©roberta ruocco
 
 
 
 
 
 
 

Au-delà de la nuit

 

 

Alquimista

na câmara de criação

a cápsula

de cianeto

pousada no fim da caligrafia

até onde a noite

exista

 

 

 

 

 

 

Caderno de rascunho

 

 

O lugar onde

nada acontece

ainda

apenas o risco

de (fora da linha)

a palavra

(que não virá)

acontecer

 

 

 

 

 

 

horizonte

 

 

prestar atenção

ao excesso

não para podá-lo

mas ampliá-lo

até o limite

insuportável

do palco

onde ondas

desabam

círculos

em debandada.

 

espreitar

o que se acumula

como pus

nas palavras

extremas

espremê-las

em linhas

no sentido anti-horário

até não mais

alcançá-las

 

 

 

 

 

VIII

 

 

do outro lado

da experiência

o que exibe

o espelho é triste

o que existe

é o que ficou de lado

a vida ao léu

ao largo

 

um cardume de mágoas

como cascavéis

no tempo

 

manada de búfalos

como fantasmas

na alma

 

punhado de ocos

crava úlceras

no corpo

 

 

 

 

 

 

Polinização

 

 

Escrava

de camada de minério,

raiz descalça não alcança
a flor.

Gravado

no ar,

no entanto,

mistério

em botão:

espaço

reservado

a pétalas

e perfumes

imaginários

da flor,

se flor

houvesse.

 

 

 

 

 

 

Lugar marcado

 

 

A morte

anda fazendo lobby,

leva

dia após dia

novas fatias da vida.

 

Que é isso,

querida?

Você não precisa

de tanto esforço,

já estão guardados em reserva de mercado

todos os nossos ossos.

 

 

 

 

 

 

Na escada rolante ao lado

 

 

fascínio

a blusa de crepe,

neve

atravessando

o colo

 

o coração colonizado

 

 

 

 

 

 

Provocação

 

 

O Ministério dos Sonhos

avisa:

 

Arte provoca

efeitos colaterais,

horizontais,

verticais,

espirais.

 

Se não provocar,

não é arte.

 

 

 

 

 

 

Turbidez

 

 

Cinzas no licor,

e a garganta

atravessada

de impossível.

Pudesse

voltar ao líquido

inaugural,

decantar

a suspensão do juízo

e o teor de dopamina

na noite tóxica.

Resta aceitar

o líquido envenenado

do destino

e brindar

à palavra derramada no chão

a caminho do ralo.

 

 

 

 

 

 

Lâmina cega

 

 

nas papilas

infiltrava-se

o gosto

não coado

de mágoas

pretéritas

memória

gustativa

reacendia

no miolo

do mês

faca

de cortar pão

cortando

ferrugem

de conversas

em que tudo

o que se dizia

virava farelos

 

 

 

 

 

 

Com um iceberg na boca

 

 

Antes que ela dissesse algo

após largar o canudinho

tão invejado

no copo de suco vermelho,

eu deveria ter lançado

os lábios na direção dos sonhos,

mas alguém cobrou a conta,

voz rancorosa comentou o crime de ontem,

a rapidez da vida e seus movimentos,

a agenda malva, má e rancorosa

com anotação de aula imperdível prestes a começar,

tudo, tudo conspirou para o silêncio

de quem guardou um oceano sozinho

e agora é incapaz de levantar-se

do banco redondo da lanchonete

porque viu suas melhores palavras

caírem mortas no rastro do perfume

de paralisante beleza da saia cor de nunca.

 

 

 

 

 

 

Deslimite

 

 

Requerer

o que se quer

se quiser

ser

menos que rei

mais que rês

querer

sequer

mais do que se pode

só o que puder

ser

e só se é

tudo aquilo

que se quer.

 

 

[Poemas do livro Movimento Suspeito. Uratau, 2016]

 

 

dezembro, 2016

 

 

José Antônio Cavalcanti. Contista, ensaísta, poeta e professor. Autor de Anarquipélago – poemas (Ibis Libris, 2013), Palavra desmedida: a prosa ficcional de Hilda Hilst – tese (Annablume, 2014), Fora de forma & outros foras – contos (Ibis Libris, 2015) e Movimento Suspeito – poemas (Urutau, 2016). Mantém o blogue Poemas da página que falta.

 

Mais José Antônio Cavalcanti na Germina

> Poesia