RESUMO

 

Num primeiro momento deste ensaio teceremos algumas considerações sobre o narrador na obra de Clarice Lispector. Depois disto, faremos uma breve leitura do romance A maçã no escuro, considerado por muitos críticos como o texto mais complexo da escritora. Procuramos fazer uma leitura que resgata o intricado enredo do romance, de modo que as descobertas de Martin sejam vistas como parte do processo de vivência como um terreno virgem em que se encontram as situações que são vividas pelo personagem como se ele vivesse na primeira infância de sua vida, tentando reinventar o mundo.

 

PALAVRAS-CHAVE: Clarice Lispector. A maçã no escuro. Reinventar o mundo. Narrador.

 

 

ABSTRACT

 

In the first part of this essay we will make some considerations about the narrator in the Clarice Lispector's work. After this, we will briefly read the novel The apple in the dark, considered by many critics as the writer's most complex text. We attempt to analyze that rescues the intricate plot of the novel, so that Martin's findings are seen as part of the living process as a virgin land on which are the situations that are experienced by the character as if he lived in early childhood of his life, trying to reinvent the world.

 

KEYWORDS: Clarice Lispector. The apple in the dark. Reinvent the world. Narrator.

 

 

RESUMEN

 

En un primer momento de este ensayo tejeremos algunas recomendaciones sobre el narrador en la obra de Clarice Lispector. Después de esto, haremos una breve lectura de la novela La manzana en lo oscuro, considerado por muchos críticos como el texto más complejo de la escritora. Buscamos hacer una lectura que rescata la intrincada trama de la novela, de modo que los descubrimientos de Martin sean vistos como parte del proceso de vivencia como un terreno virgen en el que se encuentran las situaciones que son degustadas por el personaje como si viviera en la primera infancia de su vida, intentando reinventar el mundo.

 

PALABRAS CLAVE: Clarice Lispector. La manzana en lo oscuro. Reinventar el mundo. Narrador.

 

 

PARA UM COMEÇO DE CONVERSA

 

A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la — e  como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que  eu  não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas — volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu (A paixão segundo G.H., p. 113).

 

Entender o texto literário como meio de reflexão sobre a matéria viva da existência, que será elaborada pelo artista, é um dos caminhos possíveis rumo aos significados presentes na obra de Clarice Lispector.

Se este desejo em si ainda não constrói um corpus de análise que proporcione a compreensão mais geral dos textos da escritora, ao menos permite levantar hipóteses que possibilitem reunir numa certa coerência as tantas nuances discursivas que constroem uma arte singular.

O estilo de Clarice, enquanto especificidade de linguagem, parece estar pronto desde seu primeiro romance. Ali, encontramos estabelecidos alguns pilares estéticos de sua criação literária: uma imagética particular, um gosto pelo descosido do pensamento, pela diluição momentânea do sujeito em seu mundo interior, pela apreensão conturbada da realidade etc.

Este estilo é antes de tudo o contato com a estranheza da palavra que nos empurra para um fluxo de interrogações que se multiplicam. Daí advém o ritmo de procura que substitui a ação romanesca, transformando o espaço e tempo em instâncias de representação desta interioridade erigida num mundo que reelabora o entendimento pré-concebido da realidade: 

À abolição do espaço-ilusão corresponde a do tempo cronológico. Isso implica uma série de alterações que eliminam ou ao menos borram a perspectiva nítida do romance realista. Espaço, tempo e  causalidade foram "desmascarados" como meras aparências exteriores, como formas epidérmicas por meio das quais o senso comum procura impor uma ordem fictícia à realidade. Nesse processo de desmascaramento foi envolvido também o ser humano. Eliminado ou deformado na pintura, também se fragmenta e decompõe no romance (ROSENFELD, 1969, p. 83. Grifo meu). 

A voz do narrador nos primeiros romances da escritora (de Perto do coração selvagem até A maçã no escuro) é ainda pouco aparente, confundindo-se com a voz dos personagens. Temos, aqui, um espelhar de consciências do mundo que se elaboram no texto de modo a formar um discurso que se repensa enquanto apreensão do mundo fragmentário e múltiplo. Mas ainda há um desejo do criador de harmonizar os contrários, de prescrever pela dúvida uma espécie de sintomatologia de um sujeito que desesperadamente busca uma compreensão.

