Adriano Wintter -  O escritor, de acordo com Borges, cria os próprios precursores. Tua poesia coloca-te sob o feixe das influências de quais autores nacionais e internacionais?

 

Alexandre Guarnieri - Pode parecer absurdo, mas num mesmo período fui capaz de me sentir simultaneamente tão entusiasta dos beatniks quanto dos concretos paulistas. Nunca fui preconceituoso com as experimentações nos limites das linguagens. Nas zonas de fronteira, onde as linguagens se encontram, há terreno fértil para renovações estéticas. Nos anos 90, ao mesmo tempo em que militava na poesia falada carioca, fazia experiências com poemas-objeto que não compartilhava com ninguém. Colava textos em pequenos espelhos, que refletiam uns aos outros. Eu fiz muitos poemas-objeto de cartolina recortada e dobrada. Misturei muito Amilcar de Castro com Lygia Clark. Tinha minha oficina particular de poesia concreta! Sempre fui fã dos construtivos, proto, pré, strictu sensu, neo, pós. O livro A Ave do Wlademir Dias-Pino me impressionou bastante (Álvaro de Sá tinha uma cópia, há pouquíssimas no mundo!). Produzi um poema cinético, o CiClotron, e o poema interativo Cristal-Prisma-Fractal (inédito). Mas a materialidade do impresso sempre me venceu. O livro como uma fantástica máquina, ao mesmo tempo tão simples. Percebi que o software era mais interessante que o hardware e resolvi investir mais nele, ou seja, no texto em si. Muitos autores fizeram a minha cabeça ao longo dos anos; para citar alguns: Ferreira Gullar, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Manoel de Barros, Ledo Ivo, Augusto dos Anjos, o grupo Noigandres, os beatniks, Francis Ponge, Gottfried Benn, Georg Trakl, e. e. cummings, Ezra Pound, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Mauro Gama, Álvaro Mendes, Helena Ortiz, Astrid Cabral, Rosa Ramos, etc. Não conseguiria citar todos.

 

 

AW - Qual a principal característica conceitual, temática ou técnica de cada um que incorporaste ao teu método de criação?

 

AG - Acho que tanto o derramamento irrefreado dos beats quanto à constrição verbivocovisual dos concretos me equilibram em algum lugar entre ambos, ao mesmo tempo que me sinto lançado noutra galáxia, distante tanto de um polo quanto do outro.

 

 

AW - Tua poesia também é rica em referências oriundas de fora da literatura. Quais são elas e de que maneira influem no teu trabalho?

 

AG - Sou muito interessado na cultura pop, nos quadrinhos, na ficção científica, também na história da arte. Muitas influências desse universo de interesses atravessam a minha produção das formas mais insuspeitadas, quase sempre, até para mim, me alimentando de imagens e me impulsionando com combustível renovável.

 

 

AW - Quais são predominantemente os passos de tua gênese criativa? Costumas anotar fragmentos (palavras, versos, ideias vagas), ou estabeleces um tema e começas do zero? Fazes pesquisas sobre o assunto, consultando dicionários, procurando palavras?

 

AG - Tudo isso junto. Uso muito o gravador de voz do celular para registrar fragmentos, ideias sonoras, às vezes, versos inteiros. Também guardanapos, caderninhos, papéis avulsos ou escrevo direto na tela do computador e do celular. Tudo depende da hora e do lugar. Mas detesto caneta azul. Prefiro nem escrever. Só consigo levar a sério o preto-sobre-branco. Uma bela BiC cristal preta de 1.6mm, isso sim é tecnologia de ponta! Os temas geralmente precisam de massa crítica para chamar a minha atenção. Vão sendo delimitados aos poucos, em sonhos, filmes, poemas, etc. Mas quando um tema me domina, aí é obsessivo. O interessante de escrever um livro monotemático é que ele pode se manifestar por muitos vieses; é um jogo em que você desafia a si próprio a sair do labirinto. E vai erguendo paredes e movendo outras, criando problemas para você mesmo resolver. Pode ser que algum poema apócrifo seja arrebanhado, adaptado, você pode torcer à vontade as regras, roubar no seu próprio jogo!

