CIRCE
Porque eu os amava
me encerraram aqui
nesta ilha
neste corpo
Transformo-os
no seu melhor
mas não posso beber
do meu próprio veneno
Por anos esperei
no topo deste penhasco
Ele não voltou:
ensinem-me algo do seu mundo
que eu ainda não saiba
EM TERRA
Me chamam de algum lugar de dentro.
Som de ondas, de mar batendo em vão contra as pedras,
de ferros se chocando no fundo do oceano.
Fora, as plantas crescem.
Sob minhas unhas ainda há terra
com que semeei os mortos.
Eles vingaram.
No quintal dão frutos doces
mesmo quando não maduros.
Nos vasos — pequenos —
estendem os caules e as folhas
num emaranhado confuso de liberdade
que as mãos
— antes de serem raízes —
não puderam tatear.
Nunca lhes falta água.
A chat with Chet
Gosto mais de sua voz agora
grave, baixa, pesada
pela força de atração da terra
sem aquele caráter flutuante de quando você era
um rapaz bonito e perfeito.
Gosto da economia de suas notas
e da sonoridade que elas adquiriram
depois que você perdeu os dentes.
Gosto mais de você sem dentes
e dos sulcos que surgiram das profundezas de sua face
depois que a máscara uniforme de garoto se quebrou.
Queria ter podido afagar todo esse seu rosto verdadeiro
quando você caiu daquela janela em Amsterdã.
Poeminha criacionista
Para Marcelo Donoso
Pisava com leveza nos presságios
Tocando cada lugar de sua ausência
Onde não há água para respirar
Todos os seres têm seu rosto
Inclusive o menino estrangeiro de cabelo mapuche que pela primeira vez
[me beijou na saída da escola
Me leve para o seu deserto
Para o meu elemento
Lá onde céu nenhum "nos protege de nós mesmos"
Abri a janela dos seus altiplanos
Para nadar nos seus olhos:
Faz frio demais quando estamos sozinhos
O que você vê nos olhos de quem olha?
Atrás de mim me espreitam três mil páginas de Bolaño
Trancarei o medo em meus braços
Com a chave que usou para abrir a jaula onde me esqueceram desde o
[século XIX
Sobrevivo há muito tempo
Das lembranças que não tivemos
Porque éramos coisas de outros donos
Agora moro em um novo altar
[Cartagena de Chile, 1948]
Recreio
Não tenho pares.
Só ímpares.
Mudança
Os objetos nas caixas
urdem uma vingança
que se dará sem som
e sem movimento
Os objetos nas caixas
transpiram entre folhas de jornais
enquanto esperam com paciência
serem arremessados no vazio
pela janela do mais alto andar
por quem um dia há de arremessar
também
a si mesmo
Caminho de Bashō
O que diz respeito à montanha
Aprenda da montanha
O que diz respeito ao vulcão
Aprenda do vulcão
dezembro, 2016
Leila Guenther publicou os livros Viagem a um deserto interior (Ateliê Editorial); O voo noturno das galinhas (Ateliê Editorial), traduzido para o espanhol (Borrador Editores) e editado em Portugal (Nova Delphi); e Este lado para cima, (Sereia Ca(n)tadora, Revista Babel). Participou das antologias 50 versões de amor e prazer: 50 contos eróticos por 13 autoras brasileiras (Geração Editorial), Cusco, espejo de cosmografías: antología de relato iberoamericano (Ceques Editores), Outras ruminações: 75 poetas e a poesia de Donizete Galvão (Dobra Editorial), 70 Poemas para Adorno (Nova Delphi), entre outras. Escreve o blogue na linha da vida.
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