Audre Lorde (1934–1992) foi uma escritora, poeta e ativista norte-americana. Referia a si mesma como "negra, lésbica, mãe, guerreira e poeta", referência condizente à sua obra que consiste de questões lésbicas, raciais, de gênero e de identidade. Essa sua identidade deu à sua obra um olhar único sobre questões que envolvem feminismo, opressão e direitos civis e seu trabalho sempre foi muito aclamado pela crítica por conter elementos de liberalismo social e sexualidade. É reconhecida como uma das figuras mais importantes do feminismo e da luta contra o racismo e a homofobia/lesbofobia nos EUA. Escreveu teorias críticas feministas, entre elas: Uses of the Erotic: the erotic as power (1981), Sister Outsider: essays and speeches (1984), e poesia: The First Cities (1968), Cables to Rage (1970), From a Land Where Other People Live (1973), New York Head Shop and Museum (1974), Coal (1976), Between Our Selves (1976), Hanging Fire (1978), The Black Unicorn (1978) etc.

Cheryl Clarke (1947) é poeta, educadora, teórica, ativista feminista, negra e lésbica. É autora do primeiro estudo sobre poesia feminina negra e seu movimento artístico (After Mecca — Women Poets and the Black Arts Movement, de 2006), que tornou as contribuições de mulheres negras à poesia mais visível num campo que, tradicionalmente, reconhece mais homens. Escreveu vários livros de poesia, entre eles Narratives: Poems in Tradition of Black Women (1981), Living as a Lesbian (1986), Humid Pitch (1989), Experimental Love (1993), e Corridors of Nostalgia: the poems of Cheryl Clarke (2007) e Days of Good Looks: Prose and Poetry, 1980 – 2005 (2006), uma coleção que reúne 25 anos de seus escritos já publicados. Escreveu, também, para o Conditions, extindo e famoso coletivo editorial lésbico que publicou muitas antologias e revistas, entre elas Home Girls, The Callaloo Journal e Black Scholar.

Ambas lésbicas, negras e poetas, Audre Lorde e Cheryl Clarke reservaram um espaço em sua obra para falar especificamente da mulher. Usando a ideia de Adrienne Rich (1994) de que todo poema quebra um silêncio que precisa ser superado, podemos ver na poesia de Lorde e Clarke a aceitação de que o corpo sexual lésbico, a relação sensual-emocional, a geografia material do prazer feminino em termos positivos se torna uma estratégia política — as poetisas lutam por gerar um modo celebratório de escrita no qual essa significação empoderadora possa ser encontrada.

O trabalho de ambas fez parte da explosão de poesia que ajudou a alimentar o mundo cultural lésbico e feminista do final da década de 70 e da década de 80. Livrarias comandadas por mulheres cresceram, e leituras de poesia foram os locais de encontro relevantes para lésbicas, além dos bares e jogos de softball. Jornais e periódicos lésbicos, teatro, apresentações musicais e exposições de arte e, em um maior nível, a publicação de livros por e para lésbicas cresceram.

Para Clarke, o "sexo lésbico é, em si mesmo, poesia" (2006b, p. 142). Ela diz que a fonte do erótico em sua vida está no lesbianismo e que, desde muito nova, decidiu estar em companhia de mulheres e então começaram seus sonhos de ser amante de mulheres, e esses sonhos se tornaram poesia. Ela também assume uma poética política: "[…] politicamente, minha poesia tem que ser por um suporte para a poesia sexual do lesbianismo" (2006a, p. 232). Seu trabalho foi altamente influenciado por Audre Lorde. O poema "intimacy no luxury" ("intimidade não é luxo"), de Clarke, por exemplo, baseia-se diretamente em "Poetry is Not a Luxury" ("Poesia não é um luxo", ensaio publicado em Sister Outsider: essays and speeches), onde Lorde procura definir a poesia como algo vital e necessário para a atividade de lazer humana — especialmente para as mulheres — em vez de condição. Para Lorde, a poesia é a essência da feminilidade e, sem os sentimentos do que é poesia, não seria fácil expressar como ela é uma conexão com a sociedade antiga. Esta conexão é como uma espécie de antídoto para os males da vida moderna e também como um passo na formação de ideias, e não a expressão de uma ideia já formada. Clarke usa da disposição de Lorde sobre essa conexão com a sociedade antiga e antídoto para os males da vida moderna quando diz, em "intimacy is no luxury", que tribadismo — referência explícita ao sexo entre mulheres — é uma panaceia ancestral: na mitologia grega, Panacea (Πανάκεια) era a deusa do remédio universal.

Abaixo, temos traduzidos três poemas de Cheryl Clarke: "intimacy no luxury" e "nothing" foram retirados do livro Living as a Lesbian (1986) e "sexual preference" retirado do livro The Days of Good Looks: The poetry of Cheryl Clarke, 1980 to 2005. De Audre Lorde temos "Meet", publicado pela primeira vez na terceira edição da revista literária de arte por e para lésbicas, Sinister Wisdom e, mais tarde, republicado no livro The Black Unicorn (1978) e "Woman", também publicado no livro The Black Unicorn (1978). Todos os cinco poemas têm a mesma temática: o sexo e o amor à mulher.