As variações do ritmo narrativo, a temporalidade múltipla (os flashs backs, a dilatação interior do tempo, a descrição imparcial do espaço — como acontece em A cidade sitiada — que cria mimeticamente a realidade estática do subúrbio de São Lourenço), tudo contribui para a criação de um mundo ficcional mais ou menos estável, ao contrário do que acontece a partir do livro A paixão segundo G.H.

Neste primeiro momento de sua obra, quando a escritora utiliza os recursos do fluxo da consciência, do monólogo interior, do solilóquio, a distância entre o olhar do escritor e dos personagens é praticamente anulada. Estes recursos também inserem a consciência do criador numa multiplicidade de tempos. A representação do mundo é construída a partir de um sujeito que se integra com sua interioridade, distanciando-se da realidade exterior quando procura compreender a manifestação da experiência no tempo.

O tempo é a prescrição de um estado momentâneo, fugaz e dilatado que nos remete a uma existência sempre incompleta e à deriva da própria realidade. Este é um dos temas mais frequentes na obra de Lispector. E é o centro da discussão aqui proposta porque nele se estreitam a discussão da literatura moderna (enquanto discurso fragmentário que tenta representar coerentemente um mundo) e a reflexão da própria escritora na forma de um resgate obsessivo da multiplicidade das experiências representadas nos múltiplos tempos.

A percepção momentânea como um dado devastador da totalização da experiência, os instantes como um feixe de relações capaz de obliterar a ideia de um tecido conceitual permanente que conduz o ser humano à compreensão de si mesmo dentro da realidade do mundo. Esta pode ser uma das definições da experiência na obra de Lispector: 

Entre um instante e outro, entre o passado e o futuro, a vaguidão branca do intervalo. Vazio como a distância de um minuto a outro no círculo do relógio. O fundo dos acontecimentos erguendo-se calado e morto, um pouco da eternidade (Perto do coração selvagem, p. 168).  

Estes vazios, referidos no trecho, nos mostram a falácia de que o tempo é inteiro continuidade. A experiência, somados estes vazios, torna-se coisa morta que vive da própria vida. Deixa de ser um passo para uma compreensão possível do mundo.

Desses vazios, também, há o preenchimento da existência com uma resignificação de sentidos que nos remetem ao movimento próprio da experiência: a sua sucessão no tempo é esse eterno espelhar-se no vazio das "pequenas mortes" (aí incluído o gozo) que nos perseguem dia a dia: 

Os instantes sucedem-se uns aos outros: nada lhes empresta a ilusão de um conteúdo ou a aparência de uma significação; desenvolvem-se; seu curso não é o nosso; contemplamos seu fluir, prisioneiros de uma percepção estúpida. O vazio do coração ante o vazio do tempo: dois espelhos refletindo cara a cara sua ausência, uma mesma imagem de nulidade... (CIORAN, 1989, p. 21). 

Guardadas as devidas distâncias entre o definitivo ceticismo de Cioran e as reflexões de Clarice, este poderia ser um caminho para interpretar a abundância do tempo na obra da escritora. Um modo de alçar o vazio a uma significação que transcende sua aparência de nulidade.

Se para o filósofo este vazio é imagem de uma existência em ruínas, para a escritora é um modo de decantar destas ruínas suas possíveis significações. A parada num destes bolsões inertes do tempo é o que leva à desestabilização de um sentido preestabelecido da realidade. É justamente isto o que reelabora a existência viciada na inércia.

Mesmo que momentânea, esta consciência constrói outro mundo possível, mas não perdurável e nunca estável. Lugar de onde se contempla a vida despida de seus significados cristalizados e se atinge a preexistência das coisas que reelabora a compreensão do mundo.

