"entre flores uma jarra de vinho solitário
bebendo sem convivas erguer a copa à lua lunescente lua e sombra somos três agora" (Haroldo de Campos. Fragmento de LI PO, Escrito sobre Jade) Era mais uma
quinta-feira de luz — aquela luz do inverno paulistano, comprimida entre
edifícios altos e nuvenzinhas melancólicas, numa dessas tardes repletas de
pessoas azuladas tentando atravessar alamedas elegantes. Aparentemente só isso,
mais um dia comum. Brigitte voltava pelas escadas, depois da assembleia no
andar superior daquele prédio alto, no centro da cidade, onde passara a
trabalhar sem saber ao certo porque — aquele prédio antigo, envolto em
tradições, lendas e historinhas estranhas. Ela voltava
alegre, podemos até dizer até que voltava entusiasmada, porque relia, naqueles
dias, a transcriação de Haroldo de Campos de poesia clássica chinesa. O volume
de capa verde, com discreta e bela
edição da Tipografia do Fundo de Ouro Preto, Escrito sobre Jade — Poesia clássica chinesa reimaginada por
Haroldo de Campos, está agora sendo manuseado por esta narradora. Naqueles
dias, o encantamento de Brigitte era pleno ao ler o texto introdutório do
próprio Haroldo: "assim, verti
ming-yüeh por "lua lunescente", em lugar de "lua clara" ou "brilhante".
Compreende, leitor, o que se passava? A
alegria de Brigitte era, em parte, alimentada pelo extraordinário trabalho do
mestre, que sempre buscou ao máximo recuperar os jogos fono-etimológicos em
suas transcriações. Era-lhe muito
claro, porém, que ao retornar à sua sala, no terceiro andar do prédio, não
poderia falar disso aos colegas. Por diversas razões sem nenhuma importância,
mas ela sabia que, quando mais sem importância fosse algo, mais importância eles
dariam pelo simples prazer de lhe mostrar o quão diferente deles ela sempre
fora. Por tudo isso — e por muitos motivos mais que não pretendo enumerar agora
— Brigitte não tocaria no assunto. Não falaria de livro. Não falaria daquele
livro. Nem de poesia. Nem de lua. E muito menos da beleza da "lua
lunescente". Ao menos naquela década. Bem, do que falaria, então? De tudo.
Claro, de tudo mesmo. E principalmente do trabalho bem realizado por ela na
assembleia, onde representava uma parcela do poder antecipatório daquele grupo
de pastores indecisos. Ao voltar à
sala, Brigitte trazia uma jovem desconhecida, que acabara de atender, após o
término da assembleia e com quem precisaria, por dever de ofício, falar mais um
pouquinho. E deveria reduzir a termo as declarações da moça, como lhe competia.
Entretanto, guiada pelo respeito às regras de convivência, Brigitte entrou na
frente. Sozinha. Para ver se, ao trazer a moça, naquele momento, não iria
incomodar Aulos e Angela, isto é, para certificar-se de que nenhum de seus dois
colegas de trabalho e de sala estaria, naquele mesmo instante, dando
atendimento a outras pessoas, para não causar superposição de vozes. "agora vai:
basta de perguntas! nuvens brancas tempo de infinito!" Tudo estava
estranho. Isso Brigitte percebera aos dar os primeiros passos na sala. Não
havia ninguém de fora, mas a timidez crônica de Aulos estava nitidamente
coberta por um manto gigantesco de preocupação. Ele parecia escrever,
distraidamente, com sua caneta-tinteiro, mas olhava para baixo e, por vezes,
fitava Angela, que, visivelmente descontrolada, andava de um lado para o outro,
como se estivesse preparando um clímax. Brigitte percebeu o ambiente
subitamente oposto ao que deixara, ao sair, ao ambiente que ali encontrara
durante aquelas duas semanas de paz. E indagou: "tudo bem?". Foi o
que disse. Inocentemente. Os olhos de
Aulos ficaram maiores. Ele queria dizer algo e tentava. Um espasmo de
transtorno pairava no ar. Aulos disse, monossilabicamente: "É, é, parece
que... bem, acho que... nós... nós..." Diante de sua hesitação — ele
sempre tão claro, tão bom, limpidamente solidário como um irmão, Brigitte olhou
para Angela, que, com os olhos completamente transtornados, disse: "Pronto!
