A poesia é a minha
sacrossanta escritura,
cruzada evangélica
que deflagro deste púlpito.
Só ela me salvará
da goela do abismo.
Já não digo como fonte
que me religue
a algum distante céu,
mas como pinguela mesmo,
elo entre alheios eus.
[Waldo Motta, "Religião"]
O poema que abre o livro Punhal a língua, de Abrahão Costa Andrade, intitulado "Preâmbulo" (p. 9), como o próprio termo sugere, é um prenúncio do que o leitor encontrará em suas páginas. Dentre as diversas acepções do termo “preâmbulo”, a que mais lhe confere um significado apropriado é "palavreado vago que não vai diretamente ao fato" (Houaiss, 2015, grifo nosso). A imprecisão do termo "vago", já de partida, denota todas as nuances, pluralidades de "eus" com que se deparará o leitor. "Palavreado" porque neste livro as palavras são as matérias-primas de que se compõe o punhal poético de Abrahão, que as desfere como um açoite para exteriorizar as suas angústias, os seus (des)amores, rancores e o peso que o poema lhe sobrecarrega, para também ser atingido por aquilo que ele mesmo desfere. Eis o poema:
O sol, garganta do dia:
seu grito risca de luz
o canto das horas.
Diria o leitor desavisado que o sentido desse poema é muito vago. E é. Nesse poema, garganta, grito, canto se entrecortam, se recorrem, se redobram num desejo intenso do poeta em gritar ("Sol, garganta do dia") e de se fazer lume, inebriar-se, iluminar o mundo de poesia ("risca de luz") e de se fazer poema ("canto das horas").
O bardo brada, grita alto ("garganta do dia") e usa o seu punhal poético para desferir suas angústias, sentimentos, ironias, pressentimento, ao mesmo tempo em que também é atingido pelas palavras que desfere, pois deseja implodir-se em palavras, explodir as palavras: "cada palavra / é pólvora" (p. 55). De fato, a poesia é o que desperta, é a vida ad infinito passada a limpo. Nesse poema, notamos que é o canto do poeta que alimenta, ilumina os seus dias. Ou seja: ele canta ("garganta do dia") para viver, pois sabe que o "fim do poeta ('Sol') é virar poesia" ('risca de luz') (Cícero, 2012, p. 17) em espaços que ele constrói mimeticamente, quais sejam: sonoro ("garganta"/ "grito"/ "canto"), luminoso ("sol"/ "luz") e temporal ("dia" / "horas").
O poema inicial deste livro bem poderia ser "XXVI", (p. 69):
Tu que buscas
o sentido
não há sentido:
sentido se faz
ao sentir.
Esses versos nos remetem aos do poeta Antonio Machado, quais sejam: "Caminhante, não há caminho, / faz-se caminho ao andar". Para Abrahão, o "Sentido se faz / ao sentir", e fazer-se caminho ao andar é o esforço a ser dado pelo leitor para a captura dos possíveis sentidos que o texto possibilita. Embora toda leitura seja válida para cada leitor, é ele mesmo quem perde (e se perde) se não "chegar mais perto e contemplar as palavras", pois não será capaz de preencher os vazios dos textos (Ramos, 2000, p. 57), de atribuir-lhe sentido, ainda que esse sentido seja feito ao ler o poema. Nesse sentido, o poeta quer nos alertar de que, também, "a verdadeira poesia é uma função de despertar", no dizer de Bachelard (1990, p. 99). Despertar o leitor para a experiência de ser do eu-lírico e, também, para a sua própria reflexão de "ser”. A ele, que se inicia, se embrenha nessa experiência, resta entender — como advertência que o poeta lhe faz (grifos nossos) — que
A palavra vem
antes do sentido.
A palavra é ave,
E o sentido voos
Improváveis. (p. 15)
[...]
a palavra é pedra
na vidraça do sentido (p. 43)
[...]
meu verso atravessa
a tua garganta
verte o leite do sentido
no envelope da palavra (p. 51)
Meu poema venta como árvores enlouquecidas
e as folhas caídas de meu poema
outono de fria indiferença
não fazem sentido
apenas se espalham (p. 54)
mas o leitor fica
com todo esse resto
a eternidade móvel dos sentidos
sem qualquer manifesto (p. 58).
