Bilhete
Esse livro deixado sobre a mesa
Marcado à página 143
Onde se lê algo sobre a despedida
Guarda pra mim uma mensagem
Ou é o acaso, esse mistério
Certa união de astros
Que nos guia?
Essa porta fechada atrás de si
Num barulho surdo
Esse garfo depositado no prato
Com tanto cuidado
Como quem enterra um cão
É uma medida?
A roupa tirada do varal
Dobrada com cuidado
— um sudário em pedaços —
Numa pilha babélica
Me diz coisas?
Todos seguimos os mortos
De um modo ou de outro.
[Do livro Cidade Sitiada, inédito]
SAADI
Queremos fatiar o tempo
Marcá-lo
Medi-lo
Apropriarmo-nos dele
Mas é fugidio
Se é que existe.
Quero minha vida, simples
Como um valado de rosas
E a terra negra como alimento
E a água como bênção
E o orvalho como ablução.
Não quero o fogo
A faca
O laço.
Quero ouvir o vento como música
Não quero salvação
Até que venha a poda
No sereno.
A rua de casa
Na minha rua há uma mulher que anda torta
Se contorcendo de dores
Cozinheira na rua de cima
Um homem acumulador
Que vive entre gatos e fezes
Uma mulher que faz de tudo
Para que seu amante volte
Incluso envenenar o cachorro
E um sujeito que brada no celular
Ordens importantes
Creio que há quarenta anos
Viviam na minha rua
Uma mulher com dores fortes
Um acumulador entre gatos
O amante que nunca volta
Alguém enlouquecido
Para ditar ordens
E creio que quarenta anos antes
Havia dores, gatos, amantes, ordens
A rua mudou: hoje, tem um asfalto preto
De onde aqui e ali
Nascem dentes-de-leão.
O grande leitor
O grande leitor, na sua bergère
se pergunta: não seria o homem um erro de deus?
ou um desejo do diabo, mas o grande leitor
despreza esses mitos bilaterais, no fundo
o indicador a passar pelo raro alfabeto à sua frente
gritos de crianças chegam ao ouvido do grande leitor
quanta chateação!
porque a criança é a semente dos desgostos que virão
para o grande leitor em sua bergère.
está acostumado a esses labirintos mentais:
o desejo do suicida, o sono do marinheiro, a aventura do beduíno
pelas areias — ao vento — sibilinas
afinal, que seria do universo não fossem as metáforas?
O grande leitor, em sua bergère
Terá percorrido tantos livros e cidades
As palpáveis, as imaginárias
O grande leitor em sua biblioteca
que é muralha e sonho
sol e aço.
O veludo vermelho desgastado
De sua mão erudita nunca longe
Vive nela como se fosse atado
A um só tempo a esfinge e o monge
O grande leitor na sua bergère.
Louva-adeus (Do livro dos amantes incrustados)
Ela tinha umas pernas de Cid Charisse
como um louva-a-deus
no contraluz frente à janela
tendo trazido genes
de não sei de onde do norte vermelho.
Me asfixiava.
Mas tinha uns lábios de fruta incerta:
Goiaba no beijo
Amoras do batom barato
Um tomate fruta-fruto ao acordar
Melancia no sono da tarde —
De todos os vermelhos, o vermelho
Do esmaecido muro chinês aguado pela chuva
Ao cinábrio médio
À profunda cor das paixões
Segundo fantasia vulgar.
Nunca desejei estar no sonho de alguém
Se pudesse, ia passear por lá
Queria contar os carneiros com ela ou para ela
Roubar ingá da vizinha
Arrancar do varal de arame farpado suas calcinhas.
Me torturava.
Era amiga das esquisitices
Como rezar antes de comer
Para um deus que tinha sumido da vida dela, dizia
Ou machucar o gato, por amor às suas patas
Dizer palavrão atrás da mão em leque aberto
Sem conseguir esconder o diastema.
Enquanto as pessoas acordam
Indiferentes aos louva-a-deus
Está ela lá na janela
Enfiando as pernas nas meias finas antiquadas
Arremedo de elegância
Em verdade vergonha de pintinhas
Limites de uma constelação
Tão simpática e luminosa
De estrelas pretas.
Me resignava.
Eu mudaria o curso da minha vida
Igual a esses rios indomáveis
Após o surgimento dos explosivos
E das retroescavadeiras gigantes.
O que era, Deus, o algodão entre os dedos do pé
E o cheiro da acetona
Os palitos de dente
Para o acabamento da pintura
De cores inexistentes na natureza
Na tarde de sábado?
O que era o suor por baixo da combinação
De falsa renda
E os pontos na blusa para não mostrar o sutiã
Feitos no corpo
Mesmo que não prestasse costurar corpos vivos?
