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A ficção anda de mãos dadas com a realidade. O cineasta português radicado no Brasil José Barahona, diretor de documentários importantes, estreia nas telas brasileiras o longa Estive em Lisboa e lembrei de você, baseado no romance homônimo do escritor brasileiro Luiz Ruffato. O livro é uma ficção, mas é escrito como se fosse um depoimento real. Essa metalinguagem — transposta no filme por meio da história de Sérgio Sampaio, nascido em Cataguases/MG, que decide imigrar para Lisboa em busca de dinheiro — é narrada como se ele estivesse sendo entrevistado por alguém atrás da câmera. Tem momentos que lembram um documentário, mas é ficção. A conversa que você lerá abaixo, com o diretor José Barahona, ocorreu com exclusividade para a Germina — Revista de Literatura & Arte no dia 07 de junho de 2016, data da pré-estreia do filme em São Paulo, em uma fria noite de outono. Poderia ser uma obra de ficção. Mas a realidade existe mesmo? Leia abaixo os principais trechos da entrevista. [Anderson Borges Costa]

 

 

 

 

 

Anderson Borges Costa - O filme, uma co-produção Brasil/Portugal,  participou de festivais pelo mundo, em países como Uruguai e França, além de ter entrado na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Que elementos universais você acha que ele traz para atrair um público de fora do universo lusófono?

 

José Barahona - As migrações humanas são um fenômeno que remonta à origem do ser. Talvez não seja preciso ir tão atrás, mas o homem sempre está em movimento pelo mundo. A procura por um futuro melhor, um lugar melhor para viver, é uma constante da vida humana. E, se por vezes estamos em países que recebem, como Portugal na época em que o protagonista do filme vai para lá, noutros momentos somos nós próprios que temos de sair no nosso lugar. Então, esses sentimentos de desenraizamento, da procura do seu lugar num outro espaço é um sentimento universal que está no filme. Por outro lado, algumas questões de preconceito ou xenofobia sempre existem nos lugares que recebem uma migração mais massiva. Essa experiência aconteceu comigo. Eu sou português e moro no Rio de Janeiro. Eu assisti e convivi com a chegada de muitos brasileiros a Lisboa no final dos anos 90 do Séc. XX até há bem pouco tempo. Por outro lado, com a crise econômica que se deu na Europa e em Portugal em particular há cerca de 3 ou 4 anos, eu vim para o Brasil para trabalhar. Era um momento em que não havia produção de cinema em Portugal. Por isso eu tinha de fazer este filme. Tinha tudo a ver comigo, era um espelho de mim mesmo.

 

 

ABC - No romance de Luiz Ruffato, no qual o seu filme se inspirou, existe um falso relato dado ao próprio escritor em Lisboa, em lugar e data anunciados na introdução do livro, proporcionando ao romance ficcional um tom realista, que brinca com realidade e ficção. Como você pensou a metalinguagem no seu filme?

 

JB - Na verdade, quando comecei a trabalhar a adaptação do roteiro, eu pensava fazer um falso documentário. Um diretor de cinema que entrevista o personagem principal, os dois representados por atores. Ou eu mesmo entrevistando o ator que faria o personagem principal, mostrando a encenação de tudo isso. Um filme dentro do filme. Essa seria a forma mais óbvia de adaptar o livro. Mas depois me dei conta que não queria fazer um filme sobre cinema. Queria fazer um filme sobre estes personagens. Então decidi que o monólogo do Serginho, o personagem principal, seria um relato diretamente para o espectador, o ator olhando a câmara e dialogando com a plateia, quebrado a quarta parede, como muitas vezes se faz no teatro. O que me interessava da realidade, nessa brincadeira entre realidade e ficção, eram os personagens. Eu conhecia este tipo de pessoas que o Ruffato descreve no livro. O dono da pensão, o dono do restaurante, o velho emigrante português que viveu 30 anos no Brasil, tinha um boteco em São Paulo e voltou para Portugal. O que eu fiz foi o inverso do que o Ruffato fez. O Ruffato deve ter encontrado estas pessoas em Lisboa, onde esteve durante algum tempo para escrever o livro, e as transformou em personagens do seu filme. Eu fui à procura de pessoas com histórias de vida semelhantes às que ele descreve no livro e as coloquei no filme, interpretando-se a si próprias. Mesmo os atores profissionais, como o Paulo Azevedo, a Renata Ferraz ou o Rodrigo Almeida, eu tentei ir buscar neles aquilo que poderia haver de um sentimento real deles sobre o desenraizamento. Todos eles são atores que vivem e moram fora do lugar onde nasceram. O Paulo mora em São Paulo e nasceu em Belo Horizonte, e a Renata e o Rodrigo são atores brasileiros que vivem em Lisboa.

 

 

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ABC - Em que sentido as histórias dos personagens no filme são um retrato atual da vida no Brasil e da vida em Portugal?