Assim, a epifania (se existe), na obra de Lispector, é mais o seu avesso agônico. É luta contra a vida que se faz perene desconforto. É mais paródia profana do sagrado contato com o absoluto do que o sereno contemplar dos místicos. Como recurso estilístico, é fruto de sua ira contra o Deus dos homens. É o homem à procura de sua medida. Por isso, G.H. só pode se desvencilhar do sentimento de náusea diante da barata quando percebe ter feito não o ato máximo, como pensara, mas o ato mínimo que lhe dá sua profunda dimensão humana.

A reflexão sobre o tempo serve, a partir de A paixão segundo G.H., para um aprofundamento da discussão sobre o próprio ser criador que se debate com a criação. Nos romances anteriores, a experiência dos personagens determinava a sua sempre distância da apreensão da realidade, levando-os ao paradoxo de existir num mundo para eles incompreensível. Agora o que está em jogo é a impossibilidade de representar este mundo enquanto coerência, domínio de uma vontade criativa que organiza a realidade.

Quando a narradora compartilha com o leitor a experiência vivida no limite de suas forças, delega a ele o papel de consubstancializador da própria matéria narrativa. Assim se cria um elo de comunicação do leitor com a experiência desestabilizadora: 

Para construir uma alma possível — uma alma cuja cabeça não devore a própria calda — a lei manda que só se fique com o que é disfarçadamente vivo. E a lei manda que, quem comer o imundo, que o coma sem saber. Pois quem comer o imundo sabendo que é imundo — também saberá que o imundo não é imundo. É isso? (A paixão segundo G.H., p. 47). 

Aí se estabelecem algumas metas da estética clariceana. A experimentação da vida é sempre uma sucessão de momentos que preenchem e esvaziam um possível entendimento. Sendo assim, o comungar com este mínimo imundo que é a massa branca da barata, a paródia da hóstia, é o ritual necessário para que atinjamos nosso paradoxo primordial: 

O único  destino  com  que  nascemos  é  o  do  ritual.  Eu chamava "máscara" de mentira, e não era: era a  essencial máscara  da  solenidade. Teríamos  de  pôr  máscaras  de ritual para nos amarmos. Os escaravelhos já nascem com a máscara com que se cumprirão. Pelo  pecado original, nós perdemos a nossa máscara (A paixão segundo G.H., p. 75). 

O gosto pela máscara leva a uma progressiva compreensão do texto literário enquanto fruto de um sujeito que se ficcionaliza, torna-se matéria de sua própria criação artística. Aquele que vive, aquilo que é vivido possibilitam o contato estreito com um tempo que se dobra sobre si mesmo, sendo passado presente e futuro da experimentação do paradoxo da existência, da ausência de seu sentido: 

Nenhuma outra indagação sobre esta viagem, exceto esta: até onde se pode ir ao extermínio do sentido, até onde se pode avançar na forma desértica irreferencial sem fracassar...?... (até o) ponto de não retorno. Esta aí toda a questão. E o momento crucial é aquele, brutal, da evidência de que não tem fim, de que não existe mais razão para que se lhe ponha fim. Para além de um certo ponto, é o próprio movimento que muda. O movimento que atravessa o espaço por sua própria vontade transforma-se numa absorção pelo próprio espaço — fim da resistência, fim da cena própria da viagem... Assim é atingido o ponto centrífugo, excêntrico, onde circular produz o vazio que vos absorve. Esse momento de vertigem é também o do desmoronamento potencial. Não tanto pela fadiga própria da distância e do calor, do avanço no deserto visível do espaço, mas a própria do avanço irreversível no deserto do tempo (BAUDRILLARD, 1986, p. 15. Grifos meus). 

A viagem dos personagens/narradores de Clarice Lispector é sempre o contato com um mundo interior abarrotado de possíveis significados que se refazem à medida que mergulhamos na vertigem do espaço ficcional, no "deserto do tempo" que se preenche pela própria suspensão de significados aparentes.

