CONCRETA
por mais precisa
a fala
a falta
GRAVIDADE
O eterno enclausurado
na impossibilidade,
éramos
esta gravidade absoluta.
TULIPA
Rasgo carmim,
despetala-se num grito
a carne sanguínea,
boca e pistilo.
Agonia dos náufragos
cantar antes da morte.
DO DESEJO
pior o não saber
ou sabendo
o sabor
dever esquecê-lo
por sabê-lo
em seu gosto
?
RISCO
O tempo se arrisca
no mistério
da prece.
O resto é mar.
NO DESERTO DA CAVIDADE ORAL
Quando a boca seca
cede à sede
e a seca avança
na terra da garoa,
qualquer pingo d'água
diluindo a voz
cessa a sede.
No deserto da cavidade oral,
uma promessa de dilúvio.
TO TOM WAITS
Now that God has tossed the stars
against the dark
we'll watch them from a distance,
on the same backdrop
only backwards
and we'll keep our feet
firmly planted on our hearts,
the eyes turned to the sky,
with our hands
trembling with absence;
then we'll cast our bodies,
like stars,
with the same fury and faith,
to the universe.
SELF-PORTRAIT WITH PHOTOGRAPH
To love every unwanted,
washed away,
precarious bit of ourselves,
uncovering the remains of a terrifying flood:
arms,
legs,
heads,
toes,
fingers,
palms,
torsos side to side,
all to be caressed by the eye —
like a Psalm to be sung.
The sun still urges
through the window glass.
[Do livro Repátria. Demônio Negro, 2015]
A DESMONTAGEM DE HAVANA
Nem tudo é mar
em Havana
não é só o ondear
que nos chama.
Há nos olhos
um pavor ligeiro
de não se bastar.
Há o mar que não se vê,
vai além do porto dos olhos
a desmontagem de Havana.
Ao traço marulhado
faltam as cores.
[Poema inédito]
NESSA TERRA NÃO SE CANTA
Cantá seja lá cumu fô
Si a dô fô mais grandi qui o peito
Cantá bem mais forte qui a dô
- Gildes Bezerra
lança que atravessa o peito
nessa terra não se canta
são os olhos que no leito
anoitecem a visão
aqui tudo corre
o sangue escorre
mas o tempo não anda
pássaro ferido
sobre o peito emudecido
faz-se rasgo e clarão
vem a morte e não se vê,
de ossos partidos,
é mais uma vida na lida
que não vale a ascenção
faz escuro, eu já não canto
só ouço uma viola
dedilhar o coração
que lá fora
só
a escuridão
[De Golpe: Antologia-Manifesto, 2016]
Setembro, 2016
Francesca Cricelli é poeta e tradutora. Curadora da edição italiana das cartas de amor de Giuseppe Ungaretti para Bruna Bianco, Ti aspettavo nel tempo (no prelo, Mondadori, 2017). Autora de Repátria (Demônio Negro, 2015) e Tudo que toca o olhar (Scriptorium, 2013). Organizou e traduziu as cartas trocadas entre Giuseppe Ungaretti e Edoardo Bizzarri, Lettere: 1966-1968 (Scriptorium, 2013). Estudou comunicação na Università degli Studi di Firenze e Teoria Política na USP. É doutoranda em Estudos da Tradução na USP. Traduziu Dias de abandono, de Elena Ferrante (Biblioteca Azul, 2016) e Nas margens de mundos possíveis, de Vincenzo Bonaminio (Imago, 2010). Foi curadora da exposição e ciclo de encontros De uma estrela à outra / Da una stella all'altra na Casa das Rosas, em 2011, trazendo ao Brasil oito poetas italianos, durante o ano da Itália no Brasil. Leciona intelecção de literatura italiana na Casa Guilherme de Almeida. Participou de festivais literários na Itália, na Índia e na China.
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