©kamranki
 
 
 
 
 
 
 

certo moço quer que os meus versos

o levem ao paraíso

 

digo-lhe que que meus versos foram escritos

sob a mais pesada névoa, neles não há alegria

 

nenhuma festa

 

ele insiste, diz que eles o fazem feliz

levam-no para a vida, livram-no da morte

 

digo-lhe que os escrevi

enquanto certa língua

deslizava

sobre meu sexo

sugava meus seios

até machucá-los

(e eu adorava)

dividia minhas nádegas

e lá ficava, lá dentro

 

onde é tudo

cais

líquido

sombra

luz

 

ele, o certo moço, quer que eu lhe ensine o caminho

em que tapeçarias vermelhas estendem-se

sobre palácios noturnos

 

então percebo que seus cabelos

dançam

e seus olhos

são de uma bondade

que jamais

vi

 

 

 

 

 

 

~

 

 

pétrea em seu corpo

à prova de dor

 

desaba

 

quer se tocar

(já é tarde)

quer retornar

mas raízes em seu coração

dizem

não

 

antes, floria

 

agora — prisioneira —

o seu combate é com os naúfragos

 

ártica, desistiu

 

 

 

 

 

~

 

 

o pássaro aqui dentro

quer se reinventar

 

retiro as algemas

e ele sorri

 

acostumou-se a ser invisível

acostumou-se a ser só

 

pássaro

 

inebriada eu o adoro

estou indo ao seu encontro

 

levo comigo

uma solidão nova e antiga

que me aproxima

de mim

 

 

 

 

 

 

~

 

 

quando retornou estava velha

ao meu redor dançava quase cega

 

quis tudo que me pertencia

 

o filho que permanece em mim

o corpo que não libertei

o céu que jamais foi meu

 

pensei: tão louca e tão bela

qual dor lhe habita?

 

eu a olhava, ela me invadia

renove, renove

— repetia

 

(eu tão concha, ela tão éter)

 

invadida esqueci de qual

mais raro artefato

perdi

 

muito mais tarde

por amor

entre folhagens

li em distante lápide:

 

Gôngula sem rota, falsa esfinge sem asas

sempre em vigília, sempre à margem

 

 

 

 

 

 

~

 

 

o sax que toca distante quer proximidade

 

virgem e manca guardo sob a pele

certezas de antigas serras

 

digo não a tudo que é prisão

digo sim a tudo que é flor

e risco

 

silente aguardo o sinal

 

rainha, serva, rapsoda do antes

nada quero, tudo toco

 

corça de nenhum lugar

ao primitivo, alço-me

 

 

 

 

 

 

~

 

 

numa velha cidade

um coração agonizava

 

sozinho

 

uma mobília antiga

o protegia do mundo

 

ele se cobria

no meio do dia e esperava

as mesmas lembranças

que sempre naquela mesma hora

o silêncio e o sol

lhe traziam

 

há muito tempo ele se foi

 

saberá que parti com ele?

que jamais o deixei?

 

 

 

 

 

 

~

 

 

tímidas meninas carregam antigos rosários

 

em seus despovoados ventres

estão desesperos de outros mares

 

de outras nações

 

na primeira noite desejaram tudo

agora, entrelaçadas deitam-se no leito

do mais puro rio

 

elas descobriram:

a morte é uma eterna noite

de amor

 

e o amor é uma ameixeira

noturna

 

luminescente

 

 

 

 

 

 

~

 

 

a loucura canta para que eu adormeça

ela é de argila, solitária, não blasfema

 

não reclama

 

adora ameixa, pimentão vermelho

graviola, pitanga

 

disse-me que a liberdade é fúria

e a inocência é alimento puríssimo

 

é o que nos sustenta

 

lá, onde a grande onda derrama-se

inicia-se a primeira

dança

 

 

 

 

 

 

~

 

 

dentro deste pesado pássaro

tudo arde

 

sobrevoo Casablanca, Marrakesh, Agadir

 

não vim para ficar intacta

busco a nódoa, as fezes, o erro

 

o terno e áspero abraço

contra a muralha mourisca

 

inclino-me melhor para enxergar este destino:

uma mente andrógina escrevendo versos

desamparada pelo esplendor

 

permanece forte tempestade no horizonte

 

mas não desisto:

no meu jardim, Rosa e Pessoa

reinam

 

 

 

 

 

 

~

 

 

de uma serra perto da água

ela me diz sim

 

posso continuar a olhá-la

até ela dizer não

 

assim, em movediço leito

tornei-me açude

 

desde então

 

 

 

 

 

 

~

 

 

as aranhas de Louise me fazem chorar

lembram-me jovens e grávidas fêmeas

 

ao sol

 

apoiadas em abismos

as aranhas de Louise são mães

gigantes e leves

 

(ninguém duvide)

 

são

aves

de

bronze

com

ovos

de

mármore

fiando

em

suas

casas

de

ar

múltiplas

gotas

de

uma

única

dor

 

 

 

 

 

 

~

 

 

às margens de mim

o desejo é o mesmo

 

ir para nenhum lugar

correr para dentro

 

talvez voar

 

 

dezembro, 2016

 

 

Marize Castro (Natal/RN, 1962) é autora dos livros de poemas Marrons Crepons Marfins (1984); Rito (1993); poço. festim. mosaico (1996); Esperado ouro (2005); Lábios-espelhos (2009); Habitar teu nome (2011) e A mesma fome (2016). É graduada em jornalismo, mestra em educação e doutora em estudos da linguagem. Editou nos anos 1980 o jornal O Galo e nos anos 1990, a revista Odisseia. Edita seus livros por sua própria editora, o que define como "deliciosa e desamparada viagem".

 

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