OLHOS DE REBENTAÇÃO

 

 

Vinha assim não se sabia

naquela estação.

 

O verde a descer entre os desertos

varando mil olhos de rebentação.

 

O primeiro sol depois do caos

abriga

a antiga plantação de existir

fora de época.

 

Os séculos em cachos

machucados de lugar,

 

refugam

para quem não sofreu

de safras.

 

Só o indecifrável dos dias nos remete.

 

 

 

 

 

 

DO QUE SONHAVA A IDADE

 

 

A sequência dos trigais

não se eleva em desistir.

 

Subsemente... convoca-me

às geografias do solo:

repete-me sem dor

e sem estilo.

 

Tranquilo abismo

de turvas nomenclaturas.

 

Agricultura interior

arando o peito

colheita adentro,

meus ossos crescidos.

Fratura em flor.

 

Pele.

Tudo mais simples

do que sonhava a idade 

plena de livros.

 

Cerimônia e silêncio

me esperam

no lado de fora do

obstáculo.

 

O sono escuro.

 

Estábulos circundam a noite,

e seus cavalos de pensar

pretendem ficar mais amplos.

 

Entre os campos

cabelos dormidos de engenhos

e escombros.

 

Calendário escasso.

 

Os números machucados

antecipam com as luas as lutas...

 

Cada pedra é pão

que não se cumpriu.

 

 

 

 

 

 

O BANQUETE DOS ALVOS

 

 

Primeiro era a renúncia

desprendendo, minuciosa,

os ganchos nascidos

— por experiência —

no coração.

 

Depois, o fulgor das amoras

a converter tuas lavouras

em aço de memórias já devastadas

nessa era extrema,

quando um susto no tempo

desintegra tua viagem.

 

Eles são muitos, eu sei - os bárbaros-

Por isso estabeleceste vasta demora.

Para que a verdade principal

não execrasse tua solidão.

 

Solicitas à noite

o banquete dos alvos

com Fúrias inalcançáveis.

 

Mas não há recompensa

para o silêncio

se o ordinário te atravessa.

 

 

 

 

 

 

DE ONDE ME AGUARDO

 

 

De onde me aguardo

uma calma de leopardo

lambe a parte contrária da tarde.

 

A praia extensa protege um amplo

florido de águas.

 

E eu garimpo conchas.

 

Às vezes faço um colar

sem lembranças.

 

 

 

 

 

 

A PONTE PÊNSIL DO SILÊNCIO

 

 

Seguro a ponte pênsil do silêncio para escrever sobre precipícios cegos, recém-chegados, com vista para a sorte. Singro-me e eles me refazem partir do ponto que mais nos atinge em queda livre: a invalidez das escolhas brotadas no leito crescente dos massacres. Alguns se dizem sacros, outros lacustres, outros embustes...todos sem nenhum acréscimo de humanidade. Rompem o lacre mal feito no parapeito das cidades e o que dentro delas nos transtorna. Escrevo sob a plataforma de uma fraqueza nascente. Mas que não se exime. Sob o crivo dos anti-alívios, dos uivos convertidos em raiva de tristeza. Saraiva interior. Sem fortaleza estou perdendo o ritmo. Ouço respiros no rio e uns tiros longínquos num fado fixo advindo das derivas, lá onde Deus quase não salva: saliva. Soluça. Está bravo? Não sei... Não sei se devo escrever assim, miúdo, entre o medo e o mundo. Escudo e alvo. Selva. Não sei se devo levar-me em equilíbrio nesses vocábulos que não se acostumam com o desprezo, com o prejuízo súbito de ausências não prometidas. Então adjetivo. Adjetivo e desabrigo-me no transbordo das surpresas. Escrevo. Escavo meu coração feito o tigre a sua presa. Rezo. Mas tanto, tanto, que tento lavar a correnteza. Esfrego-a nos olhos feito quem esfrega a roupa na pedra. Deito a cabeça sobre a mesa. Dobro os braços, redobro a rima, mas é difícil porque preciso perfurar a escassez do frágil solo das urgências. É tarde. Tem rumo de naufrágio essa terra. Terror sem nome consentido. E o dia era de uma cor mascava. Sólida. Os nervos d'água mantidos, rijos, enquanto se alavam - apáticos - os peixes e outros animais menos aquáticos. Matar um rio e seus filhos requer derrames pelo caminho e andaimes de arames na alma em farpa. Na alma em falta. Sozinham.

 

 

 

 

 

 

QUE HORAS SÃO?

 

 

Já vai anoitecer. Dormem os despertadores. Concentram-se as casas. As cozinhas. As coisas em seus lados de dentro se arrumam. Cheiro de Chá. De coentro. Faz bem para úlceras e dúvidas. Acelera o lirismo. Nesses meandros. Florescem quadros. Escudos. As tábuas dos barcos. O ar. Há um não-lugar fundamental para tudo. Eu sei. Existirá espera maior que a fuga? As possibilidades arrancadas de seus eixos, feito peixes, nem sempre se deixam abater. Algumas voltam sozinhas. Pulam para dentro ou para fora dos agoras. Revogam-se de fé até o afã de um novo curso. É isso! Isto é uma defesa sem época. De defeso. Preciso retirar a tensão destas palavras. Preciso tentar retorná-las até o seu estado inicial de correnteza. Fazer a gentileza do silêncio. O silêncio não é mais do que o corpo ainda não sabe. É um discurso. Ouço meu coração bater. E as portas. E os sustos. Motor de pulso. Fluido. Tenaz. O sangue faz um ruído de rio atrás do ouvido. Desce, pescoço adentro. Sobe. Ondula levemente a arte nas artérias. Engulo a saliva breve. Repetitiva. E o rio segue pela máquina jugular de que sou feita... Ou desfeita? Ainda estou aqui. — você está — Existir é um tom. O tempo me alega — sem erre — e estreita. Nada é trágico. Sou apenas mais um relógio humano. De cordas e vestígios. Emano. Vogais. Vocalizo a água que esvazia dos dias. Atravesso a ponte entre os ponteiros. Pondero a válvula mitral involuntária que me atreve. Abrevio o óbvio pelo menos tento. Sem vírgula. Fôlego pouco. Escrevo para aliviar a garganta no vento. Pra perguntar que horas são. Que horas sou... por exemplo.