É este o caso de Água viva, sob a forma da supressão da distância temporal entre a experiência vivida e o seu relato; e de A hora da estrela sob a forma do começo intemporal da narrativa, do passado que invade o presente da personagem como um tempo de inconsciência da dureza da vida ("A gargalhada era aterrorizadora porque acontecia no passado e só a imaginação maléfica a trazia para o presente, saudade do que poderia ter sido e não foi." – A hora da estrela, p. 48).

A literatura de Clarice é essencialmente uma arte do tempo, que se desgruda da rala superfície da existência dos personagens para puxá-los ao fundo de sua interioridade. Em outro sentido, o tempo é a categoria do espelhar-se entre escritor e leitor, é imagem da dobra da experiência que se repensa, se reflete enquanto possibilidade de colocar em xeque sua própria representação.

Daqui, podemos reler a produção artística de Clarice Lispector nos rastros de Proust, Pirandello, Joyce, Beckett, Virgínia Woolf, tendo em mente que na produção destes escritores, o que parece estar em jogo, dentre outras coisas, de um lado é um refinamento da noção do que seria o Tempo, de outro a inserção do narrador/personagem no centro catalisador de toda essa problemática.

Grande parte da terminologia criada pela crítica moderna para dar conta dos processos narrativos surgidos no século XX parece ter como base conceitual as reflexões sobre a multiplicidade temporal.

Assim, podemos encarar a narrativa moderna, vista sob o ângulo de sua organização mais profunda, como a escolha de certo modelo temporal. Este repensar o tempo como elemento fundamental da sociedade do século XX, cujo desenvolvimento tecnológico e científico nos obrigou a lidar com velocidades e espaços cada vez maiores, parece ter dilatado o espaço e o tempo interior do homem.

A literatura moderna parece ter nascido desta ressaca do tempo entendido como exterior ao ser humano, passando a compreender a experiência como o resgate do tempo, por meio de sua interiorização. Quando o escritor moderno pensa a experiência, reflete sobre as várias formas de sua manifestação no tempo.

Deste tratamento temporal complexo, advém a desestruturação do material narrativo, a mudança do ritmo que se distende ou retrai, a inexistência de um começo, "visto que nos faz mergulhar num fluxo constante de experiência", e de um final, que geralmente é ambíguo "deixando o leitor em dúvida quanto ao destino final das personagens." (LODGE, 1989, p. 394.)

A esta contingência formal da literatura moderna, o escritor soma os fragmentos de sua experiência distribuídos entre os personagens. Cria, assim, uma multiplicidade de vozes narrativas que refletem sua perplexidade diante do mundo. Por esta razão a literatura moderna não é um todo fechado em si, seu conteúdo ultrapassa a compreensão racional do homem. Ela não pretende pôr ponto final em nada. Sua sobrevivência depende da dúvida, da luta do leitor imerso num contínuo desvendamento.

 

 

ALGUMAS ANOTAÇÕES SOBRE A MAÇÃ NO ESCURO 

Até que um dia um homem saía para o mundo "para ver se é verdade". Antes de morrer, um homem precisa saber se é verdade. Um dia enfim um homem tem que sair em busca do lugar comum do homem. Então um dia o homem freta o seu navio. E, de madrugada, parte (A maça no escuro, p. 43). 

Clarice Lispector, desde seu primeiro livro, colocou, como questão fundante de sua literatura, um problema que seria, posteriormente, recorrente em sua obra: a incessante busca confusa e às vezes desajeitada e perplexa dos personagens por uma identidade.

Este é o caso de Joana, protagonista de Perto do coração selvagem, que sozinha, no final do romance, tendo diante de si um futuro incógnito, não vislumbra nenhum objetivo para sua vida. Diante desta situação, resta a ela aceitar a instabilidade em que vive: "Naquela tarde já velha — um círculo fechado, trabalho findo —, naquela tarde em que recebera o bilhete do homem, escolhera um novo caminho. Não fugir, mas ir. Usar o dinheiro intocado do pai, a herança até agora abandonada, e andar, andar, ser humilde, sofrer, abalar-se na base, sem esperanças" (Perto do coração selvagem, p. 210).

