namoradas
ah, seus seios
esse susto que guardam
dois pássaros se debatendo
na gaiola do vestido
céu azul, geada na certa
os biquinhos duros
se abrem pedindo comida
chupo um, deposito o mel
o outro chora de inveja
minhas mãos correm embaixo das saias
pronto! pronto! mamãe está aqui
o corpo incendeia de brilho
e da garganta vem um canto bonito
duplo
um centauro dorme no jardim
e sonha com joelhos humanos
na extensão de duas pernas
sua boca colada a folhas
exala um odor que se forma
do pelo de sua garupa
dos cascos de suas patas
na altura do ventre
dois rios de sangue se misturam
a parte gente invade o lado cavalo
nesse instante, o moço esguio
a caminhar pelo jardim
avista um centauro dormindo
o dorso relaxado de um homem
preso ao potente volume animal
pegadas fundas cavadas na terra
bosta secando perto de flores
o arco e a flecha largados
o moço não pensa, apenas recolhe-os
retesa o arco
ajusta a mira e lança a seta
num susto de abismo, o centauro ressona,
abre e fecha lentamente os olhos
na fina tela da retina registra-se a imagem de um rosto,
gêmeo do seu, cabeça pendente e arma em punhos
faz-se a primeira tarde da eternidade
paralisia
ontem mesmo eu fui
olhei, como quem, já com fome,
espera um ônibus
que demora a vir
sabendo que, se desistisse
podia ser bem pior
e então ele chega
eu embarco
sento-me junto à janela
e acomodo os olhos
nulos de desejo
pra a reprise da paisagem
a correr dentro dos teus olhos
e seguimos o curso da vida
silenciosos e resignados
como esses passageiros
que se mantêm juntos
pela coincidência de estarem os dois
indo sempre para o mesmo lugar
depois da última faixa
eram quase cinco da manhã
ele estava embriagado e quieto
oscilando como um pêndulo
diante do mistério da porta fechada do elevador
virou-se para mim, que o observava do túnel do corredor
e com aquele olhar de crocodilo triste (porque há também os crocodilos felizes)
desferiu em voz atrasada esta sentença:
"prefira os poetas pobres
aos filósofos ricos"
oh, dia miserável de inverno
— este em que tomamos um bêbado por conselheiro
mas podia ser pior
podia eu estar sentada em um café
com hora e dia marcados
achando perfeitas as palavras
de um sujeito que ganha pra me emocionar
"que os mortos me emocionem — eu aceito.
que as invenções dos mortos me emocionem — é a norma.
não me venham burocratizar a poesia
e fazer dela música para acalmar camundongos",
ainda tive que ouvir essa
antes de ele ser engolido pelo elevador
então entrei em casa, chaveei a porta
e depois de esvaziar cinzeiros e recolher copos
e ainda pensando no que ele disse
olhei pela janela e vi o mundo desabar suavemente
enquanto o disco insistia
naquele ruído silencioso
depois da última faixa
romance
o espaço
dentro do teu abraço
é infinito
silêncio depois do salto
nu lago
cabelos flutuam
feito algas
meus olhos abertos
dentro d'água
espantados de tanto
encanto
sem me dar conta
de que é preciso voltar
para a solidão do corpo
emoldurado de ar
grampo
sim, está tudo bem
não, ela não respondeu
a foto está muito melhor que a outra
o dia está menos pior que ontem
roupas no varal me acalmam
se tiver vento,
gatos saltando,
crianças correndo
tua voz
tento interpretar tua voz
enquanto desenho com bic
um relógio na pele do pulso
o tempo tipo um novelo
desenrolo todo
vejo a cor do fio
cara pálida na janela
o céu muda mil vezes por dia
tenho amado minha mãe
como se ela fosse minha filha
e meu pai segue encantado
com uma nova invenção
((joga insanidade demais nos relacionamentos
((o filme é bom até aquela parte em que a moça chora
((hoje usei a única blusa que você deixou
((não vou, porque eu gosto dessa foto
((é linda, eu adoro
fim da gravação
criptonita
pura maldade, as ilusões do cinema
eu tinha apenas oito anos
entrei naquela matinê
nem sabia que estava prestes
a conhecer meu primeiro amor
o corpo um tanto bambo
pelo apertado do sapato
meu pai nem estava ali
distraída, sentei-me, estrelinha
entre a via láctea de assentos
(na cidade, só o cinema e o cemitério
eram maiores que a igreja)
lábios sugando no canudinho
as últimas gotas de refri
meus olhos vesgos se ergueram
quando a música estourou
lá pelas tantas, eu meio tonta
dividida entre o herói e o ator,
um pouso leve e o corpo estátua
braços cruzados frente a mim
e aquele "pega rapaz" que fazia bem assim...
