O fascínio pelo Autor.
Que o poema torna mítico.
(Fiama Hasse Pais Brandão)
Será sempre sem dúvida a leitura o que através da linha do tempo ressuscita o aedo. (Fiama Hasse Pais Brandão)
Antes de começar propriamente, gostaria de assinalar como para mim soa curioso que as considerações sobre a morte do Autor tenham precedido, em muito, uma especulação sobre "o que é um autor", sobre sua figura e suas funções na escritura; ainda que o Autor — esse detentor último do sentido — há muito tivesse tomando para si as rédeas da escritura, seu "estatuto ontológico", por assim dizer, ainda não havia sido investigado a fundo; se a morte desse ente é decretada, não nos restaria especular então qual era seu lugar? o papel que ele desempenhava, por exemplo, para que assim se pudesse compreender melhor as implicações de uma ausência? Não nos deixemos, pois, enganar com essa suposta facilidade no apagamento da figura do Autor, essa figura abstrata que assumiu durante muito tempo um papel central na interpretação poética, tanto por parte crítica quanto no senso comum.
Em 1968, quando Roland Barthes termina seu famoso ensaio "A morte do Autor" dizendo que "o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do Autor" (1988: 70), assumindo uma posição radical derivada do New Criticism, parece evidente que a proposta seja a de retirar a leitura de uma perspectiva interpretativa que até então pairava sobre a intenção do Autor e levá-la a outra, menos metafísica, ou seja, à do texto em leitura. Para usar as palavras do classicista Guilherme Gontijo Flores,
o ponto central do artigo é a morte do autor para a literatura contemporânea de Barthes, ou seja, como a literatura a partir de Mallarmé buscou outro modo de se mostrar, sem a tendência romântica do gênio criador, por meio do desaparecimento elocutório do sujeito (2014: 4. grifos do autor).
Com isso, creio, afirmar que o autor não importa para a análise literária, em nenhum momento e em nenhuma época, é, para além de uma desleitura, uma visada no mínimo simplista e ingênua, afinal "tal antibiografismo seria o lugar-comum invertido de um biografismo mais que vulgar" (2006:39).
Ainda citando Flores — apesar de longo o trecho me parece importante —,
ao propor uma interpretação das Odes de Horácio no século XXI, seria possível ignorar que Quinto Horácio Flaco, seu autor, foi um homem que viveu no século I a.C., entre décadas de guerras civis, que passou pela guinada política da Pax Augusta e escreveu o Carmen saeculare sob encomenda do próprio Augusto, que mencionou em sua poesia madura a renovação religiosa do princeps, que recebeu uma uilla de seu patrono Mecenas, que leu, como todo romano de sua classe, a poesia grega arcaica e helenística, além da romana, ainda nos seus anos de formação, que viveu num tempo em que retórica e poesia não estavam de todo separados? Diante dessas perguntas, não hesito em afirmar que a morte do autor, ou pelo menos essa morte do autor em geral, tem os seus limites, e que dados biográficos do autor muitas vezes constituem uma espécie de metatexto; se não para encontrar uma verdade em sua obra, ao menos para indicar possíveis balizas mais convincentes de leitura. Doutro modo, teríamos de fingir que as obras surgem do mero acaso, sem ponto de ancoragem, sem ideologias, subjetividades ou poéticas que as permeiem; sem um indivíduo real que as escreva (2014:7. grifos do autor).
É diante desse problema que Michel Foucault, no artigo O que é um Autor?, percebe no Autor uma espécie de função do texto, possivelmente discursiva, que ficaria entre o esvaziamento completo e uma presença que ainda atribuiria sentido ao texto, estabelecendo assim uma relação no discurso, um possível metatexto — aquilo que o atravessa; embora seja necessário considerar que o pensamento do filósofo francês sempre manteve estreitos laços com as instâncias de poder e que para ele haja um nascimento "na medida em que o autor podia ser punido, ou seja, na medida em que os discursos podiam ser transgressores" (2001:275). Para Foucault, portanto,
a função está mais ligada ao sistema jurídico e institucional que contém, determina, articula o universo dos discursos; ela não exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização; ela não é definida pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas por uma série de operações específicas e complexas; ela não remete pura e simplesmente a um indivíduo real, ela pode dar lugar simultaneamente a vários egos, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos podem vir a ocupar (2001: 280).
Nesse sentido, talvez seja possível dizer que essa autoridade do Autor constituísse uma espécie de mito moderno — uma narrativa a priori, da qual todos partilhássemos —, fundado a partir da valorização do indivíduo, que visasse a composição de uma identidade da escritura. O Autor funcionaria, portanto, como um ícone, um totem, para o qual convergiria uma série de elementos comuns, criando assim um sistema coerente capaz de atribuir um caráter semelhante ao divino (Barthes já se referia a um Autor-Deus) ao corpo responsável pela produção; em muitos casos, essa coerência interna do autor acaba sendo algo reconfortante, afinal, ainda de acordo com Foucault, a busca por uma coerência interna, uma manutenção estável de valor são critérios da crítica para enquadrar o nome do autor, a partir de São Jerônimo. E tanto para Barthes quanto para Foucault, o Autor é uma espécie de personagem; para mim, uma personagem mitológica que possuiria o poder de iluminar os pontos obscuros da crítica, um substrato significativo que justificaria interpretações. Não é à toa que Roland Barthes afirma "que, historicamente, o reinado do Autor tenha sido também o do Crítico" (1988:69).
