Homenagem a Pixinguinha
Pois é no choro
no chorinho aguado da vitrola antiga
que a minha alma lava
os seus esquecimentos.
Eu queria muito…
Eu queria muito,
muito ser Deus,
para me moldar
à canção do tempo.
Autorretrato
Jamais guardei o nome de todos os livros.
Não saberia o que velar:
se areia marcada ou poeira dissolvida.
Eternidade não consiste em ser eterno,
mas no frêmito da lembrança que
deslumbra o esquecimento.
Assim como o mar recorda a ionização do trovão,
cultivo a memória como um gole d’água.
Escrevo à margem, beirando as entrelinhas.
E não ouse perguntar o que escuto ou vejo
— sou surdo como as pedras
vislumbro a brisa pelo farejar.
Suicídio Literário
Debruçados sobre o papel,
muitos dizem morrer a cada linha.
Uma dor de parto e angústia que só
em títulos como A Ilíada encontramos.
Suicidam-se com o peso
da criação e atravessam
páginas em liturgias.
Debruçado sobre o papel,
pelo contrário,
vivo.
Brasserie
Entre uma xícara de café
e talheres lúcidos
um origami de guardanapo sujo
reflete uma rosa dobrada.
Qualquer palavra seria vaga
e tola de se dividir à mesa.
Dois poemas esquecidos
I
O medo é uma invenção
de nuvens.
II
A lembrança é a
única a se olvidar.
Estados
abrigo
flor qualquer
no estômago
adubo dunas
preservadas
nos reflexos
acorrento qualquer
música no cansaço
do palato:
mantenho em estado
de universo o denso
corpo
poema.
Ungido
O poema
deve ser
ungido de
textura
toda a gordura
extirpada pelo
afiado
do grafite
filetado contra
as fibras
para não
endurecer
selado — para
que no seu interior
durmam os sucos
da palavra.
Terceto iluminado por Bashô
Teus olhos de cerejeira
são dois lagos onde
semeio meu reflexo.
Haikai prateado
Lua cheia —
o mar é
infinitamente pequeno
*
Outono raso.
O lilás desabrocha
na tez do lago.
setembro, 2016
Angel Cabeza nasceu no Rio de Janeiro. É poeta, cronista e editor. Trabalha como coordenador editorial e produtor gráfico. Publicou Sempre existe um último momento (Hífen Editorial/ed. autor,2011), Vidro de guardados (ed. autor,2010). Integra as antologias 29 de abril: o verso da violência (Patuá, 2015), Escritores da Língua Portuguesa, Vol. I (ZL Editora, 2014), Qasaêd Ila Falastin — poemas para a palestina (Patuá, 2013), Geração em 140 caracteres (Geração Editorial, 2012) e Agenda poética celacanto (Celacanto, 2011). Assinou uma coluna de crônicas no blogue editorial da editora Alta Books entre 2012 e 2013 e possui textos publicados em várias revistas literárias, no Brasil e na Espanha, entre elas Zunái, Eutomia, Cronópios, Odara (UFRJ), Subversa, Saúva, Cuarto própio, generación espontánea. Costuma perseguir silêncios e se encantar com o ínfimo.
Mais Angel Cabeza na Germina
> Poemas