Eu acordo com um cu de gato na cara. O puto sabe exatamente a hora dos meus primeiros movimentos, se posiciona em cima de mim e levanta o rabo. Mas já acordei com coisa pior e sem grana pro táxi. Andava enfiando meu salto nas imperfeições das calçadas detonadas e me ofereciam carona lambendo os beiços como se eu fosse frango de padaria. Ele apareceu pela janela quando eu assistia a um filme dos três que a velha tinha ali ainda em VHS. Ela jurou que jamais a casa seria minha porque seu marido, meu avô, não merecia vagabundagem do próprio sangue. Não era o que mostravam as fitas e de qualquer forma eu não me lembrava dele. O gato tem um pelo cinza comprido, parece prata às vezes, e eu entro na mercearia e o moleque que atende me arruma umas latas de atum em troca de eu levantar a minha blusa e chacoalhar um pouco, como ele pede. Tenho verdadeiro asco a atum enlatado mas o gato se esbalda. Ele se deita com a barriga pra cima e fica lá sonhando com nada. Bem em cima da poltrona da velha, com estampa gasta e cheiro de sopa de ervilha. Antes eu olhava pra lá e tinha uma sensação esquisita, e quando comentei isso com um dos caras ele disse que tem gente que vive mesmo depois de morta. Acho que ele tinha razão. Agora o gato fica lá e tudo ficou melhor. Os filmes todos tinham aqueles chuviscos e um ruído que não parava. A velha deve ter achado que era uma boa maneira de esconder o passado, e engasgou pra valer enquanto me pedia pra me livrar de vez deles. Eu só sorri e esperei a coisa feder de fato antes de chamar o serviço funerário.
Ela tava lá tentando tirar a calcinha da bunda, perguntei se queria ajuda, levei uma cotovelada no olho, entrei no ônibus e alguém lá fora gritou "lincha" e alguém lá dentro gritou "bicha é você", depois ficou todo mundo quieto pra ouvir o "olha o kit kat da nestlé, ó, é um por dois e três por cinco, ó", uma velha comprou, disse que tava vencido e o rapaz respondeu que "pode ver que tá no prazo, ó", mas ela cuspiu tudo e nem viu que a janela tava fechada, e uma criança exclamou "que merda" e tomou um tapa na boca e olhou solidária pro meu olho roxo, eu respondi que daqui pra frente tudo piora e o ônibus freou com tudo e voou criança, velha, caixa cheia de kit kat da nestlé, ó, parecia reality show de suruba onde ninguém goza, nem fingir consegue, uma moça perdeu um brinco e saiu engatinhando até que ouviu barulho de zíper e gritou "sai fora, tarado", mas não era, era alguém abrindo a bolsa pra ver se tinha quebrado o frasco de perfume, tinha, empesteou tudo e um meio bêbado acordou e pediu mais uma dose daquilo ali, enfiaram um kit kat em sua boca, ó, e ele chupou com o que o fulano que ajeitava os óculos chamou de expertise, para a moça do brinco era tudo nojento demais e ela pediu pra descer e o motorista disse que não era parada e que a "cocota que esperasse", a criança fez cara de quem queria saber o que era cocota mas ficou calada, acho que ninguém sabia e que ninguém quer saber mais nada porque já é foda descer com a vida no ponto certo, cacete, passei dois, desci e atravessei a rua para esperar a volta, mas já era tarde demais pra qualquer coisa.
E então me perguntaram o que eu fazia da vida. Eu espirro. Eu espirro o tempo todo. Eu espirro quando levanto, eu espirro quando vou dormir, eu acordo no meio da madrugada para espirrar e espirro quando acordo pra valer. Eu espirro enquanto o único cheiro que eu suporto no mundo, o de café, toma a casa toda. Eu espirro por claustrofobia porque a casa toda é muito pequena. Eu espirro quando abro o armário e encontro uma "nossa, há quanto tempo eu não uso". Mas a roupa não entra mais e eu espirro com a decepção ou naftalina. Eu espirro com o cheiro da vestimenta dos outros na rua e com seus aromas comprados, sejam eles de colônia barata ou Chanel de qualquer número. Eu espirro na fila da padaria quando cretinos pagam chicletes no cartão com CPF na nota. Eu espirro quando me perguntam onde fica a rua tal. Eu espirro no elevador e as pessoas se afastam e grudam na parede como lagartixas com medo de novas epidemias. Eu espirro quando me indicam homeopatia. Uma vez espirrei no meio de uma transa em que eu estava por cima. O cara gostou, disse que dava uma contraçãozinha. Sumi de sua vida e fui espirrar em outros lugares. Eu espirro quando me dizem saúde, Deus te abençoe ou é gripe? Benegrip. Já tentei espirrar mergulhada numa piscina, entrou água no meu nariz, ardeu tudo, foi horrível. Eu espirro quando cortam grama até em desenho animado. Eu espirro no cinema justo na hora que rola um tiro e me mandam um shhhhhhhhhh. Já espirrei numa chatice de ópera que me levaram uma vez, achei a melhor parte, em ópera morre todo mundo e todo mundo já sabe. Quando eu era criança me diziam que se prendesse o espirro saltavam os olhos. Tentei patrocínio de marca de papel higiênico porque lencinho ultrafino de caixinha ou saquinho é para amadores. Praticamente me mandaram à merda. Eu disse que usaria para isso também. Não adiantou.
