©inês guerreiro
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Para mim é triste lembrar-me disso, mas conheci o nome de Orides Fontela acho que em uma referência ao fato de ela ter sido "mais um poeta a morrer na pobreza", não lembro exatamente onde, pois é tema dos mais recorrentes. Embora muita gente pense nessa combinação com certa reverência, em mim sempre invade uma tristeza muito grande quando me deparo com essa associação. Mais ainda quando referida antes da qualidade de uma obra poética magistral como a de Orides.

Ela, que há alguns poucos anos (porém mais de uma década após a sua morte) recebeu da Ed. Hedra uma edição à altura de sua obra completa (org. Luis Dolhnikoff), ganhou também um volume biográfico (por Gustavo de Castro) que, mesmo entrevendo a vida bastante dura que teve, o fez com muita delicadeza e competência. Além disso, acompanha o volume biográfico uma coleção de inéditos da poeta, o que é um deleite à parte, além do que parece ser sua única anotação filosófica a respeito da poesia, reproduzida bem ao final do volume.

Os poucos poemas dela que eu conhecia, publicados em meados dos anos 1970, muito haviam me impressionado, mas como só recentemente editoras têm voltado a realizar a compilação e publicação de obras completas de poetas (para a desgraça dos bibliófilos pobres como eu), pude colocá-la ao lado de outros poetas contemporâneos seus de quem gosto muito e, provavelmente por ignorância minha, só agora percebo a força e a imensidão de sua obra.

Que outros poetas, por quaisquer outras razões, não tenham precisado enfrentar suas mesmas condições de vida, só me faz pensar que são exceções neste país, que costuma remunerar muito melhor outras opções e vocações, além de práticas escusas, criminosas ou vexaminosas. Por alguma razão que não compreendo bem, isso em algum momento foi se tornando aceitável e naturalizando-se como incontornável, quando se trata em absoluto de uma opção consagrada pela classe política e avalizada periodicamente por toda a cidadania. Aliás, isso só torna tudo ainda mais incrível e inacreditável.

Apenas que a mim, há muito tempo, soa insuportável a associação e uma certa mitologia a respeito da poesia e dos poetas com a vida desgraçada, com a pobreza, com o alcoolismo, com a drogadição, a loucura e assim por diante. Quando deixa de ser suficiente (ou sai de moda) o desregramento dos sentidos, começa-se a precisar, então, do desgraçamento biográfico, como se dele dependesse a qualificação da obra ou isso sempre a ela se antepusesse. Não fosse esse reconhecimento costumeiramente póstumo, bem como a atenção editorial, estaria tudo bem. Porém, antes que tudo isso aconteça, a desgraça precisa estar completa.

Esse é um tipo de apreciação da poesia que eu considero um tanto quanto doentia. E eu até tento, mas não encontro outra palavra mais adequada. É como se antes de conhecer a poesia e a própria pessoa, por alguma razão, fosse fundamental certificar-se de que se trata de alguém desgraçado o bastante ou que isso fosse, sabe-se lá por que razão, relevante investigar.

Se não duvido nem um pouco que uma vida atribulada no plano psíquico ou material possa eventualmente conferir maior densidade existencial a um trabalho artístico, tal relação não pode ser arbitrária, nem muito menos constituinte do aspecto criativo/expressivo de quem quer que seja. Há, sem dúvida, um interesse quase místico nessa associação, mas o caso de Orides é revelador nesse sentido. Ao morrer, Orides era professora primária aposentada e isso, no Brasil, representa muito mais uma condenação às dificuldades financeiras do que propriamente a poesia conseguiria. Como se sabe bem, na história brasileira, a poesia ocorreu também entre carreiras públicas menos desafortunadas, tais como a diplomacia, o ensino superior e outras mais. O mesmo vale para as atribulações da vida como, por exemplo, a dependência alcoólica. Entretanto, nesses casos menos afetados pela pobreza, isso curiosamente é bem menos lembrado e evocado.

De minha parte, no caso de Orides, considero algo pusilânime associar-se às condições precárias da sua vida à poesia. Como qualquer um pode imaginar, não existe comprovada relação entre dinheiro e poesia, a não ser para quem pense em se sustentar justamente com os menos vendidos entre todos os livros. Mesmo que isso não fosse uma má ideia de todo, parece cada vez mais improvável que venha a acontecer algum dia de pelo menos um poeta sequer conseguir manter-se com o produto do seu trabalho. Como é típico nas culturas rudimentares, a poesia, mesmo que não seja literalmente punida como em Brodsky por Kruschev, inacreditavelmente, ainda é associada à vadiagem. Daí que dizer que um poeta morrer pobre parece ter se tornado ao longo do tempo uma espécie macabra de tautologia. Mas será que não se percebe que isso compete em uma ainda maior desvalorização generalizada do fazer poético? E o que dizer da insinuação tácita de que a criação poética ocorre sob a desgraça, como se decorresse dela e não pudesse ser por si só um momento de realização ou felicidade?

