©marta bevacqua
 
 
 
 
 
 
 

poema aberto para reforma

 

 

Em sua infância, os meninos ouviam:

"os incomodados que se mudem"

E partiu Venâncio na primeira hora,

Luis refugiou-se em Santana do Livramento enquanto

Jair foi à noite para Juiz de Fora.

As meninas falavam em ficar e crescer

Árvore que segue

retorcendo galhos depois da poda

As incomodadas é que mudam

 

 

 

 

 

estrela do norte

 

 

antes de tua voz,

eu me apressava em desenhar em linha reta

assim como costumam ser o metro,

a rua e os carros de corrida

depois de ouvi-la,

venho aprendendo a não medir distâncias,

a dobrar fronteiras e a me demorar

 

o traço começou a tomar formas elípticas

assim como a lesma

assim como o abraço

 

 

 

 

 

 

eva e rebeca

 

 

rasgaremos as vestes

e nos cobriremos de cinzas

pelo sangue

sobre o chão da tribo do norte

pelo escárnio na boca das outras tribos

mas sobretudo pelo meio

onde está o nó

onde a corda arrebenta

onde o ventre é um corte em vinagre

e os olhos, um aguaceiro

 

 

 

 

 

 

fotografia de alceu olhando o chão

 

 

E não me apuro ao saber que as garras do felino prevalecem sobre as veias do antílope

Há mesmo um alento na lei do mais forte quando

vejo as asas de um coração apontadas para alguns vermezinhos,

para os insetos purulentos

e o silêncio da morte

 

 

 

 

 

 

fogo-apagou

 

 

corpo, balão de ar,

que a morte

estoura

 

sopro, ave sem rosto,

que aos céus

retorna

 

 

 

 

 

 

composição íntima sobre o silêncio

 

 

a voz é uma espécie de vento

que sai do peito coberto de panos:

timbre, letra, fonemas…

 

quando ele está nu

é beijo

 

 

 

 

 

 

theodoro

 

 

a teus olhos

sou como vaca, uma vaga

uma vala qualquer onde despejas

o detrito de tua alma

 

aos meus olhos,

tu és mais um cara

de quem recebo ira

mas não tenho medo

 

tu não irás me pegar à cega

a cor dos meus olhos é mel

menina mulher operária

o zangão é quem se ferra

 

 

 

 

 

 

a história invisível

 

 

atrás de um portão que nunca se fechou, cravejado de ouro e brasões da tribo de Judá, há uma biblioteca em cujo acervo encontra-se um livro onde está plantada a árvore de um menino nascido em um rincão do extremo oriente. Em suas páginas foi escrito que naqueles dias aconteceu de Eva ter gerado Sarah que gerou Miriã que gerou Ruth que gerou Tábita que gerou Isabel que gerou Ester que gerou Laila que gerou Raabe e assim ocorreu por 40 gerações até Ana que gerou Maria, mãe do menino que iria viver cercado por Madalena, Suzana, Marta, Joana, Deborah... e por mim que ainda hoje, séculos depois, por ser mulher, tem o nome desconhecido.

 

 

 

 

 

 

dreyer

 

 

desenganou prognósticos

atravessou desertos

amansou leões

resgatou náufragos

engravidou a estéril

calou oceanos e sua revolta

ressuscitou palavras enterrando mortes

— grão germinado em seu nome.

 

o que faria deus,

sem a fé dos homens?

 

 

 

 

 

 

cálcio

 

 

em seu olhar

tanto escorre uma luz castanha,

quanto lâminas que inauguram o caroço

 

amigo também diz respeito ao que o corte nos ensina

vínculos se aprofundam entre a polpa e o bagaço

por isso a boca não é só língua

 

 

 

 

 

 

fragmento de carta a kar-wai

 

 

Chan

Chow

choveu hoje em Hong Kong

sobre

as cores do vermelho que tuas mãos acenderam

e ainda são brasa

Segredam pelas frestas que os olhos abriram e ainda são passagem

amor

as sangrando na fruteira pelo

desejo amor

daçado    amor

tecido frente

a mor

talha verde sobre a pele leito sa

quando a nudez vestia a alma

quando o outro era  a mor ada

de cada um 

seria amor

pedaço de uma outra palavra?

 

 

 

 

 

 

ex-votos

 

 

A existência entregou uns avexamentos ao coração de Avelina

que se pôs submersa

em raios de brevidades e ânsias

 

Avelina não sabia repetir a reza dos livros

nem cantar salmos ou hinos

mas chorou todo missal

 

O Senhor dos exércitos tomou cada pinguinho de lágrima

como uma conta do rosário

— Amém

 

No quintal de Avelina há um Rio de Contas

e, na capela, um navio sem margem

como se atravessasse um oceano pacífico

 

 

dezembro, 2016

 

 

Ehre. Quando nasceu, um anjo ainda menino, lhe disse: vai escrever. Ela o respondeu: posso não, guri. Meu lápis é gago. Ele a retrucou: melhora quando chove. Hoje, anda aqui e ali tentando pegar o peixe vivo com as mãos. Segundo Verunschk, é poeta cronista do passado não vivido.

 

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