O que mais nos chama a atenção é que nesta busca de identidade, o que a autora privilegia são os momentos de intensa confusão interior que os personagens vivem, em que nenhuma solução aparente se delineia ou se vislumbra factível, mas são tidos como os mais produtivos, os mais cruciais e primordiais para a constituição de uma identidade.

Nesta linha de pensamento é que podemos inserir o trecho final de A paixão segundo G.H.: "A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro. _ _ _ _ _ _" (p. 175) — no qual se encontra resumida uma espécie de "profissão de fé" da literatura clariceana: o mundo ultrapassa o entendimento racional do homem. Deste modo, a escritora situa seus personagens num momento de sua existência em que o entendimento dá lugar à apreensão espontânea e virgem do real.

Resta-nos, por fim, uma última ressalva: a literatura de Clarice Lispector insere-se num campo puramente especulativo, não tem a pretensão de dar respostas aos problemas que nela são encontrados. Como nos diz o narrador de A hora da estrela: "Este livro é um silêncio. Este livro é uma pergunta" (p. 23). Podemos dizer, então, que a obra de Lispector é a busca do fluido, do inacabado, tal como é definida pela personagem Virgínia, de seu segundo romance, O lustre: "Ela seria fluida durante toda a vida" (p. 7).

O universo de A maçã no escuro é basicamente este que acabamos de descrever. O suposto crime de Martim (ele pensa ter matado a mulher) é o elemento desencadeador da ação. O personagem procederá à tentativa de reconstrução do mundo, de modo a não caber nele a palavra "crime", pois só assim, ele pensa, é que poderá resgatar a própria identidade.

 

 

O HOMEM DIANTE DO MUNDO 

A vida do homem não pode ser vivida simplesmente pela repetição dos hábitos da espécie; o homem deve viver. O homem é o único animal que se aborrece, que sente descontentamento, que se sente expulso do paraíso. Só para o homem a vida é um problema, que ele tem que resolver (FROMM, s.d, p. 125). 

O crime de Martin significa, sob dois ângulos, ao mesmo tempo uma vontade de negação e uma tentativa de afirmação. A primeira está ligada à relutância em aceitar o passado, que representa a sua insatisfação diante da vida, o sufocamento do ambiente familiar, os compromissos diários. Enfim, o que o personagem nega são as próprias raízes, sejam afetivas ou profissionais, que de alguma forma sustentam sua personalidade. A segunda se refere ao fato de que o crime abre, para o personagem, a possibilidade de se construir a partir do nada, pois "Um homem no escuro era criador" (LISPECTOR, 1982, 214).

Interessa-nos, agora, analisar o modo como se dá a tentativa do personagem de reconstruir a própria identidade. Na verdade, Martim é muito mais paciente do que agente de sua reconstrução, ele apenas pressente o que está por vir e vai seguindo meio cegamente o seu destino. Aos poucos a possibilidade de reconstrução do mundo vai-se convertendo em impossibilidade. Isto acontece por dois motivos básicos: a relação do "eu" (Martin) com o "outro" (mundo) obedece a uma progressiva absorção daquele por este; a incapacidade do personagem se desvencilhar de seu passado.

A relação de Martim com o mundo revela o lugar do personagem no universo que o cerca após o ato transgressor (o crime). Desde o início da narrativa há uma tentativa reiterada de negação do mundo, a tudo o que nele se configura como imitativo. Assim, (Martim) "com um único ato ele fizera os inimigos que sempre quisera ter — os outros" (LISPECTOR, 1982, p. 33). Por meio do crime, Martim se "arriscara a não ter nenhuma garantia, e passara a não compreender" (LISPECTOR, 1982, p. 31). Essa incompreensão é justamente o que dá ao personagem a possibilidade de um mundo vasto e virgem, pois é ele quem faz "a verdade para poder vê-la". (LISPECTOR, 1982, p. 37). Esta recusa ao imitativo, à cópia é materializada no crime, que representa a desobediência, a não aceitação de esquemas viciados de se apreender a realidade. Neste sentido, ao longo da narrativa, assistiremos a um processo lento e gradativo de individualização de Martim e, posteriormente, à reabsorção da personagem pelo mundo.