Ela, com dificuldade para passar a linha na agulha
E eu, seu salvador
Sem o qual não haveria baile
Sem o qual não haveria cerveja
Num molengo copo de plástico
Sem o qual não haveria nada.
Deus, por que me abandonaste?
Quando o amor é grande demais
Dissolvem-se as metragens
Os pesos
E o grão de mostarda é um mundo
Ou a estrada é breve
Mesmo que una as Américas.
Lemniscata
O fim é o gozo dos astrofísicos
Do uno à totalidade da tabela periódica
do H ao metal mais nobre e mais raro —
No interior das estrelas moramos todos nós
Criados por uma estrela-Deus, que nos sopra a vida
Então, não viemos do barro, mas do fogo.
O fim é o prazer dos místicos
A rodopiar até caírem
Na dança e no vinho
De onde enxergam o outro lado do espelho
Pois é para lá que vamos.
A palavra fim como faca
A palavra fim que morde a própria cauda
Dragão, hipogrifo ou lagarto
Ela mesma dentro dela
Gerando-se
Nessas fantasias nada sutis sobre opostos.
O fim é a febre dos amantes
Enamorados de sua dor
Ao mesmo tempo astrofísicos e místicos
Tentando responder a paradoxos:
Se acabou, então foi?
Se acabou, voltará?
Se acabou, o que será?
(E seguimos assim, sonhando com eons, oitos deitados, laços, lemniscatas…)
kabir (second lesson)
o primeiro que chegou trouxe a linguagem das borboletas
miríades de miríades de miríades
laranjas, azuis, migratórias continentais
o assombro das hipérboles
o segundo trouxe anjos com espadas flamejantes
e trechos sagrados em línguas de fogo
e magma lento, aspergido
como água
chuva ácida e negra das tempestades interiores
o terceiro saiu das coortes, alucinadas
sua flâmula de guerreiro dizia
o que cabe num copo
o que pode dissolver a espada
o que cabe sob a bota
o sangue tornado rio
e vieram os vinhos, as pedras, os motores brilhantes,
a promessa de céu e de inferno, o mar feito lápis-lazúli
como singrar a pedra
beber enxofre
voar ancorado
aí você trouxe o silêncio, uma escuridão
sensaboria, vastidão do nada, inodoro
ponto isolado no mapa do mundo
o fragmento do pó da areia
o fragmento de gelo transportado num dia quente
mas era isso.
Mosca azul
Na sala de cimento queimado
E poltronas Le Corbusier
Com pedaços de vacas malhadas no chão
E telas brancas com pinceladas de uns milhares de dólares
Uma mosca assombra o equilíbrio
De aço, madeira certificada e couro preto à Bauhaus.
Ela é antidiluviana, indiferente, pagã.
No silêncio pétreo desse templo,
Um zunido, onde antes se ouvia Cocteau Twins,
Um brilho azul, metálico, de poesia parnasiana,
Uma presença maligna, onde tudo é doce, fresco, sadio.
Pousa ela na Saarinen e nesse mármore branco
Uma joia mughal se instala —
Não fosse uma mosca, pestilência viva.
Sobrevoa imensidões:
esse arrojo de objetos cuidadosamente jogados
sobre a laca preta de um móvel chinês
em três alturas diversas
em comoção
de pequeno teatro.
Um dado para Cecília Meireles
1.
Alcança-nos um tempo
Em que o elogio é flor morta
Relicário da história
De sua própria beleza
2.
Alcança-nos uma paz
Misto de medo e desencanto
Que não é desdém
Tampouco pranto
3.
Alcança-nos a chuva
E, sem corrermos dela,
O trovão nada mais é que
Gato num terreno baldio
4.
Alcançam-nos os epitáfios
Cinzelados, fundidos, grafados
Com palavras que evocam
A palavra ela mesma, enredada em si
5.
Alcança-nos o pó
Dos livros
Quando as páginas às milhares
São uma só
6.
Não somos de ninguém ~
Adolescentes perdidos
Na primeira noite
De muitos amores
Memento
Lembra-te que és sangue
E ossos
Lembra-te que és
Carne
E que esta massa pulsa
Lembra-te que és voz
Mesmo na sombra
Voz, carne, sangue e ossos
Lembra-te que és memória
Essa versão intranquila do sonho
E és desejo
Essa versão pulsante do sangue.
Marco sua cabeça com essa cinza de flores de altar.
