A MÁQUINA QUEBRADA DO MUNDO
e como eu rolasse vagamente
o feed do meu Face, pedregoso,
no fecho da tarde um cisma louco
se misturasse ao desengano
do que eu lia
lentamente a máquina quebrada do mundo
se entreabriu e disse:
— vai, donny, ser tonto na vida!
O PORÃO DAS CÉLULAS
para joão correia
para valdomiro boldrini
uma fila na farmácia pública:
um exército
de células vencidas, se conforma
são semblantes e semblantes alquebrados
desprovidos e calados
nulos, retorcidos
imersos na inércia
à espera de uma senha
há uma espera que se sustenta
maior do que o tempo que lhes cabe
/ainda/
os tubos, as sondas, o pus
os desmaios
a vida se esvai
a vida /ex/ vai
no rebanho semimorto
na farmácia pública
E3 4BP
para daniel solimene
olhe em volta esses fantasmas
que pingam do teto
que saem pela torneira
que dedilham seus instrumentos
que corroem seu sono
que minam seu lar
esses fantasmas ressurgem
do cemitério ao lado,
dos cascalhos que guiaram os passos
na noite
esses fantasmas esquálidos
falsificam nossas dignidades
desafiam sanidades
e parecem rir por baixo da ponte
o que de verdade há nisso
é que esses fantasmas só enaltecem
aquilo que o dia não nega
aquilo que a luta não cala
e aquilo a História legitima
debaixo de cada teto invadido
mora um lar feito de suor e música
moram notas dissonantes
sons e imagens que exorcizam
e o sono não se cala / não deve se calar /
por espectros ruidosos
de fúria
inveja e retaliação
a música é a retaliação
dos medíocres
a música e
somente ela
CREMATÓRIO
a fuligem de vida
recobre a efêmera
lírica do nada
o mínimo sentido
em tudo quanto
não foi
o resto finíssimo
espalhado ao vendo
do acaso final
era o calor da fornalha
toda a síntese do
vital derradeiro
a última febre
do corpo
a convulsão da
passagem
um candelabro de luxo
na carne, no osso
na desvida
que é um banquete
para espectros
vindos do soslaio
curvo do tempo
embalagem de madeira
fina
entalhes rebuscados
que lacrimejam
o escuro desmatamento
do plasma e seus glóbulos
de trás das unhas
brotam laivos
da fragilidade humana
e elas seguem:
labaredas precipitam
bolhas como beijos últimos
roubados pela amante
morte
CURIOSIDADE #1
curioso como se punem
os tiranos, falsos
falaciosos
esquizobestas
tirando-lhes, /tal qual se aparenta e se é/
com a mão
do todopoderosode(?)us
quando ao certo se vê
/por entre as pernas de cachorra/
que lixo recolhido, guardando certo prazo
tornou-se
com a mão
do todopoderosode(?)us
a próxima bunda infecta
que contamina o trono
do rei
DISSONANTE
você com seu piano
virulento
dedilhando o marfim gélido:
miramos as luzes de fora
Sem brios, sem dores
Sem a voz esquizofrênica
interior
só o que pinça no tímpano
são lascas
em notas tortas
sol lá si
mas
sabe,
o homem damérica vai subir
de novo e sempre
ao céu infinito em busca
de vida
e eu
querendo saber por que
a vida de lá não desce
para exterminar
a pouca vida de nós
aqui
e
um dia
eu acho você capaz
de se matar por causa
de minha causa
só para me
cuspir
ANALISTA
(vasta natureza)
a única flora que me importa
é intes ti nal
e fru í da
do fim pro
co me ço
MARQUE EM MINHA LÁPIDE
a mim não interessa
o reconhecimento póstumo
pois sou pavão demais
pra virar morto famoso
SOPA DE GANGRENA
os abençoados mendigos
curraram Viridiana
durante a benevolente ceia
de cada lágrima do pus
expelido das manchas da pobreza
da casca de plaquetas secas
dos poros tóxicos de fedor
viridiana sorria muda
a música da oração inútil
enquanto as línguas verminosas
as barbas engasgadas
os olhos de lascívia marginal
devoraram sua fé no outro
de cada chaga marcada
no corpo vadio putrefato
fervia o caldo grosso do banquete
improvisado aos indigentes
preteridos na vida
mas a fera atávica cobra seu preço
e Viridiana viu logo cedo
que a bestialidade no ranho
arfante dos déspotas excluídos
era tão legítima quanto o reflexo
dos senhores burgueses:
pelo menos não escondiam
a perversão
embaixo da hipócrita moral
DU MUSST CALIGARI WERDEN
eu sou aquele que finge dormir
enquanto, de fora, eles fingem te enxergar
eu sou o que executa suas fantasias sonâmbulas
enquanto o boneco mimetiza meu sono
eu sou o achado científico do século das sombras
enquanto a assimetria externa se sua mente débil
rouba o sono da vila de barões e estudantes promíscuos
minha lâmina vai castrar esta lascívia contida no recato imposto
até a minha recatada imposição despertar pelo rosto branco
da relíquia virgem da cidade
daí vou me esgueirar pelas ruelas tortas
pelas ladeiras contrapostas
pelo pico incerto
e vou sucumbir à ira da tragédia
pelas linhas de um roteiro recalcado
mas com ela nos braços
para nunca mais
acordar por sua vontade
e verei que jamais serás
caligari
JOHN NASH
não é somente porque
a menina nunca cresce
mas é exatamente porque
a menina nunca cresce
LUCIANA
eu vou chorar lágrimas de crocodilo
(João Penca)
minha língua irá contar lenta
e suculenta
cada vértebra tua, da primeira
ao cair das costas lisas e seguir
para o cume de você
onde os pelos eriçados pedem
e imploram o hálito do toque
mudo
nossas línguas dançarão
alheias à falácia desse mundo
na madrugada sem fim
somente nossa
e nosso mundo paralelo
e entre os fios de seus cabelos
como teia em minhas mãos
implorarei ao mundo oculto
que não seja só um sonho
dentro e lento sentiremos
um ao outro por meses-a-fio
e contaremos as gotas do suor
que salga nosso mundo
longe do resto que não nos representa
minha língua em seu tímpano
sussurrando o dialeto
secreto que criamos
para nos fazer exclusivamente
uno
e arranharei, sedento, seus lados
seus cantos, seus todos
sem deixar passar cada quina
do corpo imerso na lascívia
nos entregamos como
fesceninos convictos
ao gozo como se o mundo
inútil fosse, por nosso desejo,
acabar
que um dia acabe o mundo todo
e toda a troça da vida, enfim
mas, sigamos em nossa dança
horizontal
febril
demente e constante
enquanto inundo teu umbigo
para voltar à vida real
e sentir a ânsia
a taquicardia doente
que me separa
do próximo gozo
nos cinco dias
no hiato que há
entre o que morre lá fora
e o que vive
somente por nós
[Poemas do livro Zero nas Veias. Patuá, 2015]
março, 2016
Donny Correia, poeta e cineasta, é mestre e doutorando em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo (USP) e bacharel em Letras — tradutor e intérprete pelo Centro Universitário Ibero-Americano (Unibero). Realizou os curtas experimentais Anatomy of decay, Braineraser, Totem (selecionado para a 34ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e Prêmio Canal Brasil) e In carcere et vinculis. Publicou os livros de poesia O eco do espelho, Balletmanco, Corpocárcere e Zero nas veias. É coordenador de programação da Casa Guilherme de Almeida.
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