[imagens de michael paul smith]
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

 

 

~

 

Antes meu obtuso mar ao avesso

E suas corcovas dançarinas

 

 

 

 

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A solidão tem coisas que a gente só sabe

Depois que morre

 

 

 

 

~

 

Ainda que existam risadas ancestrais

Hoje continua sendo

Um dia provisório

 

 

 

 

~

 

Cobra

Sua cauda oblonga

Cobra nada

 

 

 

 

~

 

Coisas secretamente acontecem

No espaço entre

O espelho e o ar

 

 

 

 

~

 

A verdade não se comunica

 

 

 

 

 

 

 

 

A OUTRA NOITE

 

 

O dia inteiro fui um Sísifo da burocracia.

Cantarei como um pássaro devoto da Natureza.

Cintilam estrelas no jardim da minha solidão,

depois do poente chuvoso de estranha saudade.

Caminharei com unhas grandes de boêmio

e com olhar lunático.

Cumprirei o meu destino de poeta.

Buscarei algum recanto, em silêncio, ao ar livre;

seja na fogueira do dia

— de ilusão e desencanto —,

seja na noite implacável da inquietação lírica.

Que psiquiatria diagnosticará

esses meus desvelos?

Caminharei com perplexidade

e desfrutarei da vida, até a última gota de néctar.

Nada me afastará do meu desígnio.

Não deixo que me importunem

as imposturas dos tiranos.

Cantarei a liberdade e a beleza.

E quando vier a Outra Noite,

só peço que seja suavemente,

tal o crepúsculo de hoje.

 

 

 

 

INCANTESIMO

 

 

Veneza flui nos barcos, à flor da correnteza,

esmaltada de gloriosos emblemas.

Desde a primeira flutuação,

nestas passarelas aquáticas,

recordei que sonhara com os frescores irisados,

palácios cromáticos e pontes;

tal um arco-íris de alegorias.

Antes de nascer, eu já me sonhava

habitante destas casas de alicerces,

imersos na diluição cintilante.

Vem de remoto essa visão

de apoteóticos esplendores.

Deambulo, desde outrora,

por estas fachadas de douradas estampas,

que me inspiram arrebatamentos místicos.

Fui, talvez, aquele sarraceno

que o apóstolo salvou, na arte de Tintoretto.

Refugio-me no Giardini Ex Reali,

à margem de uma vereda de água verde.

Saio a caminhar e, diante de mim,

esplende San Giorgio Maggiore,

com sua torre heráldica.

À direita, La Salute: concha de mármore indelével.

A delicadeza de Vivaldi aprecia-se nos umbrais.

Atravesso o campo de Santa Maria Formosa.

Tomo a lancha e já me encontro

em Fondamenta delle Zettere,

Veneza ornamentada de filigranas.

Sob a cúpula gris de Sant’Eufemia,

eleva-se a Lua rósea.

 

 

Veneza, 07 de abril de 2012.

 

 

 

 

CHUVA

 

 

Nostalgia da chuva na tarde

que declina entre sombras.

Melodia triste na solidão que sonha.

Chove serenamente,

não obstante os rumores da cidade.

Sento-me, ao abrigo da intempérie.

Vejo as poças de água,

espelhando resquícios de claridade.

A chuva desce como um sacramento úmido,

lavando a terra e limpando o ar.

Respiremos.

A chuva é um bálsamo frio,

que me faz lamentar a brevidade do dia

e me consola com a arte de contemplar.

A única maneira de estar no centro

é deixar tudo fluir.

Observo, sentado à porta de um prédio,

o movimento das rodas:

no centro está o ponto de equilíbrio.

A espiral do tempo parece imóvel.

 

 

 

 

DOM SEVERO

 

 

Dom Severo só me mostra uma nuance

da coisa desejada.

E não me deixa mais opção,

que um tédio de monarca destronado.

Uma espécie de mágoa do destino,

que tento remediar, com rebeldia redentora.

Dom Severo me entrega apenas

essa contraditória luta pelo direito ao delírio.

Esse medo, como esperança desesperada.

O seu olhar, impassível no nadir,

é um colosso que perfura o azul

e entra na consciência da gente.

Dom Severo me conduz a um recanto,

à sombra do mormaço,

onde a poesia é um repouso efêmero.

Dom Severo fez um jardim para o homem habitar,

e, ao vê-lo triste, inventou a mulher e o alcaloide.

O autor de tudo,

em cujo templo os poetas exercem sacerdócio,

criou manhãs disciplinares e tardes lúdicas.

Estabeleceu a liberdade e a justiça com amor,

como a beatitude de andar sorrindo, sem motivo,

e a maravilha de peregrinar,

vertiginosamente,

pela cidade.

 

 

 

 

DUALIDADE HUMANA

 

 

No tempo dos primeiros povoadores do Planeta,

o homem que escavava o chão

atentou contra o que passeava com as ovelhas.

Desde então, o homem pragmático

sente inveja do homem contemplativo.

E, desde aqueles tempos,

o segundo anestesia os sentidos

para suportar os ofícios que o primeiro inventa.