Pronto! Agora... E agora... Já!" E nada mais. Nada mesmo. A senhora,
Doutora Brigitte, está tentando explicar a esta narradora algo que não pode ser
traduzido. Nem transcriado. Mas reimaginado. Compreendo perfeitamente porque o
encantamento do livro é sua chave. Sobre Jade. Mas
sobre nada falavam Aulos e Angela. Ele ouvira, fizera que sim — ou que não —
com a cabeça. Susto vagando na tela, na teia, nos arames. O semblante transtornado
era um sinal do que não poderia ser dito. Brigitte precisava trazer a moça que
a esperava no corredor, para completar o
atendimento. Era sua obrigação
funcional. A sala era grande. A cena era grande. O texto era grande. Os olhos
eram grandes. O medo deles era grande. Tudo era enorme e por um fio ruía. Mas
Brigitte era destemida e não sabia ler essas manchas escuras sobre os olhos deles. Meu Deus,
precisamos trabalhar, pensou ela. Temos deveres a cumprir. Temos prazos. Temos
regras. Não temos tempo. O vidro da janela ardia sob a luz. Nenhum inseto
ousava entrar ali. Repetia para si própria, mentalmente, um breve fragmento da
transcriação de Haroldo de Campos da poesia clássica chinesa: "Basta.
Nuvens brancas. Tempo de infinito". No carrossel de
temas daquele prédio, algumas palavrinhas se repetiam. Estenotipia?
Não, foi por meio do procedimento normal. Vocês todos sorriem quando trazem
flores? Depende do dia da semana. Tiramos os espinhos antes. É porque eu estava ouvindo canções na minha
cabeça cansada. E ouvi a voz de Nara Leão e de Carlos Lyra, pois, pela manhã,
em casa, antes de me vestir, escutava discos de bossa-nova. Ela gosta de
música, mas não é possível compreender compassos que não são entoados. Ela
compreende pausas. Mas não há como entender silêncios grávidos, silêncios
prenhes de frases indizíveis. No escuro dos olhos de seus colegas tão delicados
e agora transtornados, no escuro dos olhos deles, manchas enormes se
alastravam. Brigitte, cuja
irmã gêmea, Brites, estudava etimologia, reimaginou aquela tarde nesta tarde
que escurece enquanto escrevo. Pesquisou símbolos. Adormeceu suposições. Mas a
verdade é algo se desenhava entre os personagens da cena. Ela realmente
desconhecia, naquele instante, a motivação dos gritos que logo começaram. Menos de dois
dias depois, isto é, no sábado, tudo já lhe era claro. Sei de tudo.
Mas, como narradora, não me é dado reimaginar. Somente Brigitte poderá fazê-lo,
se desejar. Por exemplo, sei que os gêmeos Fernanda e Ronaldo insistiam em lhe
perguntar: "a senhora não foi colega de turma do Doutor Félix?". Ela se cala.
Pensa. E, depois, responde. Qual a
Universidade? Aquela bem pertinho do prédio em que a senhora está morando.
Não, realmente, não, porque eu cursei outra Universidade, aquela bem pertinho
deste prédio onde Aulos e Angela, imersos em nuvens, nada dizem. Nada mais.
Aulos se levanta. Vai se retirar. Passarei pela capela antes de voltar. Mas, aqui é
diferente. Não há capela. O que existe é uma Catedral. Aulos, de cabeça
baixa, sabia que algo poderia explodir. Mas, todos os dias, Brigitte sorria ao
descer os degraus da escada, mesmo mancando um pouco, como ele pôde perceber. Ora,
Doutor Aulos, Doutora Elizabeth, Doutor Teófilo, como sabem, algumas vezes, nas escadas, nossos passos se erguem e
nossos pés não tocam os degraus. É como se fizéssemos exercícios de
levitação. Como ela é
diferente. O que faremos? O que veio fazer
aqui? Quando
caminhava, era sempre acompanhada por uma libélula rósea, cujas asas às vezes
paravam de se agitar, porque planava. Planagem. Ricardo,
Ricardo, Ricardo. Eles chamaram. Em vão. Angela destravou as janelas. Muitos
dias se passaram sem chuva. O abafado das tardes era engolido pelos pastores.
Engolindo em seco, desfaziam perguntas. Seus
filhos também gostam de pássaros? Você agora toca num assunto que é um de
meus preferidos. Vicenzo, meu avô, tinha um canário que cantava fora de hora.
Brigitte riu-se da menção. E canário tem hora certa para cantar?
