©mira nedyalkova
 
 
 
 
 
 
 
 
 

há dentro do meu crânio

uma revoada de pássaros

que não se cansa de chilrear

e vai de árvore em árvore

como um enxame de abelhas

 

uma asa se abre em minha pupila esquerda

e voa negra para o seu abdômen

quebrando desejos na ruflada

ecoando a oração dos pássaros

em seu umbigo vadio

 

 

 

 

 

 

negaceando

bênçãos futuras

não atinei:

a roda da fortuna girava

com nossas mãos dadas

tínhamos vinte e um

tocava Pink Floyd

esmagávamos os sexos

 

dois caranguejos

rebulindo as ovas

das carapaças

no escárnio das areias

mornas

 

 

 

 

 

 

em um dia de sol, romperei

a carapuça de esporas

caminharei, lenta, como um

caracol de jardim: sem engolir a vida

de uma só vez, desesperada

entenderei a graciosidade dos monges

morrerei sem culpa por ter mastigado

o mundo como uma planta doce e calmante

direi aos espíritos que não bebi

os minutos de minha existência

nas taças de ayahuasca

 

 

 

 

 

 

não há taquicardia

nos sonhos com a avó

não há mão que treme

segurando a caneta

nem queda de pressão

por causa do mormaço

 

as varizes de suas pernas

abrem ruelas clandestinas

enquanto afogam a córnea

fermentada em glaucoma

 

não há medo da morte

os anjos aparecem antes

de amanhecer

quando a cegueira não existe

com o catabolismo do sol

 

 

 

 

 

 

devia sentir a vó tão viva

tocando sua niqueleira de pano

o fecho prateado e flores bordadas à mão

ela arquivava orações, medalhas religiosas

eu deveria carregá-la por boa lembrança

pôr as moedas recolhidas: uma guardadora de carros

 

no entanto, é como se acariciasse sua mão morta

as veias verdes como cordas de viola

enforcando-me: petit mort / sempre que roço

nos seus vestidos fico asmática

e um réptil de saudade destrói a rabadas

as ruas por onde caminho

 

 

 

 

 

desconta a sanha

na própria cabeleira

caindo como buganvílias

dos cinco andares da cabeça

explode em flores púrpuras

dentro das orelhas

na veia cava inferior

é uma quimioterapia esfarelando

o platô tibial da paciência

não há Pagu no Iraque que sirva

ao gafanhoto do tempo

o feitiço se volta contra o feiticeiro

 

 

 

 

 

 

com uma colher furtada o prisioneiro escavou um túnel

desembocou na raiz de um vulcão no Pacífico,

no cardume de robalos guardou

água do mar na garrafa térmica

escondeu-se em um estábulo abandonado,

na companhia de um pangaré fóbico

na solidão de fugitivo bebia o canto da sereia com café velho

servia cigarro de palha ao acabrunhado pangaré

juntos dividiam feno com cannabis e as dores

 

na grande tempestade de Virginity Town um raio matou-os

poupando o ponto elétrico do rádio que tocava Jimi Hendrix

 

 

 

 

 

 

A mansão ultrapassada. Os móveis estão descascados, o chão trincado e as paredes mofadas. O papel de parede descasca irreverente despetalando uma floresta tropical incendiada. As lâmpadas estão queimadas nos abajures e há anos ninguém as troca. As plantas estão mortas e os peixes coloridos necrosados no aquário do aparador da porta de entrada. Os gatos não arriscam mais leite na porcelana decadente e insetos venenosos grudam-se nas frestas das cortinas puídas. Uma boneca de cabelos raspados borra seu rímel na acetona da escrivaninha, chorando álcool. Ela faz de um carrapato sua goma de mascar e contorce a mandíbula enquanto maquina mentalmente uma fuga da mansão. Na varanda do salão de festas estilhaçado há um monte de cipós: eles dão para a piscina cheia de lodo e folhas secas. A boneca pode se pendurar como um Tarzan e fazer da saboneteira seu barco e dos cotonetes, remos.

 

 

[Poemas do livro Ardiduras. Rio de Janeiro: 7Letras, 2016]

 

 

setembro, 2016

 

 

Priscila Merizzio é curitibana. Publicou os livros de poesia Minimoabismo (Patuá, 2014), finalista do Prêmio Oceanos Itaú Cultural, e Ardiduras (7Letras, 2016).

 

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