©sylvia makris
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

1 – Corra, Ângela!

 

 

A atmosfera do dia, as sobras no imaginário da noite.

Tudo construído, palmo a palmo, pela cabeça dos bichos com seus cérebros incipientes.

Nesta manhã, abrir as janelas.

À noite, fechá-las.

Eis o suco dos sonhos.

 

 

 

 

2- Sonhe, Ângela!

 

 

É comum procurar abrigo quando uma grande tormenta se avizinha.

Ângela não: a água, ela sabe, mata a sede da terra.

Nuvens carregadas prenunciam a interrupção de fluxos, desabamentos de encostas, transbordamentos.

Voam as telhas do paiol e perde-se todo o fubá.

A tempestade íntima de Ângela molha suas roupas de baixo.

 

 

 

 

3 – Salte, Ângela!

 

 

Levanta-se entediada. Descasca as frutas e mais uma vez perde-se em meio a sumo e louça.

Céu de abril, sol de outono: pensa a melhor forma de mudar as ervas, pois não há mais espaço aqui.

Ângela, sentada na grama, não teme seus pensamentos.

 

 

 

 

4 – Respire, Ângela!

 

 

Sai sem levar o que quer que seja.

É preciso estar nua, para deixar o que não se faz mais presente.

A casa do coração está vazia e desaparecem as linhas das mãos.

Na estação das chuvas, dos olhos de amêndoa, jorra o leite de Ângela.

 

 

 

 

5 - Coragem, Ângela!

 

 

Ângela trôpega abre a cancela: bate com o punho fechado na madeira do portão.

A hera, o muro alto da infância, preguiça de domingo, céu modorrento.

Colhe as flores ancestrais e as esquece.

O sol ainda vai alto no céu e Ângela está clara e luminosa.

Queria muito que ela chorasse agora, mas o luto é um processo muito particular.

 

 

 

 

6 – Chore, Ângela!

 

 

Um dia depois de outra noite e o universo em chamas sopra de novo o bafo quente dos sonhos.

No espelho da sala, Ângela:

peitos flácidos, rosto pálido, rímel escorrendo até a boca.

Com as unhas cravadas no braço descarna-se.

O prontuário médico não ultrapassa o óbvio: o céu de Ângela é um mar fechado em concha.

Se eu tivesse um lindo vestido vermelho como o dela, certamente não choraria.

 

 

 

 

 

7 – Mate, Ângela!

 

 

Sentada na grama, Ângela perscruta o cheiro do jasmim.

Empilha as caixas.

Tem o peito cavado como se dele tirada toda a terra e a raiz profunda que sustenta os dias.

Vapor da dúvida, silvo de serpente, correntes que arrasta.

Muitas moscas a enfrentar no asfalto.

Nas caixas deixa inscrito:

Alma de vidro.

Este lado para cima.

 

 

 

 

8 - VIVA ÂNGELA!

 

 

A libélula predadora sobrevoa o lago.

Um helicóptero sobrevoa a cena.

À noite, a infância salta o muro e Ângela mistura-se à grama do jardim.

Recolho-me:

as sombras são escravas do sol.

 

 

 

março, 2016

 

 

 

Adriana Versiani dos Anjos (Ouro Preto/MG). Publicou vários livros de poesia, entre eles, A física dos Beatles (2005), Livro de papel (2009), A lâmina que matou meu pai (2012), Três pedras e uma dose de palavra (2014).

 

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