__________________________
O poema a seguir nomeia o livro mais recente de Ricardo Primo Portugal,
publicado pela Editora Patuá.
__________________________
A face de muitos rostos
Frente ao mentecapto pluricéfalo monstrengo
multidões sequiosas sôfregas se prostram
Junto à fossa abissal escarcalhada
transbordante desde os mais baixos limites
eleva-se nefando ele ou isto-que-seja
escorre às formas ordinárias que desfilam
a seu desígnio, a turba dobra-se e goza
ao jugo abjeto, vende-se e geme a seu império
todos comem trabalham amam defecam
matam morrem pelo mundo humano e fedem
e fodem entre ferros e concretos pandos
urbe et orbi recorre seu olho estranho
Desde os últimos e mais profundos círculos
a fera em ira espalha fraude e usur
nefanda vem a face dos abismos
que se dissolvem e restauram continuamente
como múltiplos seus lados (algo entre nuvem
e um quase polígono quando se fixa
e quartzoza imita algum fino cristal
ou enxame de vespas, ou vestes em andrajos)
mas sempre indiviso é o vento de seu hálito
que tudo sopra inflama e perpassa ao tempo
que escasseia, e ele desforra-se entre dentes
de todo o possível novo desde sempre e antes
Ele, o lodoso demônio — a rostos mutantes,
sim, mas uma só face remanesce ao fundo
a cara enlouquecida do velho entre os velhos
o homúnculo pequeníssimo, e súbito
gigantesco é renascido, às órbitas
saltadas boca escancarada e carranca
escarrada na bocarra berrante
o grito rasga-se para dentro de si mesmo
sufocado apertado sem ar prestes a
explodir do buraco negro do ódio
maior, condensado ano após ano
Às fauces do horror fascista reproduzem-se
facínoras a matar/massacrar/deglutir
devorar os filhos/ as filhas/ este filho
à sua imagem e semelhança no espelho,
as faces de terror da infância reduzem-se
ao rosto furiosamente satúrnico o
único recôncavo onde repousa o velho
este resto de imagem crua antiga
O terror nazi que quase tudo toma e
a todos arresta em seus disfarces à fria
guerra e ao fazer as pazes refaz-se renovo
nas milícias de polícias aflitas efusivamente
cumprimentadas ao cumprirem seus devidos
fins respeitabilíssimos, e que certamente
empoderadas enredam-nos com as ditas
Dina Stazi e outras estirpes de dedos-duros
perenizados a estas sereníssimas repúblicas
réprobas e prósperas, a retinirem
ricas medalhas em metálicas ditaduras
E enregelam-nos, estátuas a beira-túmulos
depois emparedam-nos em sólidos estuques
porém seguimos, empedernidos e estoicos
perante seus sumários diagnósticos —
Venceremos!, irrequietos perestroikos
ainda seres alados enquanto stalags abrem-se
e aleitam os que sempre neles se alistam
séquitos de guardas pretorianos preparados
prontos com mil pontas e pênis afiados
engalanados para a glória onanista
de seu alentado galope em coturnos
Jorra o terror sionista o xintoísta
fundamentalista militarista o civilista
o terror antisemita o anticomunista
Sempre o terror redobra a tudo que retorna
sob o torpor que embota à fantasmagoria
de gorilas vestidos de verde – o verdor
do terror que não se esgota à sua própria orgia
copioso em lágrimas e risos o terror
baboso tedioso leitoso bondoso
católico padrecoso na voz dolente
de adâmicos adolescentes que não crescem
e no vozerio inútil estridente ridente
à rua sem saída da história – o ruinoso
e melancólico texto dessa dama grega
que se reescreve continuamente desde
lapsos da memória autovelada vendida
e relapsa, um palimpsesto em frangalhos
A memória que se esfacela como se afásica
a descosturadas sinapses em Alzheimer
a memória que se esfarela como pão velho
retirado das bocas famintas que repetem
a fala moderada mordiscante reverenda
a fala oficial referendada entre velhacos
a moderna mentirinha a módicos preços
Um pesadelo do qual quero acordar [Brecht]
repleto de mortos que se foram humílimos
à forca e ao logro do lucro irrisório
e às guerras pela força ubíqua ao claro dia
(recôndida à vidinha diária tão cordata)
de poderes postos dispostos em séries
de palavras isentas pudendas e sérias
que a todos e tudo arrojam ao malogro
gerações jogadas à lata de lixo
A história é a lata de lixo da história
E sobre tudo isso assoma agora
ele mesmo novamente, e vem
tal troncho espantalho, suspende
o olhar severíssimo que estertora
(o qual deixa quieto ao fundo dos espelhos
e permanecendo à espreita pelas frestas)
e então oferenda-se à face cordial
enquanto digere à grossa pança o excesso
requentado de seu último banquete,
a exibir este seu outro rosto brando —
o rosto de antes ou depois,
refeito sorridente demônio idiota
liberal menopáusico deposto
democrata menárquico
monárquico fracote
dado a ares virginais
e traços de quase pudores
até rubores de menininha
aparentado ao bom pai de família
este um senhor tão educado
[in A face de muitos rostos, poemas. São Paulo: Patuá, 2015]
setembro, 2016
Ricardo Primo Portugal, escritor e diplomata, nasceu em Porto Alegre/RS. Mora em Bruxelas, Bélgica. Publicou: A Face de Muitos Rostos, poemas (Patuá, 2015); Antologia da Poesia Clássica Chinesa — Dinastia Tang (Unesp, 56º Prêmio Jabuti, tradução); Dois outonos — haicais (Castelinho, 2012); Poesia completa de Yu Xuanji (Unesp, finalista 54º Prêmio Jabuti, tradução), DePassagens, poemas (Ameop, 2004), entre outros.
Mais Ricardo Primo Portugal na Germina
> Poesia