Embora eu nunca tenha ouvido falar a respeito de algum poeta notável pela ambição financeira ou autodeclarado amante da acumulação, é possível, sim, que em algum lugar exista ou tenha existido. Quanto a Orides, importa saber que seu despojamento foi muito além das questões materiais. Seu interesse e filiação ao zen-budismo não comprova outra coisa que um desejo profundo por limpidez e desbastamento do desnecessário. Seus motivos silenciosos de quem vivera acostumada a longos períodos de solidão a fizeram como um sopro de vento acontecendo lado a lado ao rumor de escolas, movimentos e tendências poéticas que se estabeleceram na história literária quase como fenômenos sociais autônomos.

Ao fim de tudo, restou a sua poesia mais que um manifesto ou mesmo uma declaração da poeta em prol de uma estética ou, vá lá, cosmogonia. A pobreza — e isso só pode acontecer mesmo na poesia — é mero detalhe que nunca chegou perto do imenso tesouro de tenazes delicadezas que Orides criou e publicou ao longo de sua vida. Seus poemas, frutos, talvez, de sua intimidade com a filosofia, têm uma simplicidade avassaladora e uma musicalidade interna à palavra, essencial, como se proveniente mais de seu miolo do que da casca externa das metáforas, hipérboles e demais figuras com que se costuma encobrir os significados poéticos.

Para quem a criação poética era mais fruto de uma opção do que uma intercorrência, Orides sabia melhor do que ninguém e por que a pobreza lhe acontecera. Disse ela em entrevista reproduzida no volume biográfico:

"Uma mulher professora primária, pobre, sem marido, poeta, neste país, não é possível. (…) Tive que escolher o menor dos males. O menor mal possível é ser pobre e sozinha. E o maior bem possível sempre foi a poesia". (CASTRO, Gustavo de. O enigma Orides. São Paulo: Hedra, 2015. p. 47).

Quem desejar confundir isso ao seu legado e fizer questão de erigir essa memória antes de qualquer outra, afinal, só pode mesmo estar obcecado por entender a vida e a obra de um poeta como curiosidade de almanaque. A esses, eu apontaria sem grande dificuldade muitas outras situações onde a pobreza é responsável por obras tais como a violência, a miséria humana e horrores tais. E, aproveitando a ocasião, perguntaria por que tanta obsessão em imbricar poetas e a criação poética a uma ou muitas espécies de necessários destinos trágicos. Eu penso que não teria maiores dificuldades em apontar uma coisa de cada vez. Aqui, a poesia. Acolá, a pessoa. E o destino, ora, infelizmente o destino não existe. No mais das vezes, e ainda que isso seja uma advertência das mais tardias, ele costuma ser a expressão do desejo ou de projeções alheias. Nada que efetivamente interesse à poesia, muito menos à límpida poesia que Orides Fontela nos deixou.

 

 

Alguns poemas do livro

 

ERRÂNCIA – p. 223

 

 

Só porque

erro

encontro

o que não se

procura

só porque

erro

invento

o labirinto

a busca

a coisa

a causa da

procura

só porque

erro

acerto: me

construo.

Margem de

erro: margem

de liberdade.

 

 

 

 

O ANTI-CÉSAR – p. 246

 

 

Não vim.

Não vi.

Não havia guerra alguma.

 

 

 

 

GATHA – p. 255

 

 

O vento, a chuva, o Sol, o frio

tudo vai e vem, tudo vem e vai.

Tenho a ilusão de estar sonhando.

Tenho o manto de Buda, que é nenhum.

Myosen Xingue

(Meu nome como leiga zen-budista)

 

 

 

 

DRAGÃO – p. 274

 

 

Do amor sem

fundo

do

inominável —

o dragão: raio

densa

energia

ascende

e ao

sacro

ímpeto

que amor

resiste?

Rasgam-se os

véus

do inominado.

 

 

 

 

KAIRÓS – p. 326

 

 

Quando pousa

o pássaro

quando acorda

o espelho

quando amadurece

a hora.

 

 

 

dezembro, 2017

 

 

Lucio Carvalho (Bagé/RS, 1971). Autor de A aposta (Ed. Movimento), Inclusão em pauta (Ed. do Autor) e do blogue Em meia palavra. Tem atuado como editor e articulista em revistas culturais, portais, agências de notícias e veículos de imprensa. Escreve ficção, poesia e crítica literária.

 

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