Tout
passe, tout casse, tout lasse.
Victor
Hugo
De
repente, o meu amor, esse amor ora tão profundo, descansou. Deus
ensurdeceu de tanto ouvir minhas orações.
Abro
aquela caixa e não há confusão. A caixa onde estão as minhas memórias,
já que não as carrego mais.
A
verdade é que desisti da poesia porque mandei o mesmo poema para
diferentes pessoas. Todas acharam que o fiz pensando nelas, mas já nem
me lembro para quem era. Ficou o poema, isento. Eu não vivo assim, com
isenção.
Sempre
declaro a posse, sem saber, certamente, a qualidade da terra.
Compreendo agora por que consigo produzir grãos em qualquer terreno.
Por isso, não senti raiva quando elas foram embora.
Um
motivo revelado depois de vinte anos ainda tem importância? Ontem eu
soube, de sua própria boca, que ela gostava do meu amigo, em vez de
mim. Por isso disse não. Sinto graça porque soube o motivo verdadeiro,
ainda que tardiamente. Talvez eu respondesse a mesma coisa,
convenhamos, crianças não têm tato, nem sabem o que é tato. Ela não
quis ficar comigo nem ficou com ele. Ele gostava de outra pessoa.
Uma
vizinha, muito simpática, calada, com bonitos olhos e bonito sorriso,
mora alguns andares acima de mim. Ela me cumprimenta, conversa um pouco
enquanto dura a ascensão do elevador. Os andares não apenas nos
separam, o concreto e os tijolos entre os apartamentos são tão rígidos
que nem eu posso rompê-los.
Eu,
caminhando, me obrigo a olhar à frente, sempre à frente, não para o
lado, para ver se há alguém em minha companhia.
Pela
primeira vez em minha vida, primeira vez, presencio a ausência do amor.
Vou a todos os destinos ou ao outro lado da rua, depois de presenciar o
furioso ressurgimento das coisas.
Tudo
começou a mudar quando achei uma peça de roupa debaixo do travesseiro.
Esquecida, ela...
Meu
primeiro amor, meu primeiro amor reapareceu. Inesperadamente. Faz tanto
tempo que aconteceu! Ver seu rosto, aquele rosto que estivera ao meu
lado, e senti-la presente, guardada e consequente, faz com que eu
navegue novamente rumo às Américas, em busca de uma riqueza que julguei
esquecida em mim.
Você
cisma e muros caem. Portões abrem-se.
Seus
gestos não são harmoniosos. Aguardo a conquista de tudo.
Teu
sorriso, rendeira, é o sorriso da amendoeira.
Sou
bastante esperto em dizer sobre meus sentimentos por aí. Como se sente
quando falo de você? Talvez não seja boa ideia apregoar a seu respeito.
Parece puro desrespeito. Você gosta de mim, contida. Por isso, me é tão
querida. Guardo. Guardo. Guardo. Guardo.
Te
cultivo.
Continuei
a olhar seus olhos castanhos, depois desse dia sem paisagens.
Essa
mulher faz um mundo. Eu, não aviso, apenas afirmo:
—
Quero entrar.
Ainda
que não possa, percebi que já vivo em outro lugar.
Abro
os olhos no curso da madrugada, sem me preocupar com meu descanso.
Acordo porque quero. Porque sou acordado.
Para
Ana Elisa Ribeiro
Meu
amor por ti é um diamante que nasceu depois que eu te conheci. E tê-lo
me faz provido de algo sem valor de mercado, sem possibilidade de
comércio. Eu tenho um diamante do preço de um Sol.
Você
é uma janela aberta em um dia sem nuvens.
Inundado
de você, transbordo.
A
garrafa de água fica do lado de fora, não guardo na geladeira. Gosto do
gosto dos dias.
Estou
ficando cada vez com menos cabelos. O tempo me descobre.
Tudo
passa, tudo quebra, tudo cansa.
março,
2016
Rafael F. Carvalho
(São Paulo, 1978) é autor dos livros A Estante Deslocada
(2011), A Cor do Sal (2013) e Terceiro
Livro (2015), publicados pela Editora Patuá. Bacharel em
Letras pela USP. Colunista da revista Samizdat
desde 2012. Tem textos publicados em antologias e revistas brasileiras,
sendo os mais recentes do Suplemento Literário de Minas Gerais. Mora em
Belo Horizonte.
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