o safado, imagine!, cravou-me os olhos
e deu aquele sorrisim
ai, super homem, vem nimim
mãos suadas, coração acelerado
— Será que alguém filmou o meu sobressalto?
eu não era mais uma menina no cinema
era toda eu uma mulher com seu amante
psycho
mamãe, eu conheci uma moça
ela é tão diferente, mamãe
não fique zangada comigo
é só uma nova amiga
uma amiga especial, mamãe
mas nem tão especial
quanto eu pra você
nem um pouco especial
quanto você é pra mim
mamãe, nós temos essa ligação
serei seu garotinho sem restrições
deito minha cabeça em seu colo
sinto o cheiro que sai de suas entranhas
mamãe, você está menstruada?
esse cheiro de sangue
me alivia o coração
posso adormecer de tão relaxado
e no sonho ainda estaremos juntos
prendo o olho naquele buraco na parede
aquele que dá pro teu banheiro
vejo você despir-se da anágua
e demais peças íntimas uma por uma
íntimas demais antes de entrar na água
e o sangue corre num delicado filete
do meio de suas pernas pro buraco da minha mente
minha boca seca e minhas calças estouram
se a moça pensa que me fará te esquecer
ela que desista dessa ideia insana
prendo o olho no buraco na parede
aquele que dá pro banheiro da moça
agora ela se despe da anágua
e demais peças íntimas uma por uma
íntimas demais antes de entrar na água
essa visão engole meus pensamentos
minha boca seca e minhas calças estouram
a moça está completamente enganada
se pensa que pode me afastar de mamãe
ela tem uma boca bonita quando grita
não pode! não pode! não pode! não pode!
o sangue espirra do corpo pro meu rosto
mas o sangue de mamãe é bem mais intenso
o sangue de mamãe me adormece e acalma
me traz sonhos felizes e contentamento
as mães são as melhores amigas de um garoto
diante do corpo
é explorada
depois fica aí se fazendo de coitada
é assediada
depois fica aí se fazendo de coitada
é estuprada
depois fica aí se fazendo de coitada
é assassinada
depois fica aí se fazendo de coitada
boca do inferno
não lembro se foi naquele banheiro de aeroporto na antuérpia que as duas se conheceram
— ou se no brasil,
naquela madrugada de uma quarta-feira de cinzas
o cenário, uma padaria no leblon
nausicaa, com saída de banho à grega, deixava entrever um biquininho rosa-bebê,
ainda cheia de gás pra comandar o abre-alas do carro cavalo de troia
enquanto ofélia, com seu vestido inflado de saias com apliques de sutis miosótis,
postava uma foto gótica atrás da outra na página do instagram
o certo é que as duas estavam arrasadas com seus homens
o viajante era cheio da lábia
a cada encontro prometia que tomaria coragem e largaria a esposa
e que o casamento ia de mal a pior
e que o filho não parava em casa
e que a esposa cada vez mais se enchia de tarefas intermináveis
já o noivinho da ofélia
naquela relação difícil com a mãe
andando com uma gente estranha
jogando indiretas no grupo de whatsapp da família
e atormentando todo mundo com sua mania de perseguição
digamos que tenha sido num banheiro de aeroporto na antuérpia
isso pouca importância tem
naquela hora de retocar o batom, frente ao espelho
os olhares se cruzaram
e depois disso seguiu-se uma confusão de bocas
um embaraço de pernas
uma união de barrigas etc., etc.
