1 – Corra, Ângela!
A atmosfera do dia, as sobras no imaginário da noite.
Tudo construído, palmo a palmo, pela cabeça dos bichos com seus cérebros incipientes.
Nesta manhã, abrir as janelas.
À noite, fechá-las.
Eis o suco dos sonhos.
2- Sonhe, Ângela!
É comum procurar abrigo quando uma grande tormenta se avizinha.
Ângela não: a água, ela sabe, mata a sede da terra.
Nuvens carregadas prenunciam a interrupção de fluxos, desabamentos de encostas, transbordamentos.
Voam as telhas do paiol e perde-se todo o fubá.
A tempestade íntima de Ângela molha suas roupas de baixo.
3 – Salte, Ângela!
Levanta-se entediada. Descasca as frutas e mais uma vez perde-se em meio a sumo e louça.
Céu de abril, sol de outono: pensa a melhor forma de mudar as ervas, pois não há mais espaço aqui.
Ângela, sentada na grama, não teme seus pensamentos.
4 – Respire, Ângela!
Sai sem levar o que quer que seja.
É preciso estar nua, para deixar o que não se faz mais presente.
A casa do coração está vazia e desaparecem as linhas das mãos.
Na estação das chuvas, dos olhos de amêndoa, jorra o leite de Ângela.
5 - Coragem, Ângela!
Ângela trôpega abre a cancela: bate com o punho fechado na madeira do portão.
A hera, o muro alto da infância, preguiça de domingo, céu modorrento.
Colhe as flores ancestrais e as esquece.
O sol ainda vai alto no céu e Ângela está clara e luminosa.
Queria muito que ela chorasse agora, mas o luto é um processo muito particular.
6 – Chore, Ângela!
Um dia depois de outra noite e o universo em chamas sopra de novo o bafo quente dos sonhos.
No espelho da sala, Ângela:
peitos flácidos, rosto pálido, rímel escorrendo até a boca.
Com as unhas cravadas no braço descarna-se.
O prontuário médico não ultrapassa o óbvio: o céu de Ângela é um mar fechado em concha.
Se eu tivesse um lindo vestido vermelho como o dela, certamente não choraria.
7 – Mate, Ângela!
Sentada na grama, Ângela perscruta o cheiro do jasmim.
Empilha as caixas.
Tem o peito cavado como se dele tirada toda a terra e a raiz profunda que sustenta os dias.
Vapor da dúvida, silvo de serpente, correntes que arrasta.
Muitas moscas a enfrentar no asfalto.
Nas caixas deixa inscrito:
Alma de vidro.
Este lado para cima.
8 - VIVA ÂNGELA!
A libélula predadora sobrevoa o lago.
Um helicóptero sobrevoa a cena.
À noite, a infância salta o muro e Ângela mistura-se à grama do jardim.
Recolho-me:
as sombras são escravas do sol.
março, 2016
Adriana Versiani dos Anjos (Ouro Preto/MG). Publicou vários livros de poesia, entre eles, A física dos Beatles (2005), Livro de papel (2009), A lâmina que matou meu pai (2012), Três pedras e uma dose de palavra (2014).
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