Os poemas de Audre Lorde e Cheryl Clarke seguem refutando a ideia de que poemas devem ser delicados, bonitos, que poesia é uma forma de arte reservada para cânticos de louvor. Não são só poemas voltados para o amor: sua poesia é provocadora, não pede permissão para se fazer ouvir e seus poemas não se importam em incomodar. Na verdade, poucos escritores têm abordado questões polêmicas sobre raça e sexualidade com tanta força e/ou humor como Lorde e Clarke.

 

 

"intimacy no luxury"

 

 

Intimacy no luxury here.

Telephones cannot be left off the hook

or lines too long engaged

or conversations censored any longer.

No time to stare at our hands

afraid to extend them

or once held

afraid to let go.

We are here.

After years of separation

women take their time

dispose of old animosities.

Tribadism is an ancient panacea and cost eficiente

an ancient panacea and cost efficient.

 

 

 

"intimidade não é luxo"

 

 

Intimidade não é luxo aqui.

Telefones não podem ser tirados do gancho

ou linhas muito tempo ocupadas

ou conversas censuradas.

Sem tempo para contemplar nossas mãos

com medo de estendê-las

ou, depois de dá-las

temendo soltar.

Estamos aqui.

Após anos de separação

mulheres aproveitam seu tempo,

dispensam velhas animosidades.

Tribadismo é uma panaceia ancestral e vale a pena

uma panaceia ancestral e vale a pena.

 

***

 

"nothing"

 

 

nothing I wouldn't do for the woman I sleep with

when nobody satisfy me the way she do.

kiss her in public places
win the lottery
take her in the ass
in a train lavatory
sleep three in a single bed
have a baby
to keep her wanting me.

wear leather underwear
remember my dreams
make plans and schemes
go down on her in front of her
other lover
give my jewelry away
to keep her wanting me.
sell my car
tie her to the bed post and
spank her
lie to my mother
let her watch me fuck my other lover
miss my only sister's wedding
to keep her wanting me.
buy her cocaine
show her the pleasure in danger
bargain
let her dress me in colorful costumes
of low cleavage and slit to the crotch
giving easy access
to keep her wanting me.
Nothing I wouldn't do for the woman I sleep with when nobody satisfy me the way she do.

 

 

"não há nada"

 

 

não há nada que eu não faria pela mulher com quem durmo
quando ninguém me satisfaz como ela.
beijá-la em lugares públicos
ganhar na loteria
comer-lhe o cu
no banheiro do trem
dormir três pessoas numa cama de solteiro
ter um filho
para que ela continue me querendo
usar calcinha de couro
lembrar dos meus sonhos
fazer planos e esquemas
chupá-la na frente da sua
outra amante
dar minhas joias embora
para que ela continue me querendo
vender meu carro
amarrá-la ao pé da cama e
espancá-la
mentir para minha mãe
deixá-la ver eu comer minha outra amante
perder o casamento da minha única irmã
para que ela continue me querendo
comprar-lhe cocaína
mostrar-lhe o prazer no perigo
barganhar
deixá-la me vestir com roupas coloridas
com decotes e fendas até a virilha
dar-lhe faço acesso
para que ela continue me querendo.

Não há nada que eu não faria pela mulher com quem durmo quando ninguém me satisfaz como ela.

 

***

 

"Sexual preference"

 

 

I'm a queer lesbian.
Please don't go down on me yet.
I do not prefer cunnilingus.
(There's room for me in the movement.)
Your tongue does not have to prove its prowess
there
to me
now
or even on the first night.
Your mouth all over my body
then there.

 

 

"Preferência sexual"

 

 

Sou uma lésbica queer.
Por favor, não me chupe ainda.
Eu não prefiro cunnilingus.
(Há lugar para mim no movimento).
Sua língua não tem de provar o seu talento

pra mim
agora
ou até mesmo na primeira noite.
Sua língua por todo meu corpo
depois lá.

 

***

 

"Meet"

 

 

Woman when we met on the solstice
high over halfway between your world and mine
rimmed with full moon and no more excuses
your red hair burnes my fingers as I spread you
down to sweetness
and I forgot to tell you
I have heard you calling
across this land in my blood
before meeting
and I greet you again
on the beaches in mines
lying on platforms
in trees full of tail-tail birds flicking and
deep deep in your caves of decomposed granite
even over m y own laterite hills after a long journey
licking your sons
while you wrinkle your nose at the stench.

Coming to rest
in open mirrors of your demanded body
I will be black light as you lie against me
I will b heavy as August over your hair
our rivers flow from the same sea
and I promise to leave you again
full of amazement and our illuminations
dealt through the short tongues of colour
or the taste of each other skin when it hung
from our childhood mouths.

When we meet again
will you put your hands upon me
will I ride you over our lands
will we sleep beneath trees in the rain?

You shall get Young and I lick your stomach
not anda t rest befre we move off again
you will be White fury in me navel
I will be your night
Mawulisa foretells our bodies
as our hands touch and learn from each others hurt.
Taste my milk in the ditches of Chile abd Ouagadougou
in Tema's bright port while the priestess of Larteh protects us
in the peppery markets of Allada and Abomey-Calavi
now you are my child and my mother
we have Always been sisters in pain.