até hoje os best-sellers não falam em outro assunto
mito
a verdadeira história
de frida khalo é frida khalo
nenhuma fotografia
nenhuma frase bordada num lenço
nenhuma tela
impregnada de tinta, formas e texturas
podem dizer
a verdadeira história
de frida khalo
somente frida khalo
sua carne, seus ossos
sua voz, seu sangue
confissão
fui eu que estuprei a menina
as sessenta e seis mãos que a agarraram
eram minhas
os trinta e três paus vergados
que atravessaram a sua carne
eram todos meus
os insultos em volta do corpo ultrajado
vociferando e gritando e babando
saíram da minha boca
a porra que banhou a pele indefesa
as manchas roxas entre suas pernas
os dentes cravados em seu pescoço
o close da câmera durante o ato
o riso sarcástico
a parceria dos curradores
fui eu que deixei isso acontecer
quando mantive o casamento
a par com aquele caso
sem que ninguém fosse avisado
quando contei aquela piada
quando paguei um salário de merda
pra mulher que assumiu o cargo
quando cedi o ouvido
às confissões do bandido
quando achei o corpo da mocinha
passível de ser comido
aquele dia em que viajei por horas
com as pernas arreganhadas
oprimindo a moça ao lado
na festa em que achei ridículo
o riso ousado da travesti
na punheta no meio do expediente
pra gostosa recém-contratada
quando quis matar a namorada
só porque ela não me amava
quando chamei fulana de puta
e considerei o feminismo
assunto de mal comida
quando dormi tranquilo
depois de ouvir estatísticas
dos crimes e abusos
cometidos contra mulheres
ali estou eu, em meio ao bando
incentivando com a minha apatia
toda a barbárie de todos os dias
as provas são infindáveis
me prendam, me levem
me lavem, me livrem de mim
olho por olho
em solidariedade
aos que se abstêm de beijar em público
por medo de ser banidos
humilhados
insultados
espancados
assassinados
decretaremos um dia sem beijos escancarados
um dia sem abraços apertados
nos aeroportos
nos terminais rodoviários
nas filas dos metrôs
um dia inteiro sem encoxadas de adolescentes apaixonados nos pontos de ônibus
24horas intermináveis sem carinhos públicos
nenhuma expressão explícita de amor
nos pátios das escolas
nenhum chupão no pescoço
na despedida da festa em frente ao prédio, sob o olhar do porteiro
nada de beijos rápidos e fortes
no amarelo do sinal
sem declarações de amor gritadas
no meio da rua, nas praças, nos parques
nenhum aperto de mãos nos leitos de hospitais
abraços nos cinemas: interditados pelo prazo de um dia
agarrar aquelas pernas no sofá da sala
na presença de toda a família
também está proibido pelo eterno, solitário e frio
tempo que perdurar esse decreto
depois de encerrado o dia
os hipócritas sentirão
uma sede infinita de amor
e se houver sobreviventes
beijar escondido
será a máxima conquista
de crianças curiosas
e amantes incendiários
junho, 2016
Assionara Souza. Escritora, nascida em Caicó/RN, em 14/10/1969, viveu em Curitiba/PR desde os 11 anos de idade. Formada em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná, foi pesquisadora da obra de Osman Lins (1924-1978). Autora dos volumes de contos Cecília não é um cachimbo(2005), Amanhã. Com sorvete! (2010), Os hábitos e os monges (2011), Na rua: a caminho do circo (2014) — contemplado com a Bolsa Petrobras, 2014; e Alquimista na chuva (poesia, 2017). Sua obra tem sido publicada no México pela editora Calygramma. Idealizou e coordenou o projeto "Translações: literatura em trânsito" [antologia de autores paranaenses: www.literaturaemtransito.com]. Estreou na dramaturgia escrevendo a peça Das mulheres de antes (2016), para a Inominável Companhia de Teatro. Morreu em Curitiba/PR, em 21/05/2018.
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