~
na estrada de terra
da cidade vazia
a criança preta empunha um pedaço de pau.
ela está nua e vê-se um corpo tão prematuro
quanto ruínas.
a boca intumescida da criança preta gutura
morte ao rei!
e na aridez inalcançável dos pés descalços
resiste
a criança tão criança e velha,
sozinha e livre —
o sino da igreja abandonada toca todo dia na hora errada.
~
puta que pari um bicho morto
risco indócil na coxa
barulho oco dos coágulos esbofeteando a água da privada
estilhaços imagens
o enquadramento impreciso
aparar as arestas até triturar os ossos do rosto
as unhas perfuram lentas a boca grande calada
é preciso fugir pelas beiradas
sem alarde
~
ainda falava em reparação
o nariz bicando a asa de frango frita
boca e mãos luzindo engorduradas —
meu bem, seu amor é patético ao meio-dia.
e a cara amarela desde a manhã
se havia
um grito vinha da cozinha
geladeira velha
bebo água e a voz grave do vizinho me treme
outro copo quebrado
varro mal
esqueço e
ah esse calor terrível
deito no chão —
você acha que vai chover?
~
as pontas dos dedos estalam na superfície sólida da água e a carne lateja alegre diabólica enquanto a fatia gorda dança severamente aos aplausos do cego que com olhos de não ver tateia os gemidos riscados no chão
quem cai na gira não levanta
diz aos gargalhos
a santa de vidro quebrou cedo
olho daqui os pedaços como quem não olha
tem um sorrisinho antagônico
hipocrisia mordaz nas palavras rasas
comiseração e deboche
olho de boi morto.
~
amarra pendura deixa pingar
que a terra seca apaga a última gota —
a galinha me olha de um olho só
ciclope de ladinho frango assado papai e mamãe
e o açougueiro gargalha
se sacode todo mole
tem larva na carne fresca e
não tem graça nesse lugar.
dezembro, 2016
Bruna Mitrano escreve e desenha. Em 2016, publicou Não (Patuá).
Mais Bruna Mitrano na Germina
> Textos