Come in the curve of the lion's bulding stomach
lie for a season out of the judging rain
we have mated we have cubbed
we have high time for work and another meeting
women exchanging blood
in the innermost rooms of moment
we must taste of each other's fruit
at least once
before we shall both be slain.

 

 

"Encontro"

 

 

Mulher, quando nos conhecemos no solstício
no meio do caminho entre seu mundo e o meu
margeadas entre a lua cheia e sem mais desculpas
seu cabelo ruivo queimou meus dedos e eu te abri
até a doçura
e esqueci de contar
que te ouvi chamando
através desta terra, em meu sangue
antes de encontrar
e te saúdo novamente
nas praias, nas minas
deitando em plataformas
em árvores cheias de pássaros
com suas caudas sacudindo e
no fundo, no fundo de suas cavernas de granito decomposto
mesmo sobre minhas próprias colinas de laterita, depois de uma longa jornada
lambendo seus filhos
enquanto você franze o nariz para o cheiro.

Vindo para descansar
em espelhos abertos de seu corpo exigente
Serei a luz negra enquanto você deita contra mim
Serei pesada como agosto sobre seus cabelos
nossos rios fluem a partir do mesmo mar
e prometo te deixar novamente
cheia de espanto e nossas iluminações
tratadas pelas curtas línguas de cor
ou o sabor da pele de cada um quando se desligou
de nossas bocas infantes.

Quando nos encontrarmos novamente,
você vai colocar suas mãos sobre mim?
vou te cavalgar nas nossas terras?
vamos dormir debaixo de árvores na chuva?

Você deve ficar mais jovem enquanto eu lambo o seu estômago
quente e em repouso, antes de nos ausentarmos novamente
você será a fúria branca no meu umbigo
Serei sua noite
Mawu-Lisa prediz nossos corpos como nossas mãos tocam a mágoa uma da outra.
Prove meu leite nas valas do Chile e Ouagadougou
no porto brilhante de Tema enquanto a sacerdotisa de Larteh nos protege
nos mercados de pimenta de Allada e Abomei-Calavi
agora você é a minha filha e minha mãe
nós sempre fomos irmãs na dor.

Venha para a curva do bojudo estômago do leão
deite sobre uma estação da chuva que julga
nos acoplamos, tivemos filhotes
temos mais do que tempo para trabalhar e outro encontro
mulheres trocando sangue
nos quartos mais íntimos do momento
temos de provar da nossa fruta
pelo menos uma vez
antes que fossemos mortas.

 

***

 

"Woman"

 

 

I dream of a place between your breasts
to build my house like a haven
where I plant crops
in your body
an endless harvest
where the commonest rock
is moonstone and ebony opal
giving milk to all of my hungers
and your night comes down upon me
like a nurturing rain.

 

 

"Mulher"

 

 

Eu sonho com um lugar entre seus seios
pra construir minha casa como um abrigo
onde planto safras
em seu corpo
uma vasta colheita
onde a rocha mais comum
é pedra da lua e ébano opala
amamentando todas as minhas fomes
e sua noite se derrama sobre mim
como uma chuva nutriz.

 

 

 

Referências

 

 

CLARKE, Cheryl. Intimacy no luxury. In: Living as a Lesbian: Poetry. Ithaca, NY: Firebrand Books, 1986.

_________. nothing. In: Living as a Lesbian: Poetry. Ithaca, NY: Firebrand Books, 1986.

_________.sexual preference. In: The Days Of Good Looks: The Prose And Poetry Of Cheryl Clarke, 1980 to 2005. Nova York: Da Capo Press, 2006.

______. The everyday life of black lesbian sexuality. In: The Days Of Good Looks: The Prose And Poetry Of Cheryl Clarke, 1980 to 2005. Nova York: Da Capo Press, 2006a. p. 225-236.

______. Saying the least said, telling the least told: the voices of black lesbian writers. In:  The Days Of Good Looks: The Prose And Poetry Of Cheryl Clarke, 1980 To 2005. Nova York: Da Capo Press, 2006b. p. 133-144.

______. The Days Of Good Looks: The Prose And Poetry Of Cheryl Clarke, 1980 To 2005. Nova York: Da Capo Press, 2006.

RICH, Adrienne. Someone is Writing a Poem. In: What Is Found There: Notebooks on Poetry and Politics.  W. W. Norton & Company; Expanded Edition. 2003.

SANTOS, Tatiana Nascimento dos. BOTELHO, Denise. Sinais de luta, sinais de triunfo: traduzindo a poesia negra lésbica de Cheryl Clarke. Revista Língua & Literatura. Rio Grande do Sul. v. 15, n. 24 (2013): MINORIAS, MARGENS, MOBILIDADES. INSSne ISSN 1984-381X.

 

 

 

março, 2016

 

 

Thamires Zabotto (São Paulo, 1989) é bacharel em Tradução pela Universidade Metodista do Estado de São Paulo. Além de trabalhar com tradução, trabalha com ilustração e animação freelance.