 

 

 

 

 

 

O OUTRO LADO DO TALVEZ

 

 

Sinto sede. Entrarei logo cedo no assunto pois preciso comprar pão. Que um violoncelo rubro reabrisse meu sonho no estranho da noite era o que eu queria. Ontem. Mas não. Estou indo à padaria, agora, enquanto penso enlaçada ao sono que sobrou da vigília nada musical. Digo que a noite me acordoou por inteiro. Não adormeci para que a lucidez me guardasse um pouco mais. Porém, não adiantou. Tampouco adiantaria chorar. E não é pra menos! Tenho braços pequenos pra sonhar com violoncelos. Por isso, poupo meus ombros e pernas, a fim de retocar as ilusões dos escombros para os quais fui cifrada. — Não era minha essa partitura. — Vou dizer em miniatura, que talvez doam os pulmões da mudez, quando brotarem as flores aéreas e, desatados, voem em forma de borboletas iniciais. Sem mais absurdos. Feito dois arbustos, bifurquem-se nos medos, nos meados do começo. E inspirem o grito mais agudo, por entre os tubos da falta, da flauta de tudo. Talvez esteja lindo o dia, mesmo com seus alvos consumados. E os declives sem alívios. E as claves. Talvez eu tenha um barco azul e branco e águas inéditas embalem-me num silêncio definitivo. Talvez eu alcance o outro lado do talvez e isso não seja uma prosa mas uma represa às pressas. Antes da hora. Foi assim que amanheci. Por absoluta falta de audição: eu não soube ouvir mais do que pude. Quero pães doces. Umas xícaras de açude.

 

 

 

 

 

 

ORATÓRIOS D'ÁGUA PARA GUARDAR HOJES

(dos redemoinhos à noite)

 

 

É quase ontem

em alto mar.

 

Do altar

escuto o escurecer

 

na escolta do sono.

 

Sereno em volta.

Escunas e sinos

 

Meninos longínquos

ensinam-me

— num choro secreto —

sobre o chão dos olhos

submersos

no rosto.

 

E me decretam

ser humano

 

nas falhas.

 

Resgatam-me do rito

aflito

dos afetos.

 

Há sempre uma tontura

no caminho,

 

quanto menos marinho.

 

A mente reage em giro,

agora.

 

— Qual a parte mais segura

dos redemoinhos? —

 

Rodopio-me de dúvidas

para baixo da ausência.

 

A fim de que os eixos

 

dos seixos

me puxem a salvo

 

até o trapiche ou navio

mais próximo.

 

Desconfio da chance,

pela última vez.

 

Nessa escassez de alívio

me dilúvio.

 

Sou minha própria

âncora.

 

Elevadiça.

Manca.

 

Avanço-me

na alavanca dos vínculos.

 

Clavícula exposta

desde o labirinto.

 

Retorno à tona.

 

Em oratório secular

respiro.

 

Mantras escorrem pela boca

da noite

afora.

 

Migram a sede

até a outra margem

 

das demoras.

 

— de morar —

 

 

 

 

 

 

POEMA DEIXADO NA PORTA DA TARDE

 

 

Um mutirão de palavras

trabalha sobre o que ainda não sei.

 

São aços acelerados

que dobro feito lenços

na cabeceira da alma.

 

Às vezes são sobras inacabadas

e as dou de comer aos cães

se eles crepitam

na madrugada estanque,

quando fazem do meu peito

a extensão de suas patas.

 

Cada cilada esbanja seu próprio talho

por onde verto.

 

No aberto da casa

já não sou oferenda às caças

e só descanso fora das promessas

escassas.

 

Tenho relíquias invisíveis...

tranquilas no esquecimento.

 

Aumento as demoras

alojadas no pulso.

Sou o alimento avulso dos relógios extremos.

 

Suprimo forças na beleza

das vésperas de qualquer milagre.

 

Depois me alegro no rosto magro

das palavras

que em mim se agregam.

 

 

 

 

 

 

ANTES DO CORPO DEFINITIVO

 

 

Nasci exausta.

Em um sábado que pertenceu à chuva.

 

Nasci em dia de inundação.

Nasci em dia.

 

Difícil atravessar a cidade.

 

Fui nascendo menos,

depois,

na muralha principal de cada ser.

 

Eu venho de onde esqueci

as janelas abertas sobre o peito

de uma essência que não desistiu.

 

Sou a soma pródiga por retornar

antes do corpo definitivo

da ausência.

 

Não é preciso mencionar

na dúvida a infância.

 

Morrer

não mereceu minha certeza.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Patrícia Claudine Hoffmann é natural de São Paulo e radicada em Santa Catarina. Formou-se em Letras, pela Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE). Leciona Língua Portuguesa e é autora dos livros de poesia Água Confessa (Letradágua, 2001), Sete Silêncios (Fundação Cultural de Itajaí, 2004) e Matadouro Imperfeito (Letradágua, 2016). Integra algumas antologias e mantém o blogue Espólio do Sol.