Desde então, o homem contemplativo

é forçado a sacrificar a sua vontade

e servir ao seu opressor.

Precisa fazer sempre as mesmas coisas

e ir aos mesmos lugares todos os dias.

Sua única vindicta

é um momento de liberdade secreta,

que ele desfruta com plenitude.

Seu único consolo é uma fuga temporária,

entre dois instantes de desgosto.

 

 

 

 

SEDE DE ÊXTASE

 

 

Digo não ao tédio, na manhã enigmática,

que torno prazerosa.

Ainda que somente os pássaros me entendam

(e eles são invenções esotéricas dos anjos),

transito pelo meu caminho arborizado.

O estio faz o dia cálido.

Uma preguiça libidinosa entorpece tudo.

Viver assim:

sem complexo de culpa e sem rancor.

Que importa o que me disse ontem algum ignóbil?

A sede de êxtase provoca insensatez,

mas ensina deliciosas introspecções.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

FOTO 003: APESAR DE FREUD

 

 

Há quem olhe para o sonho e não veja nada.

Apenas ri do aparente absurdo

ou reduz a interpretação ao imediato.

Há quem olhe para as 2.014 faces

de uma  poesia e nela só veja o chão.

Todavia, há quem olhe para o solo

e nele consiga enxergar o múltiplo.

Encontrar as estrelas no céu é fácil.

Vê-las andando nas calçadas

requer sutileza de espírito.

 

 

 

 

FOTO 004: ÁLBUM SEM FAMÍLIA

 

 

Fotografe:

álbum sem família,

dela não tenho os laços.

Tenho mais:

amor em meus braços.

Sou aquele que não compreendes,

mas que, em beijos e amassos,

inteiramente te prende.

Sou teu carnaval,

serpenteado de confetes.

Teu Gato Negro, Merlot:

vinho fino, tinto, seco e chileno.

Ateu,

a Deus

e até

teu portátil

Hamlet.

 

 

 

 

FOTO 017: NO CORAÇÃO DE MADRI

 

 

Lamentáveis palhaços contemporâneos

se vestem de marinheiro americano sem cabeça,

Drácula, Mickey Mouse e outros personagens.

As imagens alienígenas e decadentes

são estimuladas pelas fotos de turistas risonhos.

Os fantasiados são um contraponto surrealista,

perante a austeridade e pretensão artística

da maioria dos prédios de Madri;

quase todos, históricos e neoclássicos.

Imigrantes do Terceiro Mundo vendem de tudo,

inclusive, cornetas e assobios irritantes.

Em qualquer rua, humanas estátuas vivas e

músicos, de variado grau de talento.

A crise na Espanha assola,

mas procura-se disfarçar o pedido de esmola.

Depois de caminhar pela Puerta del Sol e

de ter visitado o Palácio Real,

encontro-me agora na Plaza Mayor.

Vejo-me cercado por arcos do século XVII,

em amplo e aberto pátio quadrado,

rodeado por lojas e mesas de restaurantes.

Um mundo etílico, em burburinho,

contorna o sóbrio e pétreo monumento a Felipe II.

Imagem daquele que construiu a soberba Plaza,

para glória e prestígio de seu próprio reinado.

Em 2012, o vento frio de novembro é danado.

Não há vinho tinto e seco de Rioja

que esquente o corpo

e, muito menos, que absolva o espírito.

 

 

 

 

FOTO 018:

MOLEQUE AO SOL ENTRE FLANELAS

 

 

Pé no freio,

bomba de gasolina.

Perto do fim da linha,

a vista embaça.

Sob forte mormaço,

um moleque Ricardo,

na janela do carro,

a flanela passa.

Tiro os óculos.

Esfrego na camisa

meu corpo de vidraça.

O garoto sorri,

sorrio de volta.

Mas nada limpa a minha dor.

 

 

 

 

FOTO 031: A TARDE DESNUDA

 

 

Encontro, encantado, a tarde.

Descubro-a de repente,

recostada no espaldar de uma cama, no El Prado.

A tarde é clara e tem o peito perfumado.

Os alados bicos de seus seios tremulam

junto à linha do horizonte.

A tarde é morena,

mora em Ipanema

e tem a fragilidade de um dia.

Mistura de paisagem que flutua,

mulher nua e tela de Goya.

 

 

 

 

FOTO 100: MESA PARA QUATRO

 

 

Sorrisos, brindes, festa.

Livro pronto, ao ponto.

Todo lançamento

é também uma despedida.

Muito serenamente,

nesta mesa,

em que somos quatro,

sirvo o meu prato

e fotografo o meu adeus.

 

 

 

 

 

 

 

 

ORAÇAO I

 

 

Deus é tempestade que não passa.

 

O Sol vive entre as águas

: peixe distraído e diáfano.

 

Eu morro dócil

e diariamente me afogo

 

Entre as raízes

que nascem dos meus braços.

 

Não mais a Terra Prometida

: só a terra a ser morrida.

 

Eu: palavra que se debate

entre o nada e a liberdade.

 

Deus é uma vírgula, uma espécie de saudade.

 

 

 

 

RASTROS

 

 

                   Para Daniel Senise

 

 

O que não tem Face

(agonia e êxtase)

queima os furores

eternos dos girassóis.

