Origem: do Verbo ao aforismo
Eis que "no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Tudo foi feito por ele; e nada do que tem sido feito, foi feito sem ele. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens" (João 1:1-4). Partimos também da palavra, agora oriunda do homem (pretensioso?), para iniciar uma discussão sobre essa polêmica forma literária denominada aforismo.
Seu surgimento remonta a Hipócrates — "pai da medicina" — na Grécia antiga. Em seu livro intitulado Aforismo (αφορισμός), o autor escreveu uma coleção de orientações para doenças e medicamentos-. Obviamente, Hipócrates não estava ciente de que esse "manual" de aconselhamento médico, viria a nomear uma nova forma literária. Na verdade, a frase hipocrática que serve de introdução ao livro, "A vida é curta, a arte é longa" (ars longa, vita brevis), embora construída com um propósito diferente, traz em si a definição de um aforismo: uma frase concisa, precisa e carregada de grande força.
Etimologicamente, aforismo vem do substantivo grego aphorismos, que, por sua vez, deriva do verbo orizein, "restringir", "limitar" (que deu horizonte em português), somado à preposição apo, que marca a distância. Aphorismos significa "fronteira", em Aristóteles (particularmente nas categorias), "definição" e, entre os médicos — Hipócrates, e mais tarde, Galeno — "breve definição", "prêmio" quase "ordem".
Tomando como base um enfoque histórico, observamos que a amplitude do significado e da transformação do aforismo é uma expressão interessante da diversidade do significado básico da palavra que advém das circunstâncias históricas. Dada sua origem grega aphorizein trazer um sentido de "determinar", "escolher", "indicar"... e sua tradução latina como "determinação" ou "definição", o aforismo, até meados do século XIX, foi percebido como uma forma específica de expressão científica. Mas, em uma análise mais criteriosa, o filósofo Émile Littré, autor do Dictionnaire de la langue française, observou que "a palavra, que se limitava inicialmente para a medicina se expandiu, ao longo do tempo, passando a ter uma conotação política". Daí propor que o aforismo necessite ser "uma frase que contenha uma grande sensação em poucas palavras".
Em resumo, o aforismo expressa concisamente experiência geral, filosofia de vida, situação e posição de um Homem neste mundo, paradoxos sociopolíticos e históricos, etc. Embora possa ser visto como uma crítica pretensiosa da sociedade, poderíamos entendê-lo como um testemunho particular do tempo.
"Meus aforismos podem não ser a verdade, mas são a minha verdade".
(José Narosky)
Não deixa de ser propositado utilizarmos o termo "pretensioso" quando discorremos sobre o aforismo. Talvez seja essa "pretensão" do absoluto autoral ou essa apresentação como um gênero literário fragmentário e "pretensioso" que justifica o fato de que o aforismo seja praticamente ignorado nos últimos tempos pela teoria literária, no mínimo, como um tópico profícuo para pesquisa científica.
Aforismo: um gênero literário?
Segundo nos diz o linguista José Augusto Carvalho, há três dimensões na literatura: a metalinguística (de que a poesia é o exemplo mais significativo), a representação do humano (exemplificado, sobretudo, pelo drama) e a fabulação (de que se ocupa de preferência o romance). Seguindo o raciocínio desenvolvido pelo linguista, um bom filósofo, ainda que excelente escritor, ocupa um lugar periférico na literatura pela ausência de fabulação. Sendo assim, o aforismo estaria mais próximo da filosofia do que da literatura, se não tivesse poesia. Agora, se um aforismo apresenta a dimensão metalinguística, com imagens poéticas, ele é, sim, literatura. Como exemplo, José Augusto Carvalho cita Pascal, Nietzsche e o Marquês de Maricá que escreveram pensamentos (aforismos), muito deles extremamente poéticos.
"Entre nós e o inferno ou o céu não há senão o entremeio da vida, que é
a coisa mais frágil do mundo". (Pascal)
Talvez a dificuldade em conceituar o gênero aforismo tenha a ver com sua enorme pretensão de conceituar as coisas. Afinal, "quem é que poderia desejar definir amplos e complexos conceitos através de pequenas sentenças ou parágrafos?". Mas eis uma resposta que, à primeira vista, se mostra paradoxal: quase todo mundo tem essa pretensão: escritores, filósofos, médicos, economistas, religiosos, políticos e, atualmente, uma enorme quantidade de piadistas, publicitários, twitteiros e microcontistas. Mas esse é um ponto ao qual retornaremos mais adiante.
Entretanto nem sempre o aforismo pretende o absoluto.
A simples construção do aforismo pode afastá-lo de se impor como uma afirmação categórica, propondo assim um "talvez", uma "opção". Vejamos este aforismo do poeta Antonio Porchia: "Hay caídos que no se levantan para no volver a caer". O mesmo nos chama a atenção no aforismo "Vingança", de Drummond: "Há indivíduos que só perdoam as ofensas depois de se vingarem delas". A construção desses dois aforismos pressupõe a existência de possibilidade.
