Au-delà de la nuit
Alquimista
na câmara de criação
a cápsula
de cianeto
pousada no fim da caligrafia
até onde a noite
exista
Caderno de rascunho
O lugar onde
nada acontece
ainda
apenas o risco
de (fora da linha)
a palavra
(que não virá)
acontecer
horizonte
prestar atenção
ao excesso
não para podá-lo
mas ampliá-lo
até o limite
insuportável
do palco
onde ondas
desabam
círculos
em debandada.
espreitar
o que se acumula
como pus
nas palavras
extremas
espremê-las
em linhas
no sentido anti-horário
até não mais
alcançá-las
VIII
do outro lado
da experiência
o que exibe
o espelho é triste
o que existe
é o que ficou de lado
a vida ao léu
ao largo
um cardume de mágoas
como cascavéis
no tempo
manada de búfalos
como fantasmas
na alma
punhado de ocos
crava úlceras
no corpo
Polinização
Escrava
de camada de minério,
raiz descalça não alcança
a flor.
Gravado
no ar,
no entanto,
mistério
em botão:
espaço
reservado
a pétalas
e perfumes
imaginários
da flor,
se flor
houvesse.
Lugar marcado
A morte
anda fazendo lobby,
leva
dia após dia
novas fatias da vida.
Que é isso,
querida?
Você não precisa
de tanto esforço,
já estão guardados em reserva de mercado
todos os nossos ossos.
Na escada rolante ao lado
fascínio
a blusa de crepe,
neve
atravessando
o colo
o coração colonizado
Provocação
O Ministério dos Sonhos
avisa:
Arte provoca
efeitos colaterais,
horizontais,
verticais,
espirais.
Se não provocar,
não é arte.
Turbidez
Cinzas no licor,
e a garganta
atravessada
de impossível.
Pudesse
voltar ao líquido
inaugural,
decantar
a suspensão do juízo
e o teor de dopamina
na noite tóxica.
Resta aceitar
o líquido envenenado
do destino
e brindar
à palavra derramada no chão
a caminho do ralo.
Lâmina cega
nas papilas
infiltrava-se
o gosto
não coado
de mágoas
pretéritas
memória
gustativa
reacendia
no miolo
do mês
faca
de cortar pão
cortando
ferrugem
de conversas
em que tudo
o que se dizia
virava farelos
Com um iceberg na boca
Antes que ela dissesse algo
após largar o canudinho
tão invejado
no copo de suco vermelho,
eu deveria ter lançado
os lábios na direção dos sonhos,
mas alguém cobrou a conta,
voz rancorosa comentou o crime de ontem,
a rapidez da vida e seus movimentos,
a agenda malva, má e rancorosa
com anotação de aula imperdível prestes a começar,
tudo, tudo conspirou para o silêncio
de quem guardou um oceano sozinho
e agora é incapaz de levantar-se
do banco redondo da lanchonete
porque viu suas melhores palavras
caírem mortas no rastro do perfume
de paralisante beleza da saia cor de nunca.
Deslimite
Requerer
o que se quer
se quiser
ser
menos que rei
mais que rês
querer
sequer
mais do que se pode
só o que puder
ser
e só se é
tudo aquilo
que se quer.
[Poemas do livro Movimento Suspeito. Uratau, 2016]
dezembro, 2016
José Antônio Cavalcanti. Contista, ensaísta, poeta e professor. Autor de Anarquipélago – poemas (Ibis Libris, 2013), Palavra desmedida: a prosa ficcional de Hilda Hilst – tese (Annablume, 2014), Fora de forma & outros foras – contos (Ibis Libris, 2015) e Movimento Suspeito – poemas (Urutau, 2016). Mantém o blogue Poemas da página que falta.
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