O amor dito na lata!
Não usamos como sentido as causas semelhantes
nem mesmo os anos perdidos pela porca dieta.
Mirei a verruga soberba em seu pescoço,
ela se pôs a santificar meus queloides
e com paixão,
petrificávamos nos desacertos
dos braços e canelas como expert barítono.
E, como se fosse a hora do sim extremo
ela disse cruz credo!
Eu, Ave Maria!
Fomos felizes para sempre.
Coraçougue
O coração é sempre armadura.
São as mãos que driblam o ócio e o estalo.
É essa máquina quente
pulsando amor e fuligem
e também 250 gramas de músculo.
É morada dos soluços
o nascedouro dos ideais.
Pelo império, pela crença,
escolhe-se dos sangues os venais.
Fizeram do coração seu dominante,
asseclas de um pulsar finito.
É essa máquina quente
pulsando amor e fuligem
um tanto destino e mito.
Coração.
Ferrenho bilro de carne.
Nele nascem e morrem muitos dizeres.
Mas por tu coração
(noves fora dores e prazeres)
a esperança de quem humildemente sofre
por sonhar que um dia te comprarás
ao preço do modesto quilo do bofe.
O coração em pratos limpos
A intensidade do amor
é feita com
feijão
e
farinha.
O amor
só,
não alimenta o amante.
Aquela que vi pela janela do carro
Criatura pouca.
A roupa puída escondendo
a pele esmerilhada por
trabalho extremo.
Mas singela criatura
que eu diria mirrada.
Um fevereiro de gente
que fez da estrela um teto
que fez da grama um chão
e me denuncia quem de fato sou.
Não era para estar ali e está.
Obstáculo de ossinhos.
Em outro lugar seria um Lama
com pouco dedilhar um Yo Yo Ma.
Eu quero Handel e não clemência.
Nos muros Botero, nos jardins Kenzo Tange.
Eu não quero ver vendo.
Homens garimpando as raspas de seus ontens.
Eu não quero criatura pouca
degelo
farelo
criatura que, com pouco dedilhar,
talvez fosse
um Yo Yo Ma.
Ciclo
Restando-lhe pouco tempo de vida
observando o verão declinar nas colinas
e as amoras deprecando os vermes.
Ao lado a caveira do boi
acima o vazio nobre do urubu-rei.
Deixemos o agrado para as flores
o humo pulsante faz viver e é o que é.
Ah! quantas folhas caem no subúrbio
do silencioso caos!
Apenas,
do suicídio da pétala,
te farta memória:
Uma geração reconduzirá outra geração
ao que chamam de início da flora.
E um inverno tão quanto rigoroso
aos dias quentes
da vanglória.
O que as aves trazem
Sim.
Em tuas carnes
o sabor mel das aves que
singram
e planam sobre a pele de água e lese.
E aninha-se em suas delícias o solstício
de abril,
as tuas carnes, o veraneio
para meus cansaços e preces.
Como quero ser pássaro!
Verão
que mês lhe trará?
Sim
nessas tuas carnes
o primor de suas suculências,
esse teu sabor de presa,
caça minha.
Ave
quem virá arcado na aerodinâmica
vontade de surtar as estações?
É um pássaro?
É um avião?
Remoinho
No vórtice,
apenas um bramir
como aquela que está prestes ao parto.
Requer ao epicentro
ante o gole do abismo,
o reles apoio dum galho.
Este pequeno entrave
como fosse a mão que afaga
inseto
ou
folha.
Mas é no vórtice que se sabe
a saúva
e o mandrião.
Para mortos de fome e amores
Na suculentabilidade dos seios
esse melhor beijo das entranhas,
plugam-se mãe e rebento
à outra ponta da corda umbilical.
Para mortos de fome e amores
a portabilidade dos extremos.
Um revival.
Aspiração do galo sob o céu de Manhattan
Como pragana
os pássaros
desfazendo o azul
da parte mais alta de mim.
Cordatos e plenos
de uma leveza e solitude pelo ar.
Inspecionando nuvens
em ostentação do livre
e pela queda libertando-se
pelas frinchas da abnegação.
Quero tê-los no ventre
em ninhos.
A beligerante serpentina de asas,
essa aspiração do aviador.
O périplo conquistado por um
menino mouro em barcos de papel.
Como pragana
cordatos e plenos
os pássaros.
Enquanto seus desejos planam
sob o céu de Manhatan
— Ó como anseio vossa queda! —
aspiro que chupem tuas asas
em qualquer almoço de domingo.
Gênesis
Sopro modorra nos trigais
borrão de nuvens
debruçado vejo e não.
O jacatirão sonhando pela goiva
do mestre-canoeiro.
As iluminuras das folhas de ubá.
Masco nacos de sempre-vivas
cubro-me em barro
vestuário da primazia.
E eis a ceifa incriminando o não.
Entretanto
Paulo e Apolo em acordo.
Raízes
caruncho
Sopro modorra nos trigais.