 

 

AW - Há, em teu processo de criação, alguma ordem de importância ou primazia entre ideia, sonoridade e imagem? Qual delas costuma determinar o rumo de teu poema e o uso/surgimento das outras?

 

AG - Acho que há uma relação entre a feição da palavra e a sua sonoridade. Acho que uma sensação se impõe. Um caos interno, quase sempre sonoro e imagético ao mesmo tempo. A ideia vai se cristalizando a reboque. O processo de escrita do poema é similar ao funcionamento de um acelerador de partículas, desestabilizar para isolar, visitar o caos para descobrir a ordem.

 

 

AW - Admites o acaso em teu processo? Qual seu papel?

 

AG - O acaso diz respeito à qualidade mais material da linguagem, porque eu acredito que sons e palavras podem se equivaler às coisas físicas. Quando estamos esculpindo em barro, podemos adicionar partes, já a pedra só admite o desbaste. Certos sons pedem outros e isso acontece no processo de construção do poema, que admite o aberto.

 

 

AW - Ao terminar um poema, como respondes às perguntas de Creeley: "É isso mesmo que você quer dizer? É isso mesmo que você sente?".

 

AG - Ao longo do poema, aquilo que eu achava que gostaria de conseguir dizer pode virar outra coisa. Não raras vezes, por não conseguir dizer algo, topamos com perguntas novas, que não estavam no script, e nos permitimos surpreender, mais com o caminho que com o destino. É como na escultura, na pintura, nas artes mais materiais: alguns sons podem se impor, modificando a mensagem, modificando o percurso. Já dizia McLuhan: "o meio é a mensagem".

 

 

AW - Um autor, segundo Valéry, mede-se a partir de suas recusas. Quais são as principais recusas de teu processo criativo e de tua obra? O que não admites num poema? O que rejeitas durante a sua elaboração? 

 

AG - Rejeito o humor rasgado no poema, mas não na vida. Rejeito o sentimentalismo gratuito, o jorro meloso, o açúcar... Mas não na vida! Me considero bem-humorado. E amo doces. Rejeito a pessoalidade exacerbada, a dor de cotovelo, mas não arriscaria dizer "desta água não beberei".

 

 

AW - Teus dois livros abordam o universo impessoal da máquina (Casa das Máquinas, 2011) e do corpo humano (Corpo de Festim, 2015). Qual teu posicionamento sobre o eu-lírico e a poesia pessoal e intimista?

 

AG - Há poesia intimista boa e ruim. Não vejo problema em optar por este ou aquele caminho. Mas prefiro me relacionar com percursos mais coerentes, nos quais se pode perceber pesquisa, labor, foco, estrutura.

 

 

AW - Digamos que estás na primeira aula de tua oficina poética. Qual a primeira e a mais importante lição a ser compartilhada com os participantes?

 

AG - O olhar e a escuta são fundamentais para a poesia, para a Arte. Pode-se extrair poema de qualquer situação, coisa, sensação, experiência, contanto que a máquina sensorial esteja azeitada. As válvulas certas têm que estar prontas para funcionar quando o quadro se apresenta. Cada um descobre a própria maneira de se treinar para receber estímulos. Descobrir quais estímulos pesam mais na dita "inspiração", quais pesam pouquíssimo, isso também requer treino. Autoescuta. Olhar para dentro. Há a arte cavalheiresca do arqueiro Zen, o Zen na cerimônia do chá e na arte da manutenção de motocicletas... há também o Zen da poesia, cabe a cada um descobrir em si mesmo o próprio monge capaz de trilhar o caminho. Eis o cerne da minha série de poemas Guerras Búdicas. Somos guerrilheiros na trincheira cada vez que nos olhamos no espelho. O que vamos fazer com isso?

 

 

AW - Venceste, com o livro Corpo de Festim, o Jabuti 2015. O que, na tua opinião, fez dele a obra vencedora? Quais suas principais qualidades?