Fantasma fugidio,

não se prende

ao infinito;

não se explica,

como poesia ou rio.

 

O que não tem Face

(verbo e carne)

não se traduz

nos jornais.

Imprecisa forma,

nos impele ao sonho,

ao medo,

ao impossível.

 

O que não tem Face

(passagem e falta)

não é nada.

Inexiste como vida

e nos faz mais

humanos

em suas fumaças

de desprezo

e engano.

 

O que não tem Face

(presença e ausência)

não tem vestígios

ou marcas.

É sombra

sem imagens:

memória

e esquecimento.

 

 

 

 

DENTES

 

 

Afogada no copo

Na pia

Líquida

A dentadura

Bebe o vazio

 

Na cama

Sorriso lento

Sonha a mãe

Os dentes antigos

 

Mastiga o tempo

 

 

 

 

FATAL

 

 

Inútil essa tarde,

a dor no corpo,

essa febre.

 

As tarântulas nos quintais

abrigam a hora errada com o veneno certo.

 

Inútil o pesadelo,

o sonho,

o amor e seu tédio.

 

Inútil o verso, o medo,

o fracasso, o mistério.

 

Tudo tem seu tempo errático.

 

Os deuses nos telhados

acendem as velas certas pro defunto exato.

 

 

 

 

DAS POSSIBILIDADES

 

 

                   Para Ana Paula Brucker da Silva

 

 

Não lamentes o que és

ou o tempo que poderia ter sido.

O passado não existe

e o que és é futuro.

 

O amor é sempre a falta de.

O intervalo entre.

A ausência de.

A hora do que seria.

Nunca a completude,

mas o verbo do que poderia.

O amor é sempre

a impossibilidade do possível.

 

Não chores nem lamentes.

Tua cidade te espera.

Tua cadela te late.

Teu silêncio é tua música.

Tua cama é tua calma.

 

Pacifica teu coração

que, apesar de tudo,

bate.

 

O amor pode não ser,

mas a vida é sempre

a possibilidade do impossível.

 

 

 

 

APENAS UMA RAZÃO

 

 

Escrevemos para agarrar

o que não sabemos.

 

O que não cabe em nós

mas intuímos.

 

Escrevemos para possuir

o que não vemos.

 

Alguma coisa movediça.

Luz intranquila.

Boca imensa a nos engolir.

 

Escrevemos para agarrar a vida.

 

 

 

[Poemas de Quadrigrafias. Rio de Janeiro: Uapê, 2015]

 

 

 

junho, 2016

 

 

 

Elaine Pauvolid (Rio de Janeiro/RJ, 1970). Poeta e Artista Plástica. Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Colaborou como resenhista do Caderno Literário de O Globo/ RJ de 1999 e 2009. Publicou três livros de poesia e, a partir de 2013, participou de exposições coletivas, tendo realizado sua primeira individual em 2015, na Galeria Caixa Preta/RJ.

 

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MÁRCIO CATUNDA Ferreira Gomes (Fortaleza, 1957). Formado em Direito, Letras e pelo Instituto Rio Branco.  Pertence ao corpo diplomático brasileiro, no momento trabalhando em Argel. Possui 46 títulos publicados entre livros e CDs.  Destaque para Escombros e Reconstruções, 2012, com o qual recebeu o prêmio de melhor livro do ano, em poesia, conferido pela ACL, Academia Carioca de Letras.  Seu livro mais recente é Viagens Introspectivas, poesia, 2016.  Na coletânea de livros Quadrigrafias, 2015, comparece com Dias Insólitos.

 

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RICARDO Ingenito ALFAYA (Rio de Janeiro-RJ, 1953). Divorciado, sem filhos. Formado em Direito e Comunicação Social (Jornalismo). Trabalha como livreiro virtual, revisor e consultor literário. Escreve em verso e em prosa. Publicou cinco livros de poesia: Através da Vidraça, 1982; Sujeito a Objetos, 2003; Frutos da Paixão, 2009; Álbum sem Família, 2015; Fronteiras em Liquidação, 2016. Integra 50 antologias.  Membro da UBE-RJ. O livro Álbum sem Família foi inserido na coletânea de livros Quadrigrafias (Rio de Janeiro: Uapê, 2015) e os poemas foram apresentados como se fossem fotos em um álbum.

 

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Tanussi Cardoso é carioca, formado em Jornalismo, pela PUC-RJ, e em Direito, pela BENNETT. É poeta, crítico, contista e letrista de MPB. Tem poemas publicados na Argentina, Chile, Colômbia, Espanha, EUA, França, Itália, México, Portugal, Peru, Uruguai e Romênia, e traduzidos para o inglês, francês, espanhol, italiano e russo. Está incluído em dezenas de antologias de poemas, inclusive, no exterior. É detentor de vários prêmios literários, nacionais e internacionais. Tem 11 livros de poemas publicados. Pertence ao Conselho do Pen Clube do Brasil e à União Brasileira de Escritores-RJ. Ex-Presidente do Sindicato dos Escritores do Estado do Rio de Janeiro.

 

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