No início da narrativa o personagem aparece indiferenciado do mundo: "Nada agora diferenciava o sono de Martim do lento jardim sem lua: quando um homem dormia tão no fundo, passava a não ser mais que aquela árvore de pé ou o pulo de um sapo no escuro" (LISPECTOR, 1982, p. 11).

O personagem passa, então, pela identificação com cada um dos estados de vida na Terra: mineral, vegetal e animal, numa espécie de peregrinação do homem por modos de vida em que predomina a incompreensão, refletida na própria incompreensão do personagem. Martin experimenta uma espécie de "regressão" evolutiva (incorpora o mineral, vegetal e animal), para só depois chegar ao estado humano, no qual se encontra a compreensão, já que o homem é o único animal que atribui sentido ao que vê, que atribui sentidos a suas experiências e ao mundo que o cerca. Mas o que veremos é que mesmo atingindo o estado humano, Martin ainda é como se fosse um protótipo, um recém-nascido que tem que ir pouco a pouco experimentando, vendo, sentindo as coisas na busca de encontrar sentidos para elas. Martim deve moldar seus próprios contornos, pois assim é que se faz um homem.

Passada a fase de incorporação de cada um dos estados da vida. "Martim emergiu totalmente e como homem" (LISPECTOR, 1982, p. 108). "[...] ele era o seu próprio peso. O que quer dizer que aquele homem se tinha feito" (LISPECTOR, 9182, p. 109). Acaba neste ponto a primeira parte do livro, no momento em que o personagem consegue, numa espécie de reversão do mito da criação, criar-se a si próprio. A partir daí é que começa o processo de absorção pelo mundo.

Na segunda parte do livro, o personagem sentirá a necessidade de comunicação com os outros, procurará saber "o que é que faz um homem?" (LISPECTOR, 1982, p. 123), fará uma reavaliação de seu crime. Este será o tempo da dura aprendizagem para Martim, ele obedecerá cegamente as ordens de Vitória, o trabalho no campo será, para ele, parte de sua lenta aprendizagem. Acontecerá, então, algo não esperado por Martim: "Uma coisa insidiosa começara a roer a viga mestra. E era algo com o qual Martim não contara. É que ele começava a amar o que via" (LISPECTOR, 1982, p. 138). Esse amor será a ruína do personagem, pois vai colocá-lo numa luta contra o prazer do mundo, luta essa que vai levá-lo a manter uma relação amorosa com Ermelinda, embora essa entrega lhe dificulte a reconstrução do mundo, coisa que ele quer fazer para poder se inserir nesta realidade livre das culpas e atos do passado, do ato criminoso que ele pensa ter cometido. Martin quer criar um novo mundo onde ele possa existir inteiro, sem máscaras, um ser livre sem arrependimentos. E aprender de novo o que é ser um homem.

Ao pensar em Ermelinda, Martim lembra-se da mulher e do filho: "E com o filho, o amor pelo mundo o assaltara" (LISPECTOR, 1982, p. 158). Nesse ponto, passado e presente convergem para um mesmo símbolo: a busca da identidade, o "encontro dele (Martin) consigo mesmo" (LISPECTOR, 1982, p. 158).  Mas o amor pelo mundo não basta ao personagem, ele partirá, então, do silêncio à procura da palavra, uma nova etapa na vida de Martin, pois "(...) faltava saber o que é que um homem faz. Senão de que teria valido a liberdade que alcançara?" (LISPECTOR, 1982, 159).

É precisamente neste momento em que o personagem começa a questionar o objetivo de seu ato de revolta, que o antigo Martim passa a se debater com o atual — "O homem antigo voltara" (LISPECTOR, 1982, 180). A ida de Vitória para Vila Baixa e a posterior vinda do professor à fazenda trazem o medo para Martim, "medo do grande crime que cometera" (LISPECTOR, 1982, 211), que será desencadeador do processo de absorção do personagem pelo mundo: "Tudo então que em Martim era individual cessou" (LISPECTOR, 1982, 211).

