© jürgen hartlieb
 
 
 
 
 
 
 
 
 

O amor dito na lata!

 

 

Não usamos como sentido as causas semelhantes

nem mesmo os anos perdidos pela porca dieta.

Mirei a verruga soberba em seu pescoço,

ela se pôs a santificar meus queloides

e com paixão,

petrificávamos nos desacertos

dos braços e canelas como expert barítono.

 

E, como se fosse a hora do sim extremo

ela disse cruz credo!

Eu, Ave Maria!

Fomos felizes para sempre.

 

 

 

 

 

 

Coraçougue

 

 

O coração é sempre armadura.

São as mãos que driblam o ócio e o estalo.

É essa máquina quente

pulsando amor e fuligem

e também 250 gramas de músculo.

 

É morada dos soluços

o nascedouro dos ideais.

Pelo império, pela crença,

escolhe-se dos sangues os venais.

 

Fizeram do coração seu dominante,

asseclas de um pulsar finito.

É essa máquina quente

pulsando amor e fuligem

um tanto destino e mito.

 

Coração.

Ferrenho bilro de carne.

Nele nascem e morrem muitos dizeres.

Mas por tu coração

(noves fora dores e prazeres)

a esperança de quem humildemente sofre

por sonhar que um dia te comprarás

ao preço do modesto quilo do bofe.

 

 

 

 

 

 

O coração em pratos limpos

 

 

A intensidade do amor

é feita com

feijão

e

farinha.

 

O amor

 

só,

 

não alimenta o amante.

 

 

 

 

 

 

Aquela que vi pela janela do carro

 

 

Criatura pouca.

A roupa puída escondendo

a pele esmerilhada por

trabalho extremo.

Mas singela criatura

que eu diria mirrada.

 

Um fevereiro de gente

que fez da estrela um teto

que fez da grama um chão

e me denuncia quem de fato sou.

 

Não era para estar ali e está.

Obstáculo de ossinhos.

 

Em outro lugar seria um Lama

com pouco dedilhar um Yo Yo Ma.

 

Eu quero Handel e não clemência.

Nos muros Botero, nos jardins Kenzo Tange.

Eu não quero ver vendo.

Homens garimpando as raspas de seus ontens.

 

Eu não quero criatura pouca

degelo

farelo

 

criatura que, com pouco dedilhar,

talvez fosse

um Yo Yo Ma.

 

 

 

 

 

 

Ciclo

 

 

Restando-lhe pouco tempo de vida

observando o verão declinar nas colinas

e as amoras deprecando os vermes.

 

Ao lado a caveira do boi

acima o vazio nobre do urubu-rei.

Deixemos o agrado para as flores

o humo pulsante faz viver e é o que é.

 

Ah! quantas folhas caem no subúrbio

do silencioso caos!

 

Apenas,

do suicídio da pétala,

te farta memória:

 

Uma geração reconduzirá outra geração

ao que chamam de início da flora.

E um inverno tão quanto rigoroso

 

aos dias quentes

da vanglória.

 

 

 

 

 

 

O que as aves trazem

 

 

Sim.

Em tuas carnes

o sabor mel das aves que

singram

e planam sobre a pele de água e lese.

 

E aninha-se em suas delícias o solstício

de abril,

as tuas carnes, o veraneio

para meus cansaços e preces.

 

Como quero ser pássaro!

 

Verão

que mês lhe trará?

 

Sim

nessas tuas carnes

o primor de suas suculências,

esse teu sabor de presa,

caça minha.

 

Ave

quem virá arcado na aerodinâmica

vontade de surtar as estações?

 

É um pássaro?

É um avião?

 

 

 

 

 

 

Remoinho

 

 

No vórtice,

 

apenas um bramir

como aquela que está prestes ao parto.

 

Requer ao epicentro

ante o gole do abismo,

o reles apoio dum galho.

Este pequeno entrave

como fosse a mão que afaga

inseto

ou

folha.

 

Mas é no vórtice que se sabe

 

a saúva

e o mandrião.

 

 

 

 

 

 

Para mortos de fome e amores

 

 

Na suculentabilidade dos seios

esse melhor beijo das entranhas,

plugam-se mãe e rebento

à outra ponta da corda umbilical.

 

Para mortos de fome e amores

a portabilidade dos extremos.

 

Um revival.

 

 

 

 

 

 

Aspiração do galo sob o céu de Manhattan

 

 

Como pragana

os pássaros

desfazendo o azul

da parte mais alta de mim.

 

Cordatos e plenos

de uma leveza e solitude pelo ar.

Inspecionando nuvens

em ostentação do livre

e pela queda libertando-se

pelas frinchas da abnegação.

 

Quero tê-los no ventre

em ninhos.

A beligerante serpentina de asas,

essa aspiração do aviador.

O périplo conquistado por um

menino mouro em barcos de papel.

 

Como pragana

cordatos e plenos

os pássaros.

 

Enquanto seus desejos planam

sob o céu de Manhatan

 

— Ó como anseio vossa queda! —

 

aspiro que chupem tuas asas

em qualquer almoço de domingo.

 

 

 

 

 

 

Gênesis

 

 

Sopro modorra nos trigais

borrão de nuvens

debruçado vejo e não.

 

O jacatirão sonhando pela goiva

do mestre-canoeiro.

As iluminuras das folhas de ubá.