Canção dos três
o primeiro que chegou me beijou as cicatrizes —
precisamos dessa bênção ou dessa maneira estranha de pena
o segundo que chegou me tocou onde ninguém toca —
precisamos desse compartilhar de segredos
o terceiro que chegou trouxe dinheiro —
precisamos dessa ideia vaga de pão eterno
daí chegou você
de mãos vazias
precisamos dessa possibilidade de enxergar pontes
um dia, o leite derramou
um pássaro bateu na janela e morreu
a gata sumiu no mato
o amor, joão, é banal
e dos exercícios, o mais dispensável
não serve para nada o amor
além de colocar o corpo
na fantasia dos excessos
amor é coloratura
é ponta de pé da bailarina
é o brilho no olho da escultura de mármore
é a torre que se constrói para alcançar o firmamento
é o dominó na frente do dominó na frente do dominó na frente do dominó
[esperando o toque da primeira pedra
ou seja, não serve para nada
exceto para espetáculos
Canção aos amantes
Uma lágrima para os amantes que não deram certo
E que se encontram sem querer pelos bares
Quando o coração pula sobressaltado
Pelo que não existiu ou existiria
Uma lágrima para os amantes cegos
Tateando o amor no escuro como um bicho espinhento
Uma lágrima para eles, para seu desejo morto
Uma lágrima para esse tecido branco que cobre o corpo dos amantes
Uma lágrima para as histórias não vividas
Concretas, firmes, lógicas, acabadas
Num vasto terreno da memória dos amantes
Uma lágrima para sua crença, então
Uma lágrima para os amantes crédulos
Uma lágrima para seu poder de criação
Uma lágrima para seu cortejo fúnebre
Circunspecto, circunscrito, seu deambulatório interno
Onde as almas andam calmas e sedadas
Uma lágrima para a contemplação
Uma lágrima para a comiseração
Uma lágrima para crença
Uma lágrima para a dor
Uma lágrima para Sísifo
(Por que os amantes assim o são)
Uma lágrima para a pedra
Uma lágrima para a lassidão
Uma lágrima para a garganta que o amante ele mesmo corta
Uma lágrima para a estupidez
Uma lágrima para a beleza —
uma lágrima para as asas de pedra dos amantes.
[…]
bordei essa almofada para tu pousares a cabeça
pois teu sono velado é como um tesouro
que posso guardar de dois modos: no coração
e no colo, quando teus cabelos de serpente se espalham
pelos desenhos da almofada
um unicórnio, uma virgem, um jardim outonal
[…]
desculpe se não lambi as botas certas
se não ri dos mesmos palhaços
se não humilhei a menina gorda
se não joguei pedra nos pássaros
não botei fogo no gato, numa noite louca
[…]
[…]
ah, esses Fidípedes modernos
desembestados rua abaixo
sob o coro dos cães dos vizinhos
correndo cada qual seu sonho
entre limites escusos.
[…]
e tu longe, outros braços
outros mares, outros orientes
teus olhos
outras linhas de outros livros
na pior das traições
outro poeta que te abre o sorriso
outro místico que te toca lá dentro
a poetisa que rejeita o epíteto tão lindo
esse mar que mudou de cor.
[…]
e esse som ao longe, domingo de manhã
alguém corta a grama
para embelezar a casa
fingir que, sim, está tudo bem.
[…]
desculpe/se/eu/não
Se a vida é caminho de sombra à outra, o que é a noite?
Viver a noite a-dentro
Cm por cm dela
Como escala
Ou gota a gota
Como clepsidra
A noite, um manto
A noite que se fatia
A noite que nos envolve
Atravessa
Delineia os contornos do corpo —
Recordação da morte
A noite de silêncios
Arrastando as tamancas
Tentando não acordar a criança
A noite-tenda
A noite-útero
A noite-caverna
A noite-abraço
A noite-lágrima
A noite-adaga
A noite-perseguição
À espera da estrela da manhã
Sorver o que a noite dá
Como o amante
Que oferece os dedos à boca
Pesquisar nas sombras da noite
A pareidolia
Ler o que a claridade esconde
Cerrar a alma para o dia
Até não tropeçar no escuro
Vendar-se para a noite
Abrindo os olhos
A noite, cortina de pesado veludo
Um gato depositado no peito
Leve, até que se perca o fôlego
A noite, cama vazia
Do amante e seu desdém
Do amor que despejou ali
Seu último suspiro
A noite de criaturas perigosas
Amansadas por uma música
De ninar, mas de melodia
Esquecida
A noite-floresta
Da frieza e da umidade sagrada
Que o místico sentiu, ali,
Nu
A noite e seu toque na fronte
Como a dizer
"Não há o que temer:
apenas voltamos à sombra".
[Mergulhar na noite como se um livro fosse
Penhasco vertigem revelação]
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