Mas ao atribuirmos-lhe uma função de personagem, caber-nos-ia dizer que o autor passa a ser apenas mais um leitor de sua própria obra e que sua leitura figuraria como apenas mais uma leitura, entre tantas possíveis, e não necessariamente como a mais carregada de verdade, afinal, como disse Paul Valéry, não há um sentido verdadeiro no texto, um texto é como uma máquina que qualquer pessoa pode usar à vontade e de acordo com seus meios, nada garante que o produtor a use melhor que outros. Um texto, portanto, só existe em sua relação consigo mesmo e com outros textos, em sua relação consigo mesmo e com um sujeito ativo, o leitor.
Assim, assumindo que o texto seja como uma máquina (produtora de sentido não unívoco) fica terrivelmente forçoso não lembrar e recorrer à obra dos filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil Platôs, e assim dizer que o texto é
um agenciamento maquínico é direcionado para os estratos que fazem dele, sem dúvida, uma espécie de organismo, ou bem, uma totalidade significante, ou bem uma determinação atribuível a um sujeito, mas ele não é menos direcionado para um corpo sem órgãos, que não pára de desfazer o organismo, de fazer passar e circular partículas a-significantes, intensidades puras, e não pára de atribuir-se os sujeitos aos quais não deixa senão um nome como rastro de uma intensidade (1995:2. grifos do autor).
O texto, então, seria um espaço de dimensões múltiplas onde toda produção de sentido ocorre não na escrita, mas no próprio ato de leitura; ou seja, o ato da leitura se inseriria numa série infinita de desleituras possíveis, ou de leituras das leituras das leituras do texto das quais nenhuma seria a original.
Isso nos leva a assumir que teorizar sobre leitura não é um jogo fácil, visto que ela é, por definição, múltipla (refazendo e desfazendo seu organismo), como múltiplos são seus leitores (o crítico, o autor &c), e que não sendo uma força mecânica, portanto, não se dando de modo estanque, a textura pode regenerar "indefinidamente seu próprio tecido por detrás do rastro cortante" da leitura, implicando assim sempre uma posição ética e política na decisão de cada intérprete. Quanto, então, um leitor pode produzir diante dessa imensa série de feixes heterogêneos? Afinal, é certo que nenhum leitor chega ao texto"culturalmente virgem, por assim dizer, imaculadamente livre de envolvimentos sociais e literários anteriores, como um espírito totalmente desinteressado ou como uma folha em branco, para a qual o texto transferirá as suas próprias inscrições" e sua intentio lectoris ("a intenção do leitor") carrega sempre uma grande carga de imprevisto. Ler, nesse caso, dar-se-á sempre como um gesto criativo e crítico, produzindo, assim, leituras infinitamente idiossincráticas, de modo irrespeituoso.
Umberto Eco, por exemplo, visando possibilitar um modo multiplicado de leitura no qual se estabeleça uma relação de alteridade entre texto e leitor (ou obra e intérprete) que acabe por fundar um sentido possível, formula o conceito de obra aberta. Para o italiano, essas obras
não consistem numa mensagem acabada e definida, numa forma univocamente organizada, mas sim numa possibilidade de várias organizações confiadas à iniciativa do intérprete, apresentando-se, portanto, não como obras concluídas, que pedem para ser revividas e compreendidas numa direção estrutural dada, mas como obras "abertas" que serão finalizadas pelo intérprete no momento em que as fruir esteticamente (1976:39).
Aqui, portanto, separa-se o leitor comum do intérprete, aquele de quem se espera a capacidade de produzir uma κρίσις ("krísis"); e essa capacidade de produção de sentidos inesperados está há milhas de distância de se restringir à mera erudição. Voltemo-nos à história e peguemos como ilustração o caso Menocchio, um moleiro perseguido pela Inquisição, apresentado a nós pelo historiador italiano Carlo Ginsburg, que diante do tribunal do Santo Ofício, após recorrer a deus e ao diabo, literalmente, como agentes causadores de sua conduta herege, assume que suas opiniões saíram de nenhum outro lugar além de sua própria cabeça. Contudo, creio que esse episódio ganha força quando nos deparamos com a lista de livros presente nos autos do processo levantada pelo historiador. Infelizmente, não se trata de uma lista completa e obviamente seria impossível traçar toda uma genealogia das leituras de Menocchio. Mas os dez livros apresentados já nos dão pano pra manga, afinal nenhum deles nos leva a compreender como o moleiro herege foi capaz de formular tantas "opiniões fantásticas" (1987: 77), como assinala o próprio Ginsburg. Menocchio, portanto, ia muito além de um leitor passivo e foi precisamente sua capacidade de interpretar, e até certo ponto performar, tanto suas leituras quanto sua carga de experiência oral que tornaram seu discurso tão profundo e complexo.