Abrahão nos persuade a "sentir" no momento em que usa a língua (palavra, sentido) como punhal. E o que o punhal neste livro quer sangrar? As palavras, diria. As palavras são (des)feridas, contidas na própria arma ("punhal") de que se vale o poeta para se expressar. É no desferir, desfiar, desafiar as palavras nos poemas que os seus “eus” se revelam. No plano metalinguístico, o jogo, a brincadeira ("Eu corto a palavra como lenha" / só para ouvir sádico o seu crepitar", p. 31) que o poeta (entre)tece com as palavras não é senão a tomada de consciência que ele tem tanto de sua perversidade (das palavras) quanto de sua capacidade de transcendência:
Deserto
Eu faço trança na pedra
(você pensa ser poesia o que digo).
Faço trança
e em seguida dou um nó
no umbigo
da pedra
até me renascer a madrugada
e eu voltar a sonhar
com as possíveis criaturas que sou.
Mas enquanto em meus olhos remanescer
a cegueira
(essa carência de ser homem de carne)
continuarei a trançar a pedra
até encontrar mulher e seus cabelos
e poder desfazer-me da pedra
(essas palavras)
displicentemente. (p. 10)
O poeta sabe que o homem comum (com um modo de ver o mundo apenas) jamais poderia se desfazer da "pedra", ou até "em seus olhos remanescer a cegueira", "homem de carne", pois "as possíveis criaturas que sou [somos]" é que nos possibilita(m) os desdobramentos do que posso/poderemos vir a ser.
O que permite ao poeta encontrar a palavra ideal, "destrançada", desfeita do seu sentido literal, em seus sentidos vários, plausíveis, como no dizer de Antonio Cícero (2012, p. 15) não é senão a sua própria tessitura, pois "o poema se desenvolve a partir de uma decisão — ou de um acaso inicial — ("faço trança em uma pedra") até encontrar um sentido (im)possível, destrançado, desfeitas as "tranças" iniciais.
Ao "trançar a pedra" — tecer a palavra —, o poeta alimenta, realimenta e intensifica os seus alheios eus ("possíveis criaturas") para chegar à feitura, à tessitura, ao seu produto final, que é poema/pedra destrançada. Pedra tecida, palavra destrançada, o poema realiza-se plenamente nos (dis)cursos poéticos, nos eus poéticos que se revezam, reinventam-se nos próprios poemas que ele tece. O exercício de "trançar a pedra" consiste em urdir palavras, tecer os sentidos para que elas se tornem poesia.
O exercício solitário ("deserto") de escrever — o próprio ato de fazer-poema — possibilita a transcendência, que é a passagem de um estado literal para outro, poético, que atinge a sua plenitude ("desfazer-me da pedra"), pois "também as palavras têm seus crespos e avessos, de tal forma que um discurso pode conter, no de repente, um discurso bravo, que inesperadamente vem ali aparecer" (Ramos, 2002, p. 23), como se observa nos versos:
se tive amores? Tive
um punhal e a língua
presa como um travo entre a boca.
(Soledade, solitude, p. 19)
A fala rasga o silêncio
como a um presente se rasga;
desembrulhado o silêncio,
só então a fala fala.
(Silêncio fala, p. 21, grifos nossos)
No plano existencial, notamos a revelação de seus eus ("possíveis criaturas que sou" – p. 10).
minha agonia bebe caldo de cebola
e banha-se trigueira em água de açude. (p. 13)
o que me cortou
de súbito
se fez carne
(e tísico)
tangeu a víbora cortina da janela. (Goethe, p. 17, grifos nossos)
Em alguns poemas, instaura-se a visão niilista, o declínio ou a recusa de suas crenças e convicções:
Não gosto de poesias.
Sobretudo eu detesto poesias [...]
não me traga para ler os seus versinhos.
Porque detesto, detesto, detesto poesias. [...] (p. 23, grifos nossos).
[...]
Não quero mais
de novo
ser poeta.
(p. 24, grifos nossos)
Verdade, pois, o poeta sabe que é com palavras que se faz poesia. Não palavras em estado de pedra, brutas, amontoadas. Exaurir da palavra (pedra) o seu sentido mais amplo é um exercício pluralmente metafísico que só os bons poetas sabem fazer: "trançar pedra" seria, também, um exercício de "catar feijão". Nos poemas de Punhal a língua, o poeta se nega, se supera e se transforma ao se explicar:
Escrevo porque sou contra a violência
e a linguagem é seu outro e minha camarada,
mas eis que a violência também é
contra mim
e rasga a palavra
no meio do silêncio
e arranca do silêncio
essa palavra árdua
súbito
a palavra é pedra
na vidraça do sentido
e o já sentido
é ele quem paga
(p. 43, grifos nossos)
Nesses versos, observamos que "as palavras são perversas ("rasga a palavra"), dizem, e desdizem, contradizem ("a palavra é pedra / na vidraça do sentido") [...] são o phármacon, remédio e veneno, droga que tranquiliza 'a linguagem é seu outro e minha camarada' e alucina, que cria e mata" (Ramos, 2000, p. 23). A poesia neste livro também "assume conscientemente uma função ontológica — quero dizer, ao mesmo tempo é uma experiência do ser e uma reflexão sobre o ser" (Starobinsky, 1970), como se verifica nos versos:
e eu voltar a sonhar
com as possíveis criaturas que sou.