A bomba no homem
Protejo-a dos meus esgoelamentos
soldando os lábios em mig-mag
carnivorando todo ar cálido,
descomprimindo
as coisas que nos apaixonam por dentro.
Fissura-se
a menor
das menores partes do amor
em
estupor
e
estampir.
E o pino da granada
em nossas línguas.
O sal entre os homens
Vós que cooptais os dissabores do sal
com traquejo de língua e outras glebas,
feito mesmo esta Barbarela que tanto nos metralha
com seus dilúvios flocados de cuspe,
vincando, descomposturando na pele pera
a balela desse malfadado Splenn,
retalho roto cerzido na vestidura dos dias;
tem coberto — benévolo de sempre —
as cãs dos batráquios que se tornaram
os muitos tufos de chagas no corpo antes laminado,
com o Agnus Dei,
fiel melaço de afagos da vinha.
Vós que em urdidura planejais crepitar na arcada bucal
nova dentição coalhada,
pois tornais a miragem do mel
e suas licitudes
em brutal granito.
Cega foice que entre capina
na altura do talo da nossa fome;
dessa semente regada, não pelo que lhe alimenta,
mas da ausência tamanho igual ao mundo.
Que o sabor é tão desnecessidade para o depois
de adestrar do ventre os seus ganidos,
refazendo no bicho, o homem para que sempre foi.
Voltemos à Babel — dizeis,
pela univocidade que nos faz irmãos, pais e mães;
pelo mesmo salitre que unguenta os olhos das mãos,
sim, as mãos são primeiramente a parte física,
porquanto incréu seja todo o restante do corpo.
Vós que arregimentais o alimento biltre,
miscigenando qualquer miséria de carne ou cuío de pão
como corda salvadora nos abismos.
Não nos coisifiquemos em latrina viva,
párias entre os farelos.
Quedáramos o sumo da erva pilada, as angústias do café
que é essa coisa bonita digladiando-se nas bordas.
Entretanto conter a todo custo o glutão que nos habita
com ânsia amiga,
e nesse regresso constante,
perpetrar com melindres a felicidade embutida nas gorduras.
Talvez não saiba o fruto que maceramos com a sapata dos pés,
ao qual chamo Caminho de Nós Mesmos.
Crível de nosso lugar, e a certeza de parir
sobre o astuto argumento das dúvidas
o doce sibilismo dos risos.
Não mais nos ajoelhar porque temos com orgulho
o sangue que aspergimos em nossas devorações,
e esse vermelho-guelra esmaltando nossas garras
em complexa tipologia das brânquias.
Passivos, todos eles, todos nós,
de amar quem com gosto mastiga o mesmo sal,
burilando a soberba célere com goles másculos de água.
Mas não sendo provável no apetitoso naco do fruto endiabrado
— o sono perpétuo —
há de se preferir o morrer lúcido e lento.
Não dormitaremos enquanto lá fora as praganas pilham
todo sal em suas bentrechas.
Mostraremos sim nossa cara feia de fome ao enforcar-vos,
depois comeremos nossos próprios dedos;
que é mesmo essa mobilidade terrível nos extremos das mãos,
a morte côncava,
ao invés de locupletar as partes pudentes do ócio
com os mimos das salinas.
Desfazer-se humildemente do fogo e do níquel
(digo de suas palhas)
pois sem os grãos da vã mostarda não se posterga
o mais insignificante dos amanhãs.
Macerar diligentemente as trigonometrias dos trigais,
ou, a alusão permissiva dos bocados,
que pelos dados de azar ou sorte pomos entre os dentes moles.
Sonharei, sim, com levedos, com o soro pastoso e bom dos peitos
e suas altitudes; e dos azedumes da lima-limão e suas aftas vivas.
E assim viver mouco, com a saciedade enregelada nas entranhas de zimbre,
até a hora morta dos olhos, quando o alto relevo dos cavernames do homem
ser a injusta arcada (alcatraz de ossos, grades ressequidas
aprisionando o que um dia foi a imagem de corpo),
entre a porção de sal que vós ofertais.
Então mais uma vez perguntar:
— Comeis sal comigo?
Comeis este punhado assim como os bois?
Do contrário, eis um fato — Não vos conheço.
Jamais ouvi ou quis saber.
— Comeis comigo este punhado?
— Jamais ouvi, soube ou quis.
E isso também é um pouco do morrer e viver de todos.
[Do livro Cereal Killer, inédito]
setembro, 2016
Flávio de Araújo, poeta e escritor, filho de caiçaras oriundos da Praia do Sono (Paraty/RJ) tem poemas traduzidos para o inglês e o espanhol, publicados em sites, revistas literárias e coletâneas (Whashington Square Review, Jornal de Poesia, Two Lines Issue 19 — Passageways, Asymptote, Guernica, Magazine). Publicou Zangareio (Selo Off Flip, 2008) e prepara o lançamento de Cereal Killer.
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