 

JB - A história é contada em dois tempos, o presente e o passado, em 2005, época em que Sérgio vai para Portugal. Hoje em dia, os brasileiros do estrato social do Sérgio, mais pobres e com pouca formação, estão em grandes dificuldades em Portugal. Há muito desemprego e a crise obrigou a que muitos viessem embora. Encontrei muitos que não tinham dinheiro para comprar uma passagem de volta. Isto há um ou dois anos. Hoje a situação melhorou um pouco em Lisboa e piorou no Brasil. A vida do pobre fora do seu entorno é sempre complexa, seja qual for a nacionalidade, então este é um retrato sempre atual. As diferenças culturais e as semelhanças são sempre as mesmas. Se, por um lado, temos uma língua em comum, e isso nos faz sentir em casa, por outro lado, há muitas coisas que são diferentes. A começar pelo próprio clima, que é um símbolo da psicologia dos dois povos irmãos.

 

 

ABC - A adaptação do romance Estive em Lisboa e Lembrei de Você foi um processo híbrido, com técnicas do documentário e da ficção. Quais foram os maiores desafios que você encontrou durante a filmagem?

 

JB - Trabalhar com não atores e atores profissionais é um desafio muito grande. É muito interessante conseguir que as pessoas encaixem em cena e que tudo se torne homogêneo. O grande segredo, na minha opinião, é não dar texto. Deixar a cena se construir a partir das vivências das pessoas, procurar o que elas podem dar e contar apenas orientando e escolhendo o que queremos e aquilo que o filme demanda. Os atores profissionais conseguem se adaptar muito bem e entrar neste jogo. No fundo, é um grande improviso com uma rede bem definida, que é a narrativa e o objetivo da cena. É maravilhoso criar em conjunto com as pessoas. Isso é uma das maravilhas do cinema. Não depende só de nós. Se corre mal, pode ser um pesadelo. Mas não foi este caso. Muitas vezes, o Paulo Azevedo estava em cena conversando com um não-ator, como se fosse o diretor do filme, fazendo perguntas. Muitas vezes, eu segredava no ouvido dele as perguntas; outras vezes, eu mesmo tomava o lugar dele. Coisa que fiz muito durante os ensaios. Porque, como tínhamos muito pouco tempo de filmagem, devido ao orçamento reduzido, tudo isto foi trabalhado em ensaios de preparação antes da filmagem.  Preparei o elenco muitas vezes fazendo eu mesmo de Sérgio, para não desgastar o ator.

 

 

ABC -  Você já disse uma vez que "Um filme é muito menor que um livro". Na comparação entre o filme e o romance que o inspirou, há elementos que tornam grandes também a história e a linguagem que você utiliza na tela?

 

JB - Essa afirmação é muito prática. Um filme contém muito menos informação que um livro. Isso é característica de dois meios de expressão diferentes. O filme é menor porque temos que editar muita coisa do livro que não cabe no filme. Isso não é um juízo de valor, que não saberia fazer. Mas não é por causa disso que o filme é maior ou menor em termos de linguagem ou conteúdo. Na tela, temos outra linguagem, outra forma de contar a história.

 

 

ABC - Hitchcock dizia que só fazia filmes a partir de romances ruins. Assim não havia o perigo de o leitor/espectador, depois de ler um romance bom e famoso, ficar decepcionado ao ver o filme. Você concorda com o diretor inglês, ou gosta de correr riscos, levando para o cinema filmes baseados em romances bons?

 

JB - Concordo com essa frase. Mas o cinema de Hitchcock era diferente do meu. Sem me comparar obviamente à sua maestria, eu, seu modesto admirador, queria trazer para este filme algo que o livro tem de extraordinário e que é complexo no cinema: a palavra e o discurso direto. Claro que o romance é muito bom. Só pensei nisso depois... e fiquei com medo. Mas era uma história que eu queria contar. E a forma literária é algo que venho trabalhando no cinema desde O Manuscrito Perdido, meu filme de 2010. Como traduzir a frase escrita em cinema? Hitchcock tirava de um romance apenas a narrativa. Se o livro era escrito de uma forma ruim, isso não passaria para o filme. Ele queria o plot, a intriga. Eu estou tentando trazer também a forma, que é uma mais-valia do livro e que agrega ao filme. É um risco, sim. Mas temos de os correr. Não podemos, nem conseguimos, estar hoje a fazer filmes como Hitchcock fazia.

 

 

ABC - O personagem principal, Sérgio, oferece uma florzinha de papel às mulheres. O que você quis demonstrar com isso?

 

JB - Essa é uma forma de adaptação cinematográfica. É linguagem visual. Isso não estava no livro. Mas, no livro, o personagem é caracterizado e tem ações muito ingênuas. Para mostrar isso sem usar diálogo de terceiros, é preciso encontrar uma ação. Cinema é ação. Não no sentido de violência, mas no sentido do que os personagens fazem, e isso seria algo que Hitchcock poderia gostar, aquilo que se vê. Então, era preciso ver a ingenuidade desta pessoa de uma forma simples e imediata. Assim surgiu a ideia da flor de papel. Por isso, o filme é muito híbrido. Porque ele bebe na linguagem literária, no documentário e na forma cinematográfica mais clássica da escrita do roteiro.