O processo que se desenvolverá, a partir de então, será uma tentativa de aceitação da dimensão menor do crime, pelo próprio Martim. O que antes era tido como um grande ato libertador, passa agora a ser encarado como uma falta, um erro, que levará o personagem a querer sua reinserção no mundo: "E aquele homem com olhar espantado (...) só queria agora uma coisa deste mundo: caber nele" (LISPECTOR, 1982, p. 214). Para tanto, Martim terá que trair seu ato de revolta, ele deverá crer mesmo não sabendo em quê, o que importa agora é que ele quer fazer parte um sistema, quer ser uma das engrenagens que movimentam esse sistema.

Martim passa, então, a copiar, a imitar, o que os outros fazem, assim é que terão lugar, na narrativa, uma série de rituais religiosos parodiados, índices de uma crença cega, de fórmulas que se repetem ao longo do tempo sem alterações. Martim recita o Credo modificado, "usando palavras que não eram suas" (LISPECTOR, 1982, p. 217). Inverte-se o mito da criação: "Mas quando um homem se respeitava, ele antão tinha enfim se criado à sua própria imagem" (LISPECTOR, 1982, p. 284). Temos também a patética genuflexão de Martim diante de Vitória (LISPECTOR, 1982, p. 313), que é chamada de "melodrama da genuflexão" (LISPECTOR, 1982, p. 316). Mas todos esses índices parecem nos dizer que a "mímica da ressurreição" (LISPECTOR, 1982, p. 315) de Martim ganhará outro rumo, e é isso que efetivamente acontece no final do romance, pois o personagem passa a representar papéis que sempre quis, o próprio crime (Martim pensa que matou a mulher, mas ela sobreviveu) vira "uma performance elegante" (LISPECTOR, 1982, p. 307). Assim, podemos dizer que Martim tem consciência de seus atos, pois quem representa precisa saber de cor o seu papel.

Outro motivo que impossibilita a reconstrução do mundo por Martim é a incapacidade de ele se desvencilhar de seu passado. Logo no início do romance, Martim faz um sermão para as pedras (LISPECTOR, 1982, p. 37) no qual sempre há um contraponto entre o passado e o presente. A certa altura da narrativa, lê-se: "O fato é que, depois que o homem se lembrou de tudo isso, começou a achar sua vida passada muito boa, e uma espécie de nostalgia encheu seu peito" (LISPECTOR, 1982, p. 42).

Ora, esse passado presentificado, pela memória, coloca em xeque todo o projeto do personagem de reconstrução do mundo, alguma força o arrasta para um ponto limítrofe de sua existência: o crime. E Martim parece oscilar entre o passado e o futuro. De fato, ao longo do romance, assistiremos à constatação de que o personagem não consegue se desvencilhar de sua vida anterior, pois "Ele tinha ficado preso dentro da construção do próprio passado" (LISPECTOR, 1982, p. 171).

Vinculado à presença do passado, podemos citar outro elemento: o lugar-comum, que parece nos indicar o sentido da trajetória de Martim: "Um dia um homem tem que sair em busca do lugar-comum de um homem. Então um dia o homem freta o seu navio. E, de madrugada, parte." (LISPECTOR, 1982, p. 43) Os lugares-comuns que aparecem ao longo da narrativa são indícios de que toda existência, no fundo, é constituída por eles, que reproduzimos comportamentos, falas e até sentimentos que herdamos de outros. Tanto é assim que nem mesmo martim consegue escapar deles, pois ao pensar em seu crime ele não consegue de livrar di lugar-comum: "E agora, que enfim fora banido, estava livre. Ele era enfim um perseguido. O que lhe dava todas as possibilidades dos que se desesperam. "matei vários coelhos numa só cajadada", Martim diz. (LISPECTOR, 1982, p. 38).

