O mundo, no início do século XXI, dá sinais claros de que existe uma transformação no poder dos países que o lideram. Política e economicamente, o tabuleiro de xadrez que move o planeta adquire novos jogadores. Economias de países emergentes, outrora meros coadjuvantes, agora começam a dar as cartas. Sem dúvida, Brasil, China, Índia e Rússia precisam ser olhados com mais atenção sob todas as perspectivas (não é por acaso que o economista Jim O'Neil cunhou o termo "Bric" para se referir a essas agora importantes e decisivas economias, principalmente em tempos de crise, como os que vivemos hoje). No entanto, literariamente, embora haja pouco contato entre si, não há dúvida de que, deste grupo, o país mais próximo do Brasil, neste "tijolo" chamado Bric, é a Rússia.

Os principais autores russos são os sempre citados Tolstoi e Dostoiévski. Este último, partindo da complexidade de sua própria vida, foi capaz de enxergar em si uma teia de nós (substantivo comum e pronome pessoal): conflitos humanos que soluçam dúvidas. Sua obra-prima, Crime e Castigo, merece um tijolo na parede de nossa biblioteca.

O enredo é relativamente simples. O personagem principal, Raskólhnikov, é um homem extremamente pobre e que vive angustiado por querer se tornar alguém melhor ou fazer algo importante, como fizeram homens como Napoleão. Ele planeja e executa a morte de uma senhora agiota, que aluga um quarto para ele morar em São Petersbrugo. A culpa pelo assassinato o atormenta, e Raskólhnikov tenta escapar da prisão, mas decide se entregar. A aparente simplicidade do enredo é uma isca para o leitor, que é rapidamente absorvido pela escrita linear e fluente de Dostoiévski. O que o leitor talvez não espere é que a leitura de Crime e Castigo pode causar uma dor de cabeça existencial da intensidade de uma tijolada.

Um aspecto claro (ou não tão claro) nesta obra é a atmosfera confusa e escorregadia em que os personagens se encontram. Há momentos em que se leem colocações de extrema lucidez, com afirmações de profundidade filosófica. No entanto, tais afirmações são contrapostas (ou justapostas, afinal a dúvida é proposital) a momentos de puro delírio, regados a vodka, chá e vinho. Tenta-se esquentar a fria temperatura da Rússia com o calor do álcool. Tome, por exemplo, um gole desta afirmação: "No vinho está a verdade e, de fato, a verdade completa sairá à luz". O leitor caminha na tênue linha que separa a consciência da inconsciência, sem saber em qual lado da balança está. A realidade pode ser um sonho, mas o sonho pode ser real. Dostoiévski nos brinda com achados do tipo: "Por acaso os loucos não falam com lucidez?" E conclui com "É uma verdade que não existe o homem normal". Nesses tragos sente-se fortemente o cheiro de gente que também bebeu neste copo para produzir sua obra: Freud, Nietzsche, Kafka, Proust, Camus e Sartre.

Raskólhnikov é guiado pelo tormento e pelo desassossego. Dostoiévski cria um efeito de desconforto ao descrever de forma bastante mineira, sem a menor pressa, momentos de extrema tensão interna do protagonista. A linguagem é recheada de digressões, esticando silêncios e esperas, retardando respostas e caprichando nos detalhes de uma parede ou um teto. Os tijolos pesam. A linguagem, portanto, possibilita que o leitor sinta a carga física e psicológica do calvário que o criminoso recebe da pena do seu autor. O tormento de Raskólhnikov é também expresso por seu próprio nome. "Raskol", em russo, significa "cisão". Ele é um homem dividido e, portanto, humano, demasiado humano (como diria Nietzsche, ele não é um indivíduo, pois pode ser dividido, cindido). Dostoiévski domina a linguagem como a domina Machado de Assis ou Guimarães Rosa. Ela é grande aliada do leitor para que seja possível acompanhar de perto, quase de dentro, o sofrimento de Raskólhnikov.

