há dentro do meu crânio
uma revoada de pássaros
que não se cansa de chilrear
e vai de árvore em árvore
como um enxame de abelhas
uma asa se abre em minha pupila esquerda
e voa negra para o seu abdômen
quebrando desejos na ruflada
ecoando a oração dos pássaros
em seu umbigo vadio
negaceando
bênçãos futuras
não atinei:
a roda da fortuna girava
com nossas mãos dadas
tínhamos vinte e um
tocava Pink Floyd
esmagávamos os sexos
dois caranguejos
rebulindo as ovas
das carapaças
no escárnio das areias
mornas
em um dia de sol, romperei
a carapuça de esporas
caminharei, lenta, como um
caracol de jardim: sem engolir a vida
de uma só vez, desesperada
entenderei a graciosidade dos monges
morrerei sem culpa por ter mastigado
o mundo como uma planta doce e calmante
direi aos espíritos que não bebi
os minutos de minha existência
nas taças de ayahuasca
não há taquicardia
nos sonhos com a avó
não há mão que treme
segurando a caneta
nem queda de pressão
por causa do mormaço
as varizes de suas pernas
abrem ruelas clandestinas
enquanto afogam a córnea
fermentada em glaucoma
não há medo da morte
os anjos aparecem antes
de amanhecer
quando a cegueira não existe
com o catabolismo do sol
devia sentir a vó tão viva
tocando sua niqueleira de pano
o fecho prateado e flores bordadas à mão
ela arquivava orações, medalhas religiosas
eu deveria carregá-la por boa lembrança
pôr as moedas recolhidas: uma guardadora de carros
no entanto, é como se acariciasse sua mão morta
as veias verdes como cordas de viola
enforcando-me: petit mort / sempre que roço
nos seus vestidos fico asmática
e um réptil de saudade destrói a rabadas
as ruas por onde caminho
desconta a sanha
na própria cabeleira
caindo como buganvílias
dos cinco andares da cabeça
explode em flores púrpuras
dentro das orelhas
na veia cava inferior
é uma quimioterapia esfarelando
o platô tibial da paciência
não há Pagu no Iraque que sirva
ao gafanhoto do tempo
o feitiço se volta contra o feiticeiro
com uma colher furtada o prisioneiro escavou um túnel
desembocou na raiz de um vulcão no Pacífico,
no cardume de robalos guardou
água do mar na garrafa térmica
escondeu-se em um estábulo abandonado,
na companhia de um pangaré fóbico
na solidão de fugitivo bebia o canto da sereia com café velho
servia cigarro de palha ao acabrunhado pangaré
juntos dividiam feno com cannabis e as dores
na grande tempestade de Virginity Town um raio matou-os
poupando o ponto elétrico do rádio que tocava Jimi Hendrix
A mansão ultrapassada. Os móveis estão descascados, o chão trincado e as paredes mofadas. O papel de parede descasca irreverente despetalando uma floresta tropical incendiada. As lâmpadas estão queimadas nos abajures e há anos ninguém as troca. As plantas estão mortas e os peixes coloridos necrosados no aquário do aparador da porta de entrada. Os gatos não arriscam mais leite na porcelana decadente e insetos venenosos grudam-se nas frestas das cortinas puídas. Uma boneca de cabelos raspados borra seu rímel na acetona da escrivaninha, chorando álcool. Ela faz de um carrapato sua goma de mascar e contorce a mandíbula enquanto maquina mentalmente uma fuga da mansão. Na varanda do salão de festas estilhaçado há um monte de cipós: eles dão para a piscina cheia de lodo e folhas secas. A boneca pode se pendurar como um Tarzan e fazer da saboneteira seu barco e dos cotonetes, remos.
[Poemas do livro Ardiduras. Rio de Janeiro: 7Letras, 2016]
setembro, 2016
Priscila Merizzio é curitibana. Publicou os livros de poesia Minimoabismo (Patuá, 2014), finalista do Prêmio Oceanos Itaú Cultural, e Ardiduras (7Letras, 2016).
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