 

Masco nacos de sempre-vivas

cubro-me em barro

vestuário da primazia.

 

E eis a ceifa incriminando o não.

 

Entretanto

Paulo e Apolo em acordo.

 

Raízes

caruncho

 

Sopro modorra nos trigais.

 

 

 

 

 

 

A bomba no homem

 

 

Protejo-a dos meus esgoelamentos

soldando os lábios em mig-mag

carnivorando todo ar cálido,

descomprimindo

as coisas que nos apaixonam por dentro.

 

Fissura-se

a menor

das menores partes do amor

em

estupor

e

estampir.

 

E o pino da granada

em nossas línguas.

 

 

 

 

 

 

O sal entre os homens

 

 

Vós que cooptais os dissabores do sal

com traquejo de língua e outras glebas,

feito mesmo esta Barbarela que tanto nos metralha

com seus dilúvios flocados de cuspe,

vincando, descomposturando na pele pera

a balela desse malfadado Splenn,

retalho roto cerzido na vestidura dos dias;

tem coberto — benévolo de sempre —

as cãs dos batráquios que se tornaram

os muitos tufos de chagas no corpo antes laminado,

com o Agnus Dei,

fiel melaço de afagos da vinha.

 

Vós que em urdidura planejais crepitar na arcada bucal

nova dentição coalhada,

pois tornais a miragem do mel

e suas licitudes

em brutal granito.

Cega foice que entre capina

na altura do talo da nossa fome;

dessa semente regada, não pelo que lhe alimenta,

mas da ausência tamanho igual ao mundo.

 

Que o sabor é tão desnecessidade para o depois

de adestrar do ventre os seus ganidos,

refazendo no bicho, o homem para que sempre foi.

 

Voltemos à Babel — dizeis,

pela univocidade que nos faz irmãos, pais e mães;

pelo mesmo salitre que unguenta os olhos das mãos,

sim, as mãos são primeiramente a parte física,

porquanto incréu seja todo o restante do corpo.

 

Vós que arregimentais o alimento biltre,

miscigenando qualquer miséria de carne ou cuío de pão

como corda salvadora nos abismos.

Não nos coisifiquemos em latrina viva,

párias entre os farelos.

Quedáramos o sumo da erva pilada, as angústias do café

que é essa coisa bonita digladiando-se nas bordas.

Entretanto conter a todo custo o glutão que nos habita

com ânsia amiga,

e nesse regresso constante,

perpetrar com melindres a felicidade embutida nas gorduras.

 

Talvez não saiba o fruto que maceramos com a sapata dos pés,

ao qual chamo Caminho de Nós Mesmos.

Crível de nosso lugar, e a certeza de parir

sobre o astuto argumento das dúvidas

o doce sibilismo dos risos.

 

Não mais nos ajoelhar porque temos com orgulho

o sangue que aspergimos em nossas devorações,

e esse vermelho-guelra esmaltando nossas garras

em complexa tipologia das brânquias.

 

Passivos, todos eles, todos nós,

de amar quem com gosto mastiga o mesmo sal,

burilando a soberba célere com goles másculos de água.

 

Mas não sendo provável no apetitoso naco do fruto endiabrado

— o sono perpétuo —

há de se preferir o morrer lúcido e lento.

 

Não dormitaremos enquanto lá fora as praganas pilham

todo sal em suas bentrechas.

Mostraremos sim nossa cara feia de fome ao enforcar-vos,

depois comeremos nossos próprios dedos;

que é mesmo essa mobilidade terrível nos extremos das mãos,

a morte côncava,

ao invés de locupletar as partes pudentes do ócio

com os mimos das salinas.

 

Desfazer-se humildemente do fogo e do níquel

(digo de suas palhas)

pois sem os grãos da vã mostarda não se posterga

o mais insignificante dos amanhãs.

Macerar diligentemente as trigonometrias dos trigais,

ou, a alusão permissiva dos bocados,

que pelos dados de azar ou sorte pomos entre os dentes moles.

 

Sonharei, sim, com levedos, com o soro pastoso e bom dos peitos

e suas altitudes; e dos azedumes da lima-limão e suas aftas vivas.

 

E assim viver mouco, com a saciedade enregelada nas entranhas de zimbre,

até a hora morta dos olhos, quando o alto relevo dos cavernames do homem

ser  a injusta arcada (alcatraz de ossos, grades ressequidas

aprisionando o que um dia foi a imagem de corpo),

entre a porção de sal que vós ofertais.

 

Então mais uma vez perguntar:

— Comeis sal comigo?

Comeis este punhado assim como os bois?

Do contrário, eis um fato — Não vos conheço.

Jamais ouvi ou quis saber.

— Comeis comigo este punhado?

— Jamais ouvi, soube ou quis.

E isso também é um pouco do morrer e viver de todos.

 

 

[Do livro Cereal Killer, inédito]

 

 

setembro, 2016

 

 

Flávio de Araújo, poeta e escritor, filho de caiçaras oriundos da Praia do Sono (Paraty/RJ) tem poemas traduzidos para o inglês e o espanhol, publicados em sites, revistas literárias e coletâneas (Whashington Square Review, Jornal de Poesia, Two Lines Issue 19 — Passageways, Asymptote, Guernica, Magazine). Publicou Zangareio (Selo Off Flip, 2008) e prepara o lançamento de Cereal Killer.

 

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