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O ciclone que passou pela vida de Oswald
e inspirou sua futura obra literária
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Em princípios de 1918, o jovem Oswald de Andrade alugou uma sala na rua Líbero Badaró, 67, terceiro andar, para instalar o que se chamava então uma garçonnière, coisa que hoje, mais vulgarmente, se denomina 'abatedouro'. A primeira grande guerra mundial logo findaria na Europa. A juventude boêmia de São Paulo curtia ainda uma tardia belle époque. Em seu "covil", Oswald e amigos falariam de literatura, ouviriam música na Phonola, beberiam, acolheriam mulheres e, talvez, consumiriam alguma droga. O registro documental dessa fase é um livro chamado O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo. Era uma espécie de "diário de bordo" da garçonnière: um enorme livro-caixa, de 200 páginas numeradas, com 33 cm de altura por 24 de largura. Nesse diário coletivo, iniciado em 30 de maio de 1918, Oswald e sua alegre trupe inscreveriam reflexões, tiradas, trocadilhos infames, zombarias entre amigos, fariam colagens diversas e, incidentalmente, acabariam por delinear o embrião da nova escritura modernista — telegráfica, elétrica, lúdica, nervosa. Segundo o poeta e ensaísta Mário da Silva Brito, O Perfeito Cozinheiro documenta os anos de aprendizado, existencial e artístico, de Oswald de Andrade.
©marlene bergamo
Usando pseudônimos diversos, Oswald e amigos testemunharam ali seus lazeres e prazeres em tinta violeta, verde, vermelha. Ele assinava como Miramar, M, Garoa. O escritor Léo Vaz era o Bengala. Guy, o poeta Guilherme de Almeida. Ignacio da Costa Ferreira assinava ou desenhava como Jeroly/Ferrignac/Ventania ou Viruta. Pedro Rodrigues de Almeida, que se tornaria delegado de polícia, era "João de Barros", autor da ideia e da introdução d'O Cozinheiro, "cardápio perfeito para o banquete da vida". Havia também Viviano (Edmundo Amaral) e visitantes ocasionais, que registravam sua presença no diário, como Monteiro Lobato, Menotti Del Picchia, Vicente Rao e outros. Certa noite, Monteiro Lobato esqueceu por lá as provas tipográficas de seu livro Urupês. Em tinta roxa, M. registrou o incidente: "Lobato esteve aqui e esqueceu as provas dos seus 'Urupês' sobre o sofá. A Cyclone, muito pimpona, atribuiu à sua influência desnorteadora esse gesto do nosso homem do dia. Lobato, defenda-se ou confesse que tomou Cyclomol!".
Essa Miss Cyclone, Miss Tufão, Tufãozinho, Deisi, Dasinha e outros cognomes, é a presença que magnetiza os rapazes, e que protagoniza O Perfeito Cozinheiro, do princípio ao fim — trágico.
"Desenho moderno do Sexo"
Ela foi chamada "Cíclone", com acentuação na primeira sílaba. Era jovem, atraente, irreverente, "mecha ruiva agressiva, feições petulantes, um traço azul marcando a olheira funda, desenhada por Jeroly-Ferrignac", na descrição do poeta Haroldo de Campos, em seu Réquiem para Miss Cíclone. Oswald a conheceu na casa de uma prima. Registrou o encontro em suas memórias: "Chamavam-na Deisi. Convido-a cinicamente a amar-me. Ela responde:— Sim, mas sem premeditação". Normalista, poitrinaire (sofria dos pulmões), mesmo vigiada pela família, Deisi começa a frequentar a garçonnière. E logo se torna o verdadeiro símbolo da mulher moderna para os rapazes: segura de si, senhora de sua liberdade e sexualidade. Idolizada, estetizada e desejada por todos. "Cyclone, frisson nouveau!", exclama Ferrignac.
"A Cyclone é um desenho moderno do Sexo [...], capaz de satisfazer a todos os espíritos de homem" (João de Barros).
"É o pecado imortal!" (Miramar). "Miss Cyclone c'est la fatalité!" (Ventania). "A Cyclone é a sphinge do deserto do Braz" (Viviano). "Daisy, minha carrocinha!" (Garoa).
Espirituosae igualmente literatesca, ela replica por escrito:
"A Cyclone é o grande vício desta vida...".
Suas intervenções primam pela ironia e pelo deboche. Cola no diário um poema piegas de Paulo Setúbal, adultera-lhe o sobrenome para "Mastúrbal" e lhe pespega um apodo: "poeta das más turbas". Em outra página, imprime um beijo com batom e certifica em francês: "Aqui eu pousei meus lábios".
Eis a garçonnière convertida em "circlone da Cyclowne" (Garoa). Ela reina sobre sua corte. E costuma desaparecer de tempos em tempos. Faz mistério sobre suas andanças e relacionamentos.
"O covil sem a Cyclone... eu preferia, no entanto, a Cyclone sem o covil" (Miramar).Um dia, Miramar registra que a viu entrar numa "pensão de rapazes" na rua Anhangabaú. Retornando, ela diz que está namorando um japonês, um certo "Haru-San", o que provoca uma enxurrada de novos trocadilhos e caçoadas no diário de bordo.As anotações não explicitam quem mais, além de Oswald, "abichou" a Cíclone (verbo que poderia equivaler, talvez, ao que se chama hoje 'dar um crau'?). De todo modo,"todos nós amamos a Cyclone" (Ventania). Mas a flecha de "Cupidinho" penetraria muito mais fundo no coração de Oswald de Andrade.