A razão é apresentada como o antídoto da loucura. A lógica é o remédio para impedir que Raskólhnikov se perca nas entranhas de seu delírio. Nesse sentido, Crime e Castigo tem um pouco do sabor da novela O Alienista, em que Machado de Assis também nos faz transitar entre a loucura e a razão. Percebe-se a tentativa de Dostoiévski em colocar o protagonista dentro de limites geográficos específicos, marcando, na cidade, distâncias em metros e em passos. No entanto, apesar de expor com exatidão à localização de casas, ruas e estabelecimentos, São Petersburgo é apresentada como um lugar claustrofóbico, que sufoca seus habitantes. Raskólhnikov é apertado e espremido pelos tijolos de sua consciência: "Aqui, nas ruas, está-se como em quartos sem janelas".

Dostoiévski espalha perguntas pelas páginas de Crime e Castigo, carregando o leitor para a dúvida, para o tormento, para uma situação de desconforto e questionamento. Há parágrafos inteiros só de perguntas. Raskólhnikov é, narcisistamente, um espelho para Clarice Lispector, que chegou a afirmar "Eu sou uma pergunta". Vale observar, ainda com relação à linguagem utilizada por Dostoiévski, na repetição constante do advérbio "repentinamente". São raras as páginas em que ele não aparece. Em várias páginas ele aparece 5, 6 até 7 vezes. É como o som de um surdo, uma percussão, ditando o ritmo da narrativa. Com isso, cria-se a possibilidade de, "de repente", mudar-se o rumo de uma ação. A repetitiva e súbita alteração de rota na narrativa deixa o leitor sempre alerta para o próximo passo de Raskólhnikov (que pode ser dado em falso). É curioso observar que o equivalente em russo para "repentinamente" é a palavra "vdrug". Assim, fica irresistível não comentar a presença ali das letras que formam a palavra "drug", colocando o delírio dentro da circunstância que o advérbio em russo sugere.

Para Mário de Andrade, a literatura deriva da insatisfação, e não da lucidez. O escritor, para o modernista, deve ser vulnerável, deve ser frágil, deve opor-se, continuamente, ao que não é. E Dostoiévski mostra, na figura de Raskólhnikov, que a vulnerabilidade nunca o abandona, pois ele está constantemente insatisfeito. Ele se sente culpado e se reconhece como vil, mas não se arrepende de sua culpa. E, no mar de dúvidas em que navega, considera o suicídio, mas opta pela vida. A vida, para ele, dói. Ele é um estudante de Direito, mas acha que pode subverter as leis. Justifica seu crime com a tese que criou, classificando os homens em ordinários (vulgares, inferiores, que seguem as leis) e extraordinários (superiores, inteligentes, que têm o direito de infringir as leis). A esses últimos, de acordo com Raskólhnikov, se concede o direito de assassinar. Acha-se um extraordinário, mas não aguenta o peso de ser superior. A questão posta não é tanto se existe a justiça, mas, sim, se a justiça que existe é justa.

A vulnerabilidade também está nos olhos de quem lê Crime e Castigo, que ouve o protagonista ser acusado pela voz de um operário: "O assassino és tu!".

Porém, na eleição do operário como porta-voz de nossa acusação a Raskólhnikov, a voz cristã de Dostoiévski também parece advertir ao leitor precipitado, que já está com uma pedra na mão, que "aquele que também não for assassino que atire a primeira pedra". Há, no fundo, a suspeita não admitida de que Raskólhnikov é, na verdade, o porta-voz de nosso inconsciente.

O final de Crime e Castigo, simbolizado no episódio bíblico da ressurreição de Lázaro, caminha para a redenção, como se a tijolada existencial recebida por Raskólhnikov não fosse suficientemente forte para nocauteá-lo. Nesse aspecto, pareceu um tanto frustrante esse final, pois "repentinamente" surpreendeu, apontando para um desfecho quase piegas. Apesar disso, se, externamente, com o tijolo que Raskólhnikov recebeu, conseguiu construir uma prisão para seu corpo, internamente, com o mesmo tijolo, conseguiu construir uma janela para sua dor.

 

 

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O livro: Fiódor Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Crime e Castigo.

São Paulo: Editora 34, 2000, 568 págs.

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dezembro, 2017