Então, repito cá a pergunta que fiz no começo, quanto um leitor pode produzir diante dessa imensa série de feixes heterogêneos que é o texto? Seguramente, muita coisa. Sobretudo se levarmos em conta esses aspectos performáticos que por vezes "deformam" tanto seu ponto de partida que fica difícil rastrear seus processos, como no caso de Menocchio, por exemplo, ou nos poemas traduzidos por Herberto Helder e apresentados sem nenhuma referência direta aos originais. Difícil é até traçar um limite para suas possibilidades que podem convergir para o infinito através do tempo. Nesse caso, ao falarmos de performance, escritura e leitura começam a coincidir; de acordo com Compagnon,
a leitura será um escritura, da mesma forma que a escritura era uma leitura, já que em O Tempo Redescoberto, a escritura é descrita como a tradução de um livro interior. E a leitura como uma nova tradução num outro livro interior. "O dever e a tarefa de um escritor", concluía Proust, "são os de um tradutor". Na tradução a polaridade escritura e leitura se esvanece (1999: 145).
O helenista e tradutor francês Philippe Brunet, mais recentemente, ao discutir as possibilidades de performance da poesia homérica, vai além ao concluir que "não existirá jamais algum espectador ideal de todas suas metamorfoses", e com isso "o leitor se faz intérprete, relançando sempre a possibilidade de uma interpretação sempre nova" (2014:281). É o leitor, portanto, quem imprime sua postura no corpo do texto, que o inventa e funda, em última instância, o sentido. Mas esse Leitor (assim, com L maiúsculo) de que se fala é sempre um sujeito ativo que se articula entre a ética, a poética e a política; daí que se chega à questão de que é necessária uma delimitação arbitrária e ideológica (e, portanto, política) de toda leitura; daí que toda leitura seja em grande parte releitura, uma inserção também na história das leituras do texto, mas inserção que contém o germe do imprevisto, já que sempre experimental.
No caso da tradução, o tradutor "escreve a leitura", para retomar as palavras de Barthes (1988: 40), transformando sua leitura num ato performático; e se lidamos com termos deleuzianos ao tratar o texto como uma máquina, creio que não seria despropositado enquadrar a tarefa do tradutor como um rizoma, em que "qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo" (1995:15), que se oporia a um pensamento dicotômico (radicular, portanto) de original/versão, melhor/pior, fidelidade/infidelidade; a tarefa do tradutor, nesse sentido, seria a de sempre testar e retestar os limites do texto, por vezes com radicalidade, porque, como bem aponta Flores,
um texto não permanece interessante ao longo dos séculos graças a um sentido imutável que continua instigando seres humanos de épocas bastante diversas: ele permanece porque é capaz de receber interpretações diferentes a partir de pontos de partida variados (2014: 10).
E uma leitura assim assumidamente crítica e poética deve se expor às consequências — sempre imprevisíveis — de uma política, com perguntas que, às vezes, podem não encontrar outra forma de resposta senão numa performance, numa leitura performática,como a que realizou Menocchio, por exemplo, ou como a de Jean Anouilh. Para o tradutor francês, a escolha de uma obra como a Antígona, de Sófocles, que retrata na figura de Creonte a imagem de um poder autoritário e a luta agônica de Antígona para que sejam cumpridos os ritos fúnebres de seu irmão, Polínice, numa França dominada pelo regime nazista, está absolutamente longe de ser arbitrária e tampouco é balizada por motivos estritamente literários. A Antígona de Anouilh é, claramente, performática, perlocucionária, política e poética. Uma tragédia grega, nesse caso, contaminada pela performance do leitor que ao escrever sua leitura reveste-a de um novo sentido, atualiza-a, ressuscita através da linha do tempo o aedo, para retomar a epígrafe de Fiama Hasse.
Mas esse tipo de leitura, ou escrita da leitura, aberta na qual deságua uma tradução poética só possível quando se abolem questões metafísicas como da intenção do autor, da intenção do original, da pureza, da ideia, ilusória, de que de uma língua à outra os conteúdos por transpor não variam, da ideia, ilusória, de que de um leitor para outro os conteúdos também não variem. O texto liberto se encontra agora sobre as instabilidades da linguagem e, no caso da tradução, são as "relações com a língua, em cada caso diferentes, tanto do texto traduzido quanto do tradutor, que são evidenciadas e interrogadas", como acuradamente assinalaram La Combe & Wismann.
E olhar para o texto e refletir sobre suas instabilidades é a tarefa que recai hoje tanto sobre o leitor quanto sobre o tradutor. A escritura não cessa de lutar contra si mesma.
Notas
JAKOBSON, Roman. A geração que esbanjou seus poetas. Trad. e posfácio de Sonia Regina Martins Gonçalves. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
Ernesto Von Artixzffski (Curitiba, 1992) é graduando em Letras pela Universidade Federal do Paraná e colaborador do blogue coletivo Escamandro. Teve poemas publicados em revistas como Mallarmargens e Modo de Usar, no Brasil, e Enfermaria6, em Portugal.
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