Consciente dessa desconstrução conceitual, Drummond nos diz que seus aforismos seriam "uma" forma de interpretação da realidade, e não "a" forma de interpretação da realidade: "Assim como os antigos moralistas escreviam máximas, deu-me vontade de escrever o que se poderia chamar de mínimas, ou seja, alguma coisa que, ajustada às limitações do meu engenho, traduzisse um tipo de experiência vivida, que não chega a alcançar a sabedoria mas que, de qualquer modo, é resultado de viver".
Baseado nos exemplos acima, torna-se viável a recente proposta do aforista mexicano Ángel-Lara que, contrariando o conceito de ser o aforismo um gênero necessariamente fechado e definitivo, propõe que nem todos os aforismos devam ser classificados como tendo um "efeito fechado". De acordo com o aforista, é possível identificar a existência de aforismos com um "efeito aberto", aforismos que desencadeiam um "movimento intelectual, tornando-se uma força ativa que desperta no leitor um movimento, um efeito de um despertar reflexivo — um efeito de abertura".
Seguindo os passos propostos por Ángel-Lara, é possível encontrar vários textos aforísticos que exemplificam essa abertura:
"¡Ah! ¡Si pudiéramos arrepentirnos antes!". (José Narosky)
e
"Tú crees que me matas. Yo creo que te suicidas". (Antonio Porchia)
É evidente o efeito desestabilizador desses aforismos. Ambos, de alguma forma, perturbam o nosso modo normal de ver as coisas: seja por uma transitividade aberta, no primeiro caso, seja pela subversão da oposição de um lugar comum entre a verdade e a mentira no aforismo de Porchia. "Fazendo o que não é completamente óbvio, cada aforismo pode nos levar a repensar ou a perguntar sobre algo que está além do próprio texto".
Aforismo e filosofia
Os aforismos, como dito anteriormente, têm-se mostrado de grande serventia para os filósofos.
Como na literatura, pode-se dizer que há duas grandes tendências na escrita filosófica: os que se utilizam dos discursos longos e os que se apoiam em discursos curtos.
Os partidários dos textos longos são aqueles autores que baseiam sua obra em tratados extensos e estruturados em capítulos: Aristóteles, Platão, São Tomás de Aquino, Spinoza, Kant, Hegel, Marx, Bergson ou Sartre. Estes tiveram já no primórdio da filosofia um opositor famoso: Sócrates, que se utilizou da dialética para se contrapor aos seus rivais — os Sofistas.
Por outro lado, quando analisamos os filósofos que se utilizaram dos textos fragmentários, é necessário salientar que muitos não o fizeram de forma consciente, como é o caso de Voltaire; ou nos dão uma falsa impressão de o terem feito devido a só terem chegado aos nossos dias fragmentos de sua obra, como é o caso de Heráclito.
Tal afirmativa não cabe aos filósofos que conscientemente basearam grande parte de sua obra em fragmentos, como foi o caso de Nietzsche, Leopardi, Cioran e até mesmo Shopenhauer e Wittgenstein que o fizeram em menor escala.
Houve filósofos inclusive, como é o caso de Schlegel, que dizia ser o aforismo a "verdadeira forma da Filosofia Universal". Schlegel acreditava que a feição fragmentária e sucinta dos aforismos tinha a capacidade de refletir, com exatidão, "a natureza mutável e aleatória do pensamento — e a experiência da própria vida". É de sua autoria uma das descrições mais originais de um aforismo: "Um fragmento, como uma obra de arte em miniatura, tem de estar inteiramente isolado do mundo circundante e ser completo em si mesmo como um porco-espinho".
Ou seja, únicos, completos, solitários e prontos a nos surpreender com o "toque" dos olhos.
Enquanto um pensamento exposto em um tratado não pode ser julgado, a menos que se percorra um caminho rigoroso e racional, um pensamento exposto em fragmentos se oferece ao julgamento imediato em cada fragmento. O fragmento não é parte de um mecanismo que não existe sem as outras peças, é um objeto de pensamento considerado isoladamente. Um objeto de meditação solitária. Algo como a kôanou — declaração enigmática nas escolas zen.
Como nos diz James Geary, autor de uma Breve história do aforismo, "os aforismos não são as frases vagas e cordiais" que nos habituamos a encontrar em cartões de Natal e livros de autoajuda. "São muito mais abruptos, confrontadores e subversivos. Ninguém se aconchega com um bom livro de aforismos; eles saltam da página e se desdobram dentro da pessoa". Eles se apresentam como "uma velha verdade esquecida", cumprindo o papel de gerar um choque de realidade. Seria como se, numa sessão de terapia com um analista da escola lacaniana, ao ouvir do analisado algo expressivo e merecedor de uma reflexão maior, o terapeuta interrompesse abruptamente