 

AG - O livro venceu o Jabuti. Trata-se de um prêmio para livros e da indústria do livro. Num cenário de renovação e busca de novas diretrizes, as editoras menos pujantes, com trabalhos independentes e, portanto, mais livres para experimentar, foram alvo da atenção mais afinada dos jurados. Um sentimento de muita gratidão me energiza, me revigora e reforça minha vontade de trabalhar mais. De colocar na rua os 4 ou 5 livros que tenho na gaveta e nos quais trabalho há alguns anos simultaneamente. Por outro lado, todos sabemos das conjunturas e das marés. O corpo de jurados muda a cada ano. Isso flexibiliza as possibilidades dessa ou daquela estética abrir caminho na sensibilidade daqueles escolhidos para julgar os trabalhos. Muitos excelentes livros sequer são inscritos pelas mais variadas razões. Quase sempre, o valor da inscrição. Enfim, são tantas as variáveis que a relação entre merecimento, justiça e qualidade pode se esgarçar. Sempre entendi o Prêmio Jabuti como uma chama potente, iluminando cenários e obras, uma tocha capaz de apontar claridades. Entretanto, tudo o que é humano manifesta distorções, parcialidades, humores. Poetas importantes com muitos livros publicados nunca ganharam o Jabuti. É uma sensação estranha. Alguns de meus mestres nunca ganharam o Jabuti. O que acho que cabe dizer é que mergulhei de corpo e alma na elaboração do livro. O caminho que trilhei, as lições que me esforcei para consolidar, os erros que abriram espaço para os acertos, tudo está nas páginas do Corpo de Festim.

 

 

AW - O Jabuti teve efeitos concretos em tua carreira poética?

 

AG - Poesia é uma seara árida. Tenho a consciência que fui sendo levado a escolher um caminho difícil no trato com a linguagem. Não me contento com soluções muito econômicas na lida com a palavra, para o bem e para o mal... tudo tem seus prós e contras. Mas no mercado da forma que está organizado, algumas engrenagens exigem que você muitas vezes precise posar mais que de fato escrever. A energia gasta na produção muitas vezes se incompatibiliza com a energia exigida para que o autor se autoempresarie, se divulgue, bata na porta dos jornais e peça pelo amor de deus para ser lido. No meu caso, creio que meus livros encontrarão seus leitores. E se o trabalho resistir ao tempo, essa decisão não será minha. Na prática, o Jabuti não mudou nada a minha rotina e a minha vida com a poesia, muito embora represente a entrega de pessoas importantes e sensíveis que tomaram contato com o livro e enxergaram nele as qualidades compatíveis com a chancela de um prêmio do porte do Jabuti. De resto, não fiquei rico nem famoso (risos), e duvido muito que isso tenha a ver com poesia no mundo em que estamos vivendo, dentro e fora do país. Um dinheirinho a mais seria muito bem-vindo para botar mais livros na rua e tocar novos projetos. Agradeço aos amigos que me aguentam, às surpresas boas da vida, ao bom convívio, às afinidades, aos papos de botequim, ao amor da entrega, ao afeto sincero, às artes e expressões das mazelas humanas. Sem essas coisas, dificilmente a poesia ou a vida valeriam a pena.

 

 

junho, 2016

 

 

Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Atualmente pertence ao corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens e integra (desde 2012), com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) é seu livro de estreia. Seu mais recente livro é Corpo de Festim (2014 - ganhador do 57º Jabuti/2015), cuja segunda edição sairá em breve pela Penalux.

 

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Adriano Wintter. Nasceu e reside em Porto Alegre/RS. Foi monge. Integrou, como um dos vencedores, as antologias do Femup e do Prêmio Escriba. Traduzido ao inglês, espanhol e catalão, tem outras coletâneas publicadas nas revistas internacionais Sibila (EUA/Brasil), sèrieAlfa (Espanha), Separata (México), Cinosargo (Chile), Experimenta (Argentina) e Triplov (Portugal); além de poemas nas revistas da Academia Brasileira de Letras, Aliás, Eutomia, Mallarmargens, Ellenismos, 7Faces, Babel e Correio das Artes, também nos jornais Relevo e Poesia Viva. É membro do conselho editorial da revista Mallarmargens.

 

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