 

 

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ABC - Escrevi, em uma resenha publicada aqui na Germina sobre o livro que você adaptou para o cinema, que "a narrativa do Ruffato escorre pelas páginas do romance em fluxo de consciência que parece querer sempre adiar o ponto final. Há, em decorrência disso, um excesso de vírgulas, conectando ideias díspares, culturas díspares e línguas iguais que não se misturam. É através de uma linguagem econômica em pontos finais e abundante em vírgulas que Ruffato dita o ritmo veloz de sua prosa elástica e resiliente, esticando períodos sem dar tempo ao leitor de relaxar". As imagens no seu filme também captam essa ansiedade, digamos, de um fumante?

 

JB - Não sei responder. O filme ainda está muito fresco para mim para eu ter um distanciamento e poder olhar para ele apenas como um filme, como se fosse de outra pessoa. O Ruffato reconhece no filme o seu livro, e está contente com ele. O filme pretende que a narrativa seja linear, embora a dois tempos. Mas, se ele usa a palavra que vem do livro, ela, por grandes momentos, se perde e dá lugar à ação que falei antes. Nesse sentido, acho que sim, porque tudo sempre se precipita e é um filme de grandes elipses, onde há grandes saltos temporais. Então, talvez sim...

 

 

ABC - O filme retrata a viagem de um brasileiro a Portugal. Você, um português radicado no Brasil, faz a viagem no caminho oposto à que o protagonista faz. O Oceano Atlântico, que separa os dois países, é formado por águas que mais aproximam ou afastam as duas culturas?

 

JB - Há a língua, não é? E língua é a nossa pátria... E a arte! A arte aproxima-nos, muito. Essa é a minha opinião. Nós em Portugal estamos muito próximos da literatura e da música brasileiras, por exemplo. A literatura portuguesa começa a chegar mais ao Brasil. O mar separa, mas o homem sempre conseguiu superar essa barreira do mar. Para o bem e para o mal. Somos povos diferentes, até porque o Brasil é multicultural. Todos os povos o são, mas o Brasil, enquanto país invadido há 500 anos, foi invadido não só pelos portugueses. Ele foi invadido por muitas outras culturas e já havia uma grande e forte cultura aqui que ainda perdura e luta pela sua sobrevivência. Na Europa, e em Portugal, aconteceu a mesma coisa, só que há muito mais tempo. Por isso, eu não tenho noção dos meus antecedentes culturais árabes que dizem que existem nos traços da minha fisionomia. Foi há mais de mil anos. Aqui a origem das muitas culturas, que enriquecem de maneira extraordinária este país, ainda está muito viva. A maior riqueza do Brasil é essa. Uma cultura nova surgiu de tudo isso. Talvez a pobreza da Europa é que tudo isso já se perdeu. Já não há multiculturalidade. Há uma coisa terrível a que chamam "globalização" e que tende a nivelar toda a cultura por igual. Por isso, as pessoas tendem à xenofobia, tendem a fechar as fronteiras a cadeado com medo do que é diferente. Revigorar a Europa seria assimilar o novo e o diferente mais uma vez, coisa que o Brasil vem fazendo de forma admirável. O brasileiro, ao galgar o oceano, vai encontrar as suas origens. Mas é passado. O português, ao chegar ao Brasil, pode vislumbrar um futuro em construção. Com tudo o que de caótico e ruim isso tem também. Ninguém ignora o momento obscuro que se vive no Brasil. Mas isso, espero e tenho esperança, é parte do processo de construção de um país. Demora tempo para se ultrapassar "o lado negro da força". Se é que alguma vez isso se consegue totalmente. Não se pense que Portugal é um país sem corrupção e sem políticas obscuras. Mas a cultura e a arte são a nossa identidade, é isso que nos distingue. Por isso, é tão importante e valiosa. O oceano é uma barreira física e metafórica. Mas estamos próximos. Muito. Porque a cultura portuguesa, e digo isso com orgulho, é parte da cultura brasileira. Foi assimilada com muitas outras.

 

Acho que este filme mostra bem isso. Mesmo de forma subliminar, há muitas coisa de que não nos damos conta. Quem vir o filme pode fazer um exercício divertido: como seria esta história se o protagonista fosse para Berlim, em vez de ir para Lisboa?

 

 

junho, 2016

 

 

 

José Barahona (São Paulo, 1940) é poeta, ensaísta e tradutor, ligado à criação literária mais rebelde, ao surrealismo e geração beat.

 

 

 

 

Anderson Borges Costa. Escritor. Professor de Português e Literatura Brasileira na escola internacional St Nicholas, em São Paulo, e professor de Inglês no curso de idiomas Cel Lep. Escreve contos e poemas. É autor do romance Rua Direita, publicado pela Chiado Editora.

 

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