Ando rezando um pouco demais, pra santo que não existe. Santo inventado, sem milagre, sem dia certo e sem bata. Acho que usa jeans puído no cavalo, como uma velha Wrangler que eu tirei do armário quando procurava um hamster que eu havia esquecido que tinha. Entrei naquela loja de animais porque previa um assalto, essa paranoia não me deixa nunca. Eu vejo armas na minha nuca, facas no meu pescoço e ainda mãos imensas que me sufocam. Não tenho nada pra ninguém levar. Nunca tive. Por isso o vendedor me ofereceu o pequeno rato disfarçado, porque todo mundo é médico da solidão alheia. Eu aprendi a andar com cara de pânico e inspiro ar com força exagerada. A única vez que eu viajei de avião roubei um saquinho de vômito. Fiquei fissurada naquelas instruções de como usar, imaginei que alguém em algum lugar realmente se preocupasse com os outros. Dobrei com a delicadeza de um origami e guardei numa bolsinha de crochê que me penduravam no ombro. Ao meu lado havia pernas que balançavam sem parar e eu não me lembro do resto. Sei que devia ter um corpo sobre elas, é assim que as pessoas são, tinha até uma canção de ninar que ensinava tudo isso, com uma rima que me fazia rir até adormecer. Depois não foi mais assim. Virou tarja preta, novas receitas para a mesma insônia e o animalzinho correndo pra lá e pra cá e metendo pra valer a cabeça nas paredes. Devia ser um pouco cego ou era assim que espantava o tédio. Às vezes ainda me pego pensando nele, em como sua voz que parecia vir do compartimento de bagagens de mão me dizia que estávamos quase chegando. Que era um lugar lindo e que eu ia ser feliz. Quando ele se afastou eu tive a sensação de que o humano e o sagrado eram a mesma coisa e usavam o mesmo número. E que todos, um dia, partiam.
Fim
Game over
Validade vencida e alto risco de intoxicação
Atenção! O quarto será evacuado em 5 minutos
Cheiro de carne esquecida debaixo do banco do carro
Apodrecemos sem querer, baby
Engaiolamos o casal de periquitos coloridos
Que chamam de pássaros do amor
Nenhum de nós comprou alpiste
Nossos pôsteres são os mesmos do filho que nunca planejamos
Play it again, Alice
One look could kill
My pain your thrill
Umidade relativa do ar: inexistente
A gente soltando faíscas pelos poros secos e sujos
Tesão: confiscado por um contista aposentado da revista Status
Impotente até que se prove o contrário
E se levante, também, o júri
O júri está ausente!
Nós dois: decretados incompatíveis pela vigilância sanitária
Os agentes saíram antes que se dessem conta
Dos armários abarrotados de tralhas e sacos de mistura para cimento
É, baby
Um de nós tem intenções deliberadamente criminosas
Juntou os trocados
foi pra banca da esquina
comprou uma Playboy
e meia dúzia de cartolinas
Virou ativista
armou um piquete
Emendou uma na outra
QUEM QUER ME FAZER UM BOQUETE?
Chamaram a polícia
atentado ao pudor
Mas havia vaselina
espalhada ao seu redor
Caiu todo mundo
como peças de dominó
um velho gozou feliz
já não se sentia tão só
Chegou o publicitário
agora levaria um Cannes
"o gel que levanta tudo
ou funciona ou que se dane"
A rua foi fechada
a multidão ficou irascível
— Que diabo de palavra é essa?
— Não entendi, tava inaudível
A imprensa internacional
fez a festa num tabloide
mas por aqui só rolou meme
com a hashtag "somos todos fróide"
O escroto do zelador sabe da gambiarra no encanamento e me chantageia. Me diz que é mera questão de negociar um cano por outro enquanto toca suas bolas de uma mão para a outra com pequenos tapas. Alega que elas já fizeram um par de gêmeos na barriga de outra trambiqueira mas que ele não sabia quem era um e quem era outro. Deixou todos para trás já que não é o tipo de confusão que quer pra sua vida. Mas fala em me encher de óleo e me virar do avesso na casa de máquinas do elevador. E ri quando fala de porcas e parafusos, que gente devia se enroscar do mesmo jeito ao invés de ficar no nhéque nhéque do colchão pulguento que ele aluga quando tá de serviço lambendo o bocal do interfone pra avisar que a encomenda chegou. Rezou um dia só pra que não fosse problema de "póstata" como havia acontecido com um tio que era irmão do avô e morreu disso depois de matar o outro que ia viver. Me conta tudo, acha que histórias de vida dão tesão nas pessoas e que a inquilina do 71 já engoliu uma a uma sem cuspir. Perguntei o que ela havia feito e ele respondeu que andava roubando gasolina dos carros sem alarme durante a madrugada. Tudo isso pra sustentar moto de vagabundo, ele acrescentou. Subi. Eu já devia condomínios demais e nunca fui com minha própria cara. Me pediu para pendurar no pescoço a placa "Antes de entrar no elevador verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar". Apertou meus seios como botões de sobe e desce e riu pra valer. Disse que onde nasceu havia um ditado de que cada um nasce pro que deve ser. Fechei os olhos com força, embora mal houvesse luz naquele lugar.