O passado aparece, então, como depositário dos lugares-comuns, que pouco a pouco são transferidos para o presente: "Não teve sequer o pudor de voltar a usar palavras da adolescência (...)" (LISPECTOR, 1982, p. 129). Podemos exemplificar  como isso acontece citando um trecho do romance. A certa altura da narrativa, Martim entra no depósito, e Ermelinda está esperando por ele, que pensa o que é que ela queria dele, e "(...) ao pensar em Ermelinda começava a pensar na sua própria mulher ouvindo rádio enquanto o tempo se escoava, e recebendo os presentes com um suspiro: 'a cavalo dado não se olham os dentes', dissera ela com um suspiro. E pensando na esposa, pensou no filho, em que jamais quisera pensar diretamente. Pensou no filho com a primeira e feliz dor como se ter tido Ermelinda nos braços lhe tivesse enfim dado seu filho" (LISPECTOR, 1982, p. 158). É desse modo que Martim, pouco a pouco, tomará consciência de que "Uma criança era o lugar-comum de um homem, ele queria participar dela" (LISPECTOR, 1982, p. 195).

Assim, a presença maciça dos lugares-comuns, no final do romance, na conversa de Martim com o espírito do pai, pode ser explicada como algo que vincula a fala do personagem a uma espécie de regressão: "— Que luz é essa, papai? Gritou lá solitário na esperança, andando de quatro para fazer seu pai rir, fazendo uma perguntinha bem antiga e tola contanto que adiasse o momento de assumir o mundo" (LISPECTOR, 1982, p. 320). Regressão essa que aparece como aceitação de que é impossível negar, apagar o passado, que para assumir o mundo em sua plenitude, precisamos conhecer o que é novo, mas também comungar com o passado, mesmo que ele seja reflexo de hábitos, de um tempo em que não há mudança, não há movimento: NATUREZA MORTA.

 

 

REFERÊNCIAS

 

BAUDRILLARD, Jean.América. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

CIORAN, Emil. Breviário da decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

FROMM, Eric. Psicanálise e religião. Rio de Janeiro: Libro ibero-americano, s.d.

LISPECTOR, Clarice.  Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

                        A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

                        A paixão segundo G.H. (ed. crítica coordenada por Benedito Nunes). Paris: Association Archives de la littérature latino-américaine, des Caraïbes et africaine du XXe siècle; Brasília/DF: CNPq, 1988.      

                        Água viva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

                        A hora da estrela. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.

LODGE, David. A linguagem da ficção modernista (metáfora e metonímia). In:Modernismo (guia geral). São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 394.

ROSENFELD, Anatol.Estrutura e problemas da obra literária. São Paulo: Perspectiva, 1976.

            ________. Texto/Contexto. São Paulo: Perspectiva, 1969.

 

 

maio, 2017

 

 

Edson Costa Duarte. Mineiro, nascido em em Pratápolis, mora atualmente em Campinas. Estudou Letras na Unicamp (1988-1991), onde fez mestrado em Teoria Literária. Dissertação: "Clarice Lispector: Máscara Nua". Fez doutorado em Literatura na Universidade Federal de Santa Catarina (2002-2006). Tese: "Hilda Hilst: Economias Estéticas". Entre os anos de 2007 a 2009, fez pós-doutorado, no IFCH. Ensaio: "O Alto e o Baixo Discursivos na Prosa de Hilda Hilst". Entre 1992 e 1995, realizou seu mais relevante trabalho até hoje: a organização de um acervo contendo documentos pessoais da escritora Hilda Hilst, reunidos entre os anos de 1950 a 1995. Esse acervo, posteriormente, foi negociado com o Centro de Documentação Cultural "Alexandre Eulalio", do Instituto de Estudos da Linguagem, IEL, Unicamp, em 1996, estando hoje aberto para pesquisadores do mundo inteiro. Publicou quatro livros. Em 2008, Diário de um P.M.D. ou Diário de um diagnóstico, pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores do Rio de Janeiro. Pela mesma editora, no mesmo ano, o livro de poemas intitulado Lírica impura III. Em 2010, um livro de prosa, Cartas para o Nunca, pela Madio Editorial/SP. Em 2011, editou o primeiro livro de poesia que escreveu, Lírica impura I, pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina. Publica, também, vários poemas e contos, em revistas eletrônicas e impressas.