Início
... E não havia nuvens
E não havia homens
O mar reinava absoluto
E não era possível
Distinguir o que era céu
Do que era mar
— E tampouco
Onde começava um
E onde terminava o outro —
Porque as distinções
Ainda não existiam.
E não havia deuses
E não havia homens
A linguagem não podia nos aprisionar
Porque ela também não existia
E não havia papel
E não havia tinta
E os poetas sequer existiam
E não havia nada mais
Do que já não existia por aqui
E apesar de não haver
Nuvens, homens ou deuses
E apesar de não haver papel,
Tinta ou poetas
O mundo não era um lugar triste
Porque havia o mar
E havia a poesia
E a poesia era tudo.
Oceano
Eu não busco a linguagem;
Tampouco as palavras.
A linguagem é concreto;
As palavras, oceano...
Nefelibata
As palavras se escondem
Nas nuvens
Ao pé
Do ouvido de Deus.
Efêmera
A Terra boia no oceano negro
E estrelado
Ela dança e rodopia;
Ah! Como é bela
E frágil...
A Terra é uma bolha de sabão.
Reforma
Para reformar, é preciso destruir
Destroçar os cacos
Derrubar colunas
Inserir vigas
Assentar o piso
Com cimento
E com a espátula
Lacrar o túmulo.
Perspectivas do de cujus
Em pé no caixão
— Com as mãos sob o ventre —
Observa-nos com seu semblante cerrado e corado.
Para ele, estamos deitados
— pálidos —
Nós, que já morremos.
Uma andorinha
Uma andorinha só
É mais livre que
Uma revoada
Que não sabe para
Onde voa.
Mais importante que o voo
É a liberdade.
Wabi-Sabi – Oceanário de Lisboa
Por mais belo
E confortável
Que possa ser
Por mais aprazível
E próximo ao habitat
Se possa reproduzir
Um aquário
Será sempre
Um aquário
Uma hora
Os peixes
Vão se cansar
Dos espelhos refletidos
Das mentiras
Da floresta subaquática
Uma hora
Os peixes
Vão se cansar
Dos sons
Vindos
Das máquinas
Fotográficas
Uma hora
Os peixes
Vão se cansar
Dos pseudossons
Da natureza
E dos 78 troncos
De árvores
Da Malásia.
Uma hora
Os peixes
Vão se cansar
Das nossas caras.
Pelo caminho
Que tristeza ver as cruzes com flores pelas estradas
As borboletas voando
Sem vento
As folhas paradas
Que tristeza ficar
Pelas estradas
Gralhas
Os poetas
— Como gralhas —
Disputam
Aos tapas
As migalhas
Deixadas;
Voam baixo
Rastejam
São cobras
Sem asas.
[Poemas de Alçapão. Rio de Janeiro: Oito e Meio, 2016]
junho, 2016
André Ladeia é poeta e procurador municipal. Autor de Suave como a morte (Penalux, 2014) e Alçapão (Oito e Meio, 2016).
Mais André Ladeia na Germina
> Poesia