Ele tinha cara de cantor de tango e me chamou pra ir prum canto. Eu disse que não, só queria ficar em paz ali como meu shaken not stirred mas aquele do tempo do Sean Connery, pensando que eu nunca topei muito o Timothy Dalton e que Daniel Craig é gostoso demais pra que eu preste atenção na história. Mas ele insistiu e me passou um cartão "Isso pode mudar sua vida, garota". O mundo sempre pensa que quem está sentado num balcão de bar está à beira do suicídio ou de ficar sem luz por não ter grana pra pagar a conta. Ou seja, ambos resultam em escuridão. Enfim, dei uma olhada no cartão que ele empurrou pra mim e li "BJ Dogs". Não dei bola nem perguntei do que se tratava porque me parecia óbvio. Diante de minha indiferença ele puxou um dos pelos da sobrancelha e disse "Não é o que você está pensando, o lance é com cachorros". O lance é sempre com cachorros, pensei. Teve o Roger Moore também, mas eu nunca consegui decidir se eu gostava ou não dele. "O negócio tá progredindo bastante, você devia ao menos me ouvir". Mordisquei uma azeitona e fiquei jogando de um lado pra outro na minha boca. "É que suas mãos me parecem perfeitas e a coisa não leva mais que alguns minutos". Finalmente encarei aquele protótipo de Alberto Podestá e ele me disse que o lance era punhetar cachorros não castrados, que isso os acalmava, como acontecia com os homens, com a diferença que "o cachorro vai ficar de quatro por você". Era esse o genial slogan que ele soltava antes da gargalhada. Engoli a azeitona de vez e disse que iria pensar. Ele pegou uma caneta e anotou um outro número de telefone. "Só dou esse pra quem eu considero uma grande promessa". Guardei o cartão e dei uma olhada nas minhas mãos. Talvez o mundo esteja certo sobre o real motivo da gente estar num balcão de bar. Mas não agora, há rumores de que o próximo 007 será Idris Elba e... ai!
Acho clitóris uma palavra de merda
Mas Lacerda gosta
De chupá-lo como polpa
de fruta do conde
Depois recita assim
"Chegue cá, carocinho do papai"
E eu me tremelico toda
Ai, Lacerda
Agora vai!
(para Adelaide do Julinho)
Eu não tenho WhatsApp
Eu nunca assisti Game of Thrones
Eu não disquei M para matar mas já tive vontade
Eu jamais pensei que me apaixonaria perdidamente por gatos
Eu sinto saudades infinitas do meu cachorro
Eu não entro em briga, opto pela guerra fria
Eu conto a minha vida para manicures
Eu sofro de preguiça crônica irreversível
Eu sou obcecada por matar mosquitos com raquete elétrica
Eu já levei mais pés na bunda que as estrelas que Bilac ouvia
Eu tenho dois sonhos que se repetem há anos
Eu queria morrer em um lugar lindo que vi num filme de terror
Eu já tive leve tendência à cleptomania
Eu me machuco com extrema facilidade
Eu já encarei barras pesadas demais
Eu tenho um epitáfio que é "a vida que quase deu certo"
Eu recuperei sentimentos que havia perdido por estupidez
Eu mandei a dieta à merda conforme o esperado
Eu deveria tatuar a palavra "frágil" em diferentes idiomas
Eu ainda não tenho cortinas
Eu já me meti a ser salva-vidas fora da água
Eu voltei a ler livros grossos sobre sagas do dia a dia
Eu morro de rir com o meu neurologista
Eu errei sucessivamente tentando acertar
Eu cheguei a não querer mais
Mas aí eu aprendi a envelhecer
setembro, 2016
Adriana Brunstein é Ph.D. em física, escritora, dramaturga e roteirista, com trabalhos em várias vertentes e meios da comunicação. Ganhou o prêmio HQMIX 2008 de melhor roteirista nacional pelo roteiro da Graphic Novel Prontuário 666 — Os Anos de Cárcere de Zé do Caixão e foi contemplada pelo 13º Cultura Inglesa Festival com o curta-metragem Olhos de Fuligem. Publicou o romance Estado Fundamental pela Panelinha Books (2012), participa da antologia de contos sobre a loucura Casa de Orates, da Editora Mondrongo (2016), e pela mesma editora publica Pequenas prosas de conteúdo frágil.
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