certo moço quer que os meus versos
o levem ao paraíso
digo-lhe que que meus versos foram escritos
sob a mais pesada névoa, neles não há alegria
nenhuma festa
ele insiste, diz que eles o fazem feliz
levam-no para a vida, livram-no da morte
digo-lhe que os escrevi
enquanto certa língua
deslizava
sobre meu sexo
sugava meus seios
até machucá-los
(e eu adorava)
dividia minhas nádegas
e lá ficava, lá dentro
onde é tudo
cais
líquido
sombra
luz
ele, o certo moço, quer que eu lhe ensine o caminho
em que tapeçarias vermelhas estendem-se
sobre palácios noturnos
então percebo que seus cabelos
dançam
e seus olhos
são de uma bondade
que jamais
vi
~
pétrea em seu corpo
à prova de dor
desaba
quer se tocar
(já é tarde)
quer retornar
mas raízes em seu coração
dizem
não
antes, floria
agora — prisioneira —
o seu combate é com os naúfragos
ártica, desistiu
~
o pássaro aqui dentro
quer se reinventar
retiro as algemas
e ele sorri
acostumou-se a ser invisível
acostumou-se a ser só
pássaro
inebriada eu o adoro
estou indo ao seu encontro
levo comigo
uma solidão nova e antiga
que me aproxima
de mim
~
quando retornou estava velha
ao meu redor dançava quase cega
quis tudo que me pertencia
o filho que permanece em mim
o corpo que não libertei
o céu que jamais foi meu
pensei: tão louca e tão bela
qual dor lhe habita?
eu a olhava, ela me invadia
renove, renove
— repetia
(eu tão concha, ela tão éter)
invadida esqueci de qual
mais raro artefato
perdi
muito mais tarde
por amor
entre folhagens
li em distante lápide:
Gôngula sem rota, falsa esfinge sem asas
sempre em vigília, sempre à margem
~
o sax que toca distante quer proximidade
virgem e manca guardo sob a pele
certezas de antigas serras
digo não a tudo que é prisão
digo sim a tudo que é flor
e risco
silente aguardo o sinal
rainha, serva, rapsoda do antes
nada quero, tudo toco
corça de nenhum lugar
ao primitivo, alço-me
~
numa velha cidade
um coração agonizava
sozinho
uma mobília antiga
o protegia do mundo
ele se cobria
no meio do dia e esperava
as mesmas lembranças
que sempre naquela mesma hora
o silêncio e o sol
lhe traziam
há muito tempo ele se foi
saberá que parti com ele?
que jamais o deixei?
~
tímidas meninas carregam antigos rosários
em seus despovoados ventres
estão desesperos de outros mares
de outras nações
na primeira noite desejaram tudo
agora, entrelaçadas deitam-se no leito
do mais puro rio
elas descobriram:
a morte é uma eterna noite
de amor
e o amor é uma ameixeira
noturna
luminescente
~
a loucura canta para que eu adormeça
ela é de argila, solitária, não blasfema
não reclama
adora ameixa, pimentão vermelho
graviola, pitanga
disse-me que a liberdade é fúria
e a inocência é alimento puríssimo
é o que nos sustenta
lá, onde a grande onda derrama-se
inicia-se a primeira
dança
~
dentro deste pesado pássaro
tudo arde
sobrevoo Casablanca, Marrakesh, Agadir
não vim para ficar intacta
busco a nódoa, as fezes, o erro
o terno e áspero abraço
contra a muralha mourisca
inclino-me melhor para enxergar este destino:
uma mente andrógina escrevendo versos
desamparada pelo esplendor
permanece forte tempestade no horizonte
mas não desisto:
no meu jardim, Rosa e Pessoa
reinam
~
de uma serra perto da água
ela me diz sim
posso continuar a olhá-la
até ela dizer não
assim, em movediço leito
tornei-me açude
desde então
~
as aranhas de Louise me fazem chorar
lembram-me jovens e grávidas fêmeas
ao sol
apoiadas em abismos
as aranhas de Louise são mães
gigantes e leves
(ninguém duvide)
são
aves
de
bronze
com
ovos
de
mármore
fiando
em
suas
casas
de
ar
múltiplas
gotas
de
uma
única
dor
~
às margens de mim
o desejo é o mesmo
ir para nenhum lugar
correr para dentro
talvez voar
dezembro, 2016
Marize Castro (Natal/RN, 1962) é autora dos livros de poemas Marrons Crepons Marfins (1984); Rito (1993); poço. festim. mosaico (1996); Esperado ouro (2005); Lábios-espelhos (2009); Habitar teu nome (2011) e A mesma fome (2016). É graduada em jornalismo, mestra em educação e doutora em estudos da linguagem. Editou nos anos 1980 o jornal O Galo e nos anos 1990, a revista Odisseia. Edita seus livros por sua própria editora, o que define como "deliciosa e desamparada viagem".
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