J. da abertura constante
"tudo de amor me é só
simulacro de amor"
e após expor
nosso coração para que o cocem
por dentro com facas de magarefe
restam-nos da goela ao púbis
essas feias
suturas de açougueiro
uma sucessão de
anéis de noivado
atirados no bosteiro
porque antes não o sabíamos
: um sentimento de cão
viralatíssimo
indo de rabo abanando para
o ritual de eutanásia
I. açougueira do ímpeto incontível
aquele grunhir agônico
de quem faz com seu cio
uma chacina no chiqueiro
um redemunho na penumbra
(os porcos esfaqueados no sovaco
os amantes unhados no miocárdio)
sem sujar o vestido
sem desmanchar o cabelo
é da estirpe das que não
discernem as rezas
de antes de comer das
de depois de gozar
W. dos poemas pobres
são sempre aqueles pregos
que nunca se convertem em trens de ferro
é sempre aquela âncora enferrujada
que nunca se transmuta em borboleta inefável
vejouça: sussurrangem penadas
as almas dos versos
fenecidos em sua gênese
todos aqueles poemas
de pedigree sem-vergonha
não aguentam
que se lhes batam os pés
que se lhes mostrem
os dentes da exegese
tio B. do velório
na sala exígua — a casa
aquele
cheiro de confinamento —
: quadros de santos entre
retratos de almas-já-penadas
adoça-lhamansa a morte
a fotografia (da
adúltera alcoólatra amásia)
ser sepultada consigo
esses desejos já-fósseis
epitáfios testamentos vaidades
coisas que nos consomem de
dentro para fora o fôlego
: uma vida inteira de alegrias
recitadas em sotaque de silêncio
num idioma ainda não-nascido
numa língua extinta há muito tempo
D. do antijúbilo
as mãos macias do obstetra abortífero
moscas varejeiras
circunsobrevoando o ventre
da noiva prenha
do amante
L. B. da insônia
o amor lhe é
: noites rasgadas de
rimbaud aberto
de vitrola acesa: unhas
de piaf a lhe arrancar
o coração pela goela
a vida lhe é
: a casa limpíssima
(discos livros em austera
ordem alfabética
a louça asséptica
intactalva
— mas nenhuma carne onde
exercer a fome)
Z. B. sorveteiro da autoincineração
porque não se suborna
o mundo com
algodão-doce e sorvete
então querosene!
de-va-gar deixar
que os silêncios mais lentos
por dentro de si se
queimem
que a metade miocárdica
desusada confira
suas trincas suas
escaras
que a metade
gasta afirafague sua
metade que falta
padre L. das homilias despojadas
a doutrina ensina
"diabos nos compram a alma
sem que tenham como
quitar suas dívidas"
e deus —
apesar de nossos
intestinos miseráveis — não
nos admoesta
os orgasmos infeccionados
o livre-arbítrio desgovernado
só nos ordena que
lhe roguemos menos
que gastemos nossas velas
apenas com bons defuntos
F. do amor transvertido
como quem adorna com
flores de plástico o vazio
(silicone salto-alto brincos
kikalvarenguianos) —
e apesar do ato-fal(h)o
e de nenhum óvulo — o
próprio corpo como
um oratório
farnesandradeano
mas o mundo lhe engenha grotas
lhe engendra no peito peçonhas
uivos de paz precária
entremeados a rogos
de deus-te-(a)pague
então jura amar de novo
só quando aprender a
converter esterco em ouro
P. do noivado casto
se te me vieres em júbilo
tira
os restos de bosta de porcas antepassadas do sapato
te juro para depois do
deusbençoe uma
donzelice
ígnea
abrasiva
uma bucetinha muito das mais doces
capaz de tornar um
coração incauto
um torresmo
D. da iniciação com o primo
depois que cólica-de-ventre
inaugurou-me eva
na pássara púbere
compus casal de primos
e sua recorrente cópula
fugaz feroz
detrás da casa
— enquanto dentro
parentes e visitas
rezavam novena
rogavam por perdão
lavoura farta vida longa
futuros filhos-e-netos sem defeitos
: não sabiam — não
suspeitavam! —
aquela ternura perturbadora de
ora-pro-nóbis
roçares de açucena entre
pés-de-roseira na penumbra morna
T. da travessia desértica
nesta vi(d)a por vezes
há muita miragem ilusão
de que são potáveis os brejos —
resguardamos as águas
para quando de sedes
que de fato as mereçam —
e de repente eis
águas muito velhas
que perderam o
poder de saciar
e então — dentro onde
o árido se alastra —
pulsa disrítmico
um negócio já duro
(diamântico
paralelepípedo
nervura apenas)
ninguém conseguirá mastigá-lo
com dentes ainda-de-leite
dezembro, 2016
Wilson Torres Nanini, autor de Alcateia (2013) e Escafandro (2015), ambos pela Editora Patuá, é mineiro de Poços de Caldas (1980) e vive em Botelhos/MG.
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