretejam, incontáveis. Traças acabam com o ouro e a prata dos enfeites. Depois da avidez desatada, o desatamento da vingança. E as mulheres caras, às quais todo o luxo do mundo fora prometido, mantém nas bocas o mesmo sorriso de docilidade venal com que compareceram ao dia da inauguração.

 

"A splendid time is guaranteed for all". Os elefantes dormem, dormem as girafas, os tigres não urram mais e uma onda de sono faz com os esqueletos se apóiem uns nos outros, sonhando dormir. No picadeiro, o domador exangue, e mais exangue o leão. Bailarinas, palhaços, malabaristas sucumbem a bocejos contínuos e as luzes começam a apagar, derretendo o sortilégio. Mr. Kite caminha devagar entre os destroços sonolentos, pensando no programa do próximo espetáculo.

 

setembro, 2016