[De O Perfeito Cozinheiro]
O martírio do Miramante: "que pena dela"
O diário registra principalmente "a presença/ausência ciclônica e cíclica" da musa, na expressão de Haroldo de Campos. Queixoso, Oswald/Garoa se confessa "doente de cyclonite". Assinando-se "Miramante", "Miramorto", "Babão de Andrade", lança apelos apaixonados: "Viva a Cyclone! Só a Cyclone!"; "Cíclone, pinga da minha taverna sentimental!";
"... sou teu escravo! Volta! Volta!". Num longo trecho, que depois censurou, obliterando-o com tinta, deixou somente uma declaração: "Eu amo a Cyclone". E um lamento em francês: "Que pena dela". Os comparsas assistem e zombam por escrito, chamando-o "Miramargura", "Miramártir", "Miramarido".
"Como o homem amoroso é ridículo..." (V.) "Sobretudo... quando é gordo", Ventania alfineta a obesidade oswaldiana.
Já desinteressado de atrizes e bailarinas francesas, declarando-se "doente de cyclonite", Oswald conclui que deve casar-se com Deisi. Mas agora a jovem está exilada em Cravinhos, interior de São Paulo, por decisão da família. De lá, ela envia postais e cartas poéticas para Oswald ("beijo-te o olhar verde"), que ele anexa ao Cozinheiro.
Miss Cyclone volta à cena para o ato final. Memórias de Oswald: "Em junho, ela me diz que está grávida. De quem? Não pergunto. Ela não fala. Concordamos no aborto".
Feito o aborto, ela sofre uma hemorragia. Seu útero é extirpado. Sua condição de tísica se agrava. Ela e Oswald casam-se em 11 de agosto de 1919. No dia 24, ela morre, aos 19 anos.
"A que encontrei enfim, para ser toda minha, o meu ciúme matou", ele confessa. A nota de falecimento, extraída de um jornal, está colada na última página d'O Cozinheiro, assinalando o passamento de Maria de Lourdes Castro de Andrade. Está enterrada no cemitério paulistano da Consolação, rua 17, túmulo nº 17.
"E tanta vida, bem vivida, se acabou", a Cyclone escreveu na última página do diário coletivo, em 12 de setembro de 1918. Mas sua passagem ciclônica pela garçonnière nunca será esquecida. A musa nouveau será o modelo das heroínas libertárias dos romances que Oswald escreverá. Entretanto, a vida continua. Meses depois, ele instala uma nova garçonnière na Praça da República, esquina da rua Pedro Américo. Desta vez sem diário de bordo. Embora anunciada no final, uma "nova ração" do Perfeito Cozinheiro jamais sairá do forno.
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Essa obra coletiva foi publicada pela editora Ex-Libris, em 1987, com um rigor verdadeiramente reverencial. Em edição fac-similar, o livro-objeto reproduz integralmente seu original: cartas, postais, bilhetes, colagens e recortes diversos foram impressos à parte e colados às páginas. Objeto cult, relíquia da pré-história literária de Oswald de Andrade, constitui um "monumento fúnebre" (Haroldo de Campos) à memória de Miss Cyclone. "Salve, deusa ligeira!".
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Dueto Sentimental
O Miramar dorme o sono da inocência... (Cyclone)
E sonha contigo. (Miramar)
Mira: que fim levou o nosso idílio? (Cyclowne)
Julho, 9. Dia dos anos da Cyclone. Salve, deusa ligeira! Salve, musa da tradição, agulha do meu disco emotivo, phonola da minha garçonnière sentimental! Salve Toda-Poderosa! (Miramar)
Miramar, o agente secreto da minha encrenca misteriosa... (Cyclone)
Amo-te. Sou teu escravo. Abaixo o 13 de maio! (Miramorto)
Sinto a premeditação que a alma tem para a desgraça!
Que será que eu tenho em mim? (Cyclone)
Viva a Cyclone! Só a Cyclone! (Miramar)
Viva a religião do Amor (Cyclone & Miramar)
setembro, 2016
Luiz Roberto Guedes, poeta, escritor, tradutor, letrista e publicitário. Nasceu e vive em São Paulo. Publicou Calendário Lunático/Erotografia de Ana K, poemário bilíngue, português/italiano (2000), Minima Immoralia / Dirty Limerix (2007), a novela histórica O mamaluco voador (2006), e a coletânea de contos eróticos Alguém para amar no fim de semana (Editora Annablume, 2010). Organizou Paixão por São Paulo, antologia poética paulistana (2004), com 72 poetas, de 1921 a 2003. É autor de vários livros juvenis, como Lobo lobão lobisomem (1997), Treze Noites de Terror (2002), Armadilha para lobisomem (2005), O caçador do arco-íris (2007), e Meu Mestre de História Sobrenatural (2008), obra selecionada pelo Proac – Programa de Ação Cultural da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Suas obras Treze Noites de Terror e O Livro das Mákinas Malukas foram adotados pelo MEC dentro do PNBE — Programa Nacional Biblioteca na Escola. Ganhou o Prêmio Escriba de Contos (1997), Prêmio de Poesia Lilia Pereira da Silva (1999), Prêmio de Poesia Helena Kolody (2001) e o Prêmio Nacional de Contos de Ficção-Científica (2007) da revista SCARIUM. Letrista sob o pseudônimo de Paulo Flexa, tem parcerias com os compositores Luiz Guedes & Thomas Roth, Beto Guedes, César Rossini, Madan, entre outros.
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