©jerry berry
 
 
 
 
 
 
 
 
 

*

 

 

El inconsciente es un manicomio

con vista al mar

 

Cada pez que sale del agua

trae camisa de fuerza

 

 

 

*

 

 

O inconsciente é um manicómio

com vista para o mar

 

Cada peixe que sai da água

traz um colete de forças

 

 

 

 

5

 

 

Vi al Papa despertando

de una horrible pesadilla

Dios le había contado

que leía a Rimbaud

Era año nuevo

El Papa dormía abrazado

a su Cristo de peluche

 

 

 

5

 

 

Vi o Papa a acordar

de um pesadelo horrível

Deus contara-lhe

que lia Rimbaud

Estávamos no Ano Novo

O Papa dormia abraçado

ao seu Cristo de peluche

 

 

 

 

6

 

 

Vi al Tirano arrastrando

el ataúd de Neruda

El ataúd estaba vacío

pero pesaba una eternidad

Era noviembre

Los gusanos hacían gárgaras

con las cenizas de Dios

 

 

 

6

 

 

Vi o Déspota a arrastar

o caixão de Neruda

O caixão estava vazio

mas pesava uma eternidade

Estávamos em Novembro

Os vermes gargarejavam

com as cinzas de Deus

 

 

 

 

7

 

 

Vi a Dios besando a la muerte

en un café de París

Llevaba una barba de siglos

y un paraguas

para espantar la soledad

Era verano

Su sombra se echaba viento

con la oreja de van Gogh

 

 

 

7

 

 

Vi Deus a beijar a morte

num café de Paris

Uma barba por fazer havia séculos

e um guarda-chuva

para afugentar a  solidão

Estávamos no Verão

A sua sombra abanava-se

com a orelha de van Gogh

 

 

 

 

8

 

 

Vi a las gordas de Botero

en la cama de Dios

La cama era de agua

Llovía a gritos

Dios no estaba esa noche

andaba reconociendo

el cadáver de su hijo

 

 

 

8

 

 

Vi as mulheres obesas de Botero

na cama de Deus

A cama era de água

Chovia a cântaros

Nessa noite Deus não estava

andava a tentar reconhecer

o cadáver do filho

 

 

 

 

10

 

 

Vi a la muerte llorar

en el entierro de Cervantes

La gente gritaba:

"Compañero Miguel"

"Presente"

decían los gusanos

mientras lo bajaban

a su última morada

A pocos metros de ahí

cremaban el cadáver de Dios

 

 

 

10

 

 

Vi a morte a chorar

no enterro de Cervantes

As pessoas gritavam:

"Miguel, companheiro"

"Presente"

respondiam os vermes

enquanto o desciam

para a última morada

A poucos metros

cremavam o cadáver de Deus

 

 

 

 

11

 

 

Vi a Pessoa asesinar

a tres de sus heterónimos

Vi llevarlos en hombros

hasta el río de su aldea

Vi arrojarlos uno a uno

desde un puente imaginario

Vi secar ese río

hasta las últimas lágrimas

y lo único que hallaron

fue el cuerpo de Cristo

 

 

 

11

 

 

Vi Pessoa assassinar

três dos seus heterónimos

Vi levá-los aos ombros

até ao rio da sua aldeia

Vi arremessá-los um a um

de uma ponte imaginária

Vi secar esse rio

até às últimas lágrimas

e a única coisa que encontraram

foi o corpo de Cristo

 

 

 

 

12

 

 

Vi a Marilyn Monroe

dando de mamar a su sombra

tenía los pechos tristes

y usaba camisa de fuerza para dormir

Se había tatuado en la espalda

algo revelador

También Dios fue mi amante

 

 

 

12

 

 

Vi Marilyn Monroe

a dar de mamar à sombra

tinha os seios tristes

e usava colete de forças para dormir

Mandara tatuar nas costas

uma coisa reveladora

Deus foi meu amante também

 

 

 

 

17

 

 

Vi a Dios llevarse los juguetes

de mi hijo

 

Él no tuvo infancia

me dijo la muerte en un sueño

 

Los entierra en una fosa

junto a los huesos de su madre

 

 

 

17

 

 

Vi Deus levar os brinquedos

do meu filho

 

Não teve infância

disse-me a morte num sonho

 

Enterra-os numa cova

junto aos ossos da mãe

 

 

 

 

19

 

 

Vi a Caperucita perdida en el bosque

Tenía treinta años

y el traje le quedaba estrecho

El Lobo y La Abuelita la esperaban

en el más allá

Estoy vieja para esto, se dijo

ya nadie me recuerda

El mundo es ancho y ajeno

como este bosque donde he de morir

Sólo me queda una capa roída

y una cesta donde llevo los huesos de Dios

 

 

 

19

 

 

Vi o Capuchinho Vermelho perdido no bosque

Tinha trinta anos

e a roupa estava-lhe apertada

O Lobo e a Avózinha esperavam-na

no além

Estou velha para isto, disse para consigo

já ninguém se lembra de mim

O mundo é grande e  estranho

como este bosque onde hei-de morrer

Só me resta uma capa rota

e uma cesta onde levo os ossos de Deus

 

 

 

 

27

 

 

Los viajes de la diligencia son todos al más allá

¿Tendrán flechas suficientes los apaches?

 

Vi a John Wayne arriba de la diligencia

Disparaba a todo lo que se movía

 

Lejos del alcance de las balas

los indios le cantaban el cumpleaños feliz

 

 

 

27

 

 

As viagens de diligência são todas para o além

Terão os apaches flechas que cheguem?

 

Vi o John Wayne em cima da diligência

Disparava sobre tudo o que se mexia

 

Longe do alcance das balas

os índios cantavam-lhe Feliz Aniversário

 

 

 

 

31

 

 

Vi a Kafka en el cuarto de los juguetes

Conducía un tren infinito

sobre rieles que parecían anguilas

Bajo la cama otro niño desarmaba

una oruga fluorescente

La oruga tenía el rostro de Kafka

también los muebles, los relojes

las paredes tenían su rostro

las arañas aburridas en sus telas

los juguetes en la habitación

El único que no tenía el rostro de Kafka

era el propio Kafka cuyo rostro

semejaba una página en blanco

 

 

 

31

 

 

Vi Kafka no quarto dos brinquedos

Conduzia um comboio infinito

sobre carris que pareciam enguias

Sob a cama outro miúdo desmontava

uma lagarta fluorescente

A lagarta tinha a cara de Kafka

móveis, relógios

paredes tinham a sua cara também

as aranhas aborrecidas nas teias

os brinquedos no quarto

O único que não tinha o rosto de Kafka

era o próprio Kafka cujo rosto

se assemelhava a uma página em branco

 

 

 

 

43

 

 

Vi el cadáver de Dios

pastando en la eternidad

 

 

 

43

 

 

Vi o cadáver de Deus

pastando na eternidade

 

 

setembro, 2016

 

 

Mario Meléndez (Linares, Chile, 1971) publicou Apuntes para una leyenda, Vuelo subterráneo, El circo de papel, La muerte tiene los días contados e Esperando a Perec, além de ter colaborado em revistas e antologias, nacionais e estrangeiras. A sua poesia já foi traduzida em várias línguas. Atualmente, vive na Itália, tendo recebido, em 2013, a medalha da Fundación Internacional don Luigi di Liegro. Uma seleção dos seus poemas foi publicada na revista Poesia de Nicola Crocetti. É, unanimemente, considerado como uma voz importante da poesia latino-americana.

 

 

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