(p. 9, grifos nossos)
Não quero mais
de novo
ser poeta.
(p. 24, grifos nossos)
Um poeta sem poemas
nem sempre é um homem
de papel, e de tristeza
um poço.
(p. 60, grifos nossos)
Se a palavra fere, desfere e violenta, também tem a capacidade de causar estranhamento, pois o poeta a quebra com o princípio erótico da poesia, qual seja o de não revelar, mas ocultar, no dizer de Barthes (1999):
como o sêmen
erupta quente
do falo
da fala
erupta como vento
o sema
o falo goza (e/ou) semeia
a fala semeia (e) glosa.
(p. 29)
p-o-e-m-a
e-s-p-e-r-m-a
nas pernas
da linguagem
(p. 22)
Afrodisíaca é tua palavra cozida em banho-maria
cosida fio a fio
em poemas bons de se comer e de despir
(tricô às avessas
na linha do tempo).
(p. 29)
Esse prazer sensual e linguístico promove o desfazimento da aura de mistério, que culmina em uma implosão de significados. Ou seja, o erotismo na/da linguagem ou "a autorrevelação do poema, ou o pornográfico, ao expor o que deve estar oculto, leva à mudez da palavra e, portanto, novamente ao silêncio" ou ao fazer-se o "já sentido" (Almeida; Leite, 2008, p. 133).
As palavras em Punhal a língua transpassam o mero exercício metalinguístico e transcendem o estado puramente "pedra", em sua forma morta, posta, escrita na página para atingir a sua dimensão mais suprema, o "palavreado vazio", de que falamos no início. Vazio porque está destituído do sentido perfeito, mas não estanque como um "rio sem discurso".
Por fim, Abrahão sabe que "poesia é anotação de uma resposta, mas a distância entre essa resposta, o homem e a palavra é quase ilegível e inaudita" (Lima, 1996, p. 19). A poesia de Abrahão é, no dizer do poeta Waldo Motta, um "elo entre alheios eus". O poeta sabe que a poesia é a sua própria redenção.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Abrahão Costa. Punhal a língua. São Paulo: Opção, 2014.
ANTONIO CÍCERO. Poesia e Filosofia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. SP: Martins Fontes, 1990.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.
FERRAZ, S. et al. (Orgs.). Erotismo e religião: cópula e comunhão na poesia de Hilda Hilst e Adélia Prado, deuses em poéticas: estudos de literatura e teologia [online]. Belém: UEPA; Campina Grande: EDUEPB, 2008. Disponível em <http://books.scielo.org/id/pdkdq/pdf/ferraz-9788578791186-07.pdf> Acesso em 18 nov. 2017.
HOUAISS, Antonio. Dicionário eletrônico da língua portuguesa. 2014.
LIMA, José Lezama. A dignidade da poesia. São Paulo: Ática, 1996.
MOTTA, Waldo. Transpaixão. Vitória: Edições Kabungo, 1999.
RAMOS, Maria Lucia. Interfaces: literatura, mito, inconsciente, cognição. Belo Horizonte: UFMG, 2000. (Humanitas), 296 p.
STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rosseau: a transparência e o obstáculo. SP: Cia das Letras, 1970.
ALMEIDA, Geruza Zelnys de, LEITE, Cristiane Fernandes. In: Erotismo e Religião: Cópula e Comunhão. Estudos acerca da poesia de Hilda Hilst e Adélia Prado. XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências. Anais... [São Paulo, Brasil], USP, 13 a 17 de julho de 2008.
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dezembro, 2017
Wilbett Oliveira é poeta, ensaísta e revisor de textos. Graduado em Letras (Universidade Federal do Espírito Santo) e Pós-Graduado em Literatura Brasileira (Universo, RJ), e Metodologia do Ensino de Filosofia e Sociologia (Faculdade Alfa, SP). É autor de Minimal lâmina (Opção, 2017) e Poestiagem (Multifoco, 2017).
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