Individualmente, temos horas certa? E para quê? O rosto de
Angela mudara de cor. Pronto. Basta. Chega. Chega. Chega. É agora! Já! Estudei música na infância, comenta Brigitte,
sorvendo o champagne que lhe é oferecido por Raul. Mas a narradora deste conto estudou somente artes cênicas e é por isso
que ela insiste em voltar à cena, quando personagens quase nem se lembram do
texto, ou assim fingem, por acomodação e egoísmo. Eu mesma nem me lembro. Nem
quero. Não faz sentido. Dezessete
caravelas atravessaram meu oceano. Dezessete jangadinhas de artesanato sobre a
mesa de Raul. E Ana Stella, sempre acendendo as luzes. E Elizabeth procurando
vagalumes. Aulos trabalhando concentrado, sugeriu algo que fez Brigitte rir
muito. Foi quando eles brincaram diante de uma crise de tosse dela. Quer dizer,
riram com a cumplicidade. Então, lembre-se, minha cara, do que diz o segundo
mandamento: "Não tomar seu santo nome em vão". Porque ela falava, comentava,
vibrava — estava viva! Raul revelaria
seu verdadeiro nome após os ensaios. Brigitte estava cansada. Isso era visível.
Sairia definitivamente do Parque. Antes de entoarem os mantras, uma oração para
Santa Rita de Cássia. Contatos, poemas,
cantatas, passaportes, fronteiras, alfândega. Brigitte também poderia ser
Bridget e, nesta hipótese, somente o acento tônico mudaria de lugar. Brites,
sua irmã, revelou: "sou sempre chamada pelo meu apelido, mas meu nome é Beatrix".
Que engraçado, assim mesmo, com x? Ela mudaria de
lugar. Trocaria um abraço com Aulos, inquilino do tempo. Porque sempre gostaria
dele, companheiro de jornada. Angela
terá dezessete anos para ler outras traduções ou transcriações, se interessar a
ela. Nos seus olhos, duas lágrimas bem grandes. Mas ninguém chora. Tudo está
certo. Muito bem. Fica assim. Não se toca no assunto. Outras perguntas flutuam.
A senhora compõe, doutora? É verdade que
escreveu um Oratório? O tempo dos vinte e um pastores se esvai. Brigitte compreende que estivera num palco. Sabe que textos truncados
foram ditos por atores absolutamente incompetentes. Tédio, bússolas, bomsais e
libélulas. Retiro-me de cena porque sim. Noutro ano, com
Guilherme, tantos deles, tantos amigos e colegas e conversa-se longamente sobre
O Auto da Comparecida e sobre outras
obras de Ariano Sussuna. Mas Brigitte ainda está cansada. Sabe que seu nome é
meu desenho. E que todos os dias são gerados por script. Não gosta de farsas. E
descansa, à sombra de uma árvore que é sua. Multiplicando-se
doze por dezessete, chegamos a nosso resultado: trezentas e quarenta lunações.
Depois destas é que alguns pastores, re/lendo Escrito sobre Jade, expõem nos olhos
gotas de chuva que alagam avenidas. Nat King Cole. É
o que todos ouvem agora. Tudo certo. Anos miseráveis. Mísero aceno para o dia. A cortina? Ela se despede
de personagens arcaicos. Desafinados. Figurinos são abandonados. Ah,
contrarregra, você me inunda de verdade. Marionetes. Circo. Brigitte é somente
dona de seu tempo. Que nenhum mito lhe precisa ser revelado. Sobre Jade, Escrito. E tudo sabe — pela
música, pelas frases não ditas, mas óbvias, como a força do sol e tênues como a
lua lunescente. "um instante sombra e lua celebremos a alegria
volátil primavera! canto e a lua se evola danço e a sombra se alvoroça despertos
o prazer nos
unia ébrios
separamos os
caminhos nós de água
nunca mais reatáveis? Já nos veremos pela via láctea". março, 2016 Beatriz H. Ramos
Amaral. Escritora, poeta e ensaísta, autora de A Transmutação Metalinguística na Poética
de Edgard Braga (Ateliê Editorial, 2013), Luas de Júpiter (Anome Livros, 2007), Alquimia dos Círculos (Escrituras, 2003), Planagem (Massao Ohno, 1998), Poema
sine praevia lege (1993, finalista do Prêmio Jabuti). Mestre em Literatura
e Crítica Literária pela PUC/SP, é formada em Direito (USP, 1983) e em Música
(FASM, 1985). Coordenou projetos de arte e literatura entre 1994 e 1997 na
Secretaria Municipal de Cultura. Recebeu em
2006 o Premio Internazionale Francesco di Michele de Poesia (Caserta,
Itália). Foi Secretária-geral da UBE/SP e diretora da entidade entre
1996/2005). Participa de diversas antologias no Brasil e no exterior. Gravou
com o músico Alberto Marsicano o CD Ressonâncias
(poesia), lançado em 2010. Mais: www.beatrizhramaral.com.br. Mais Beatriz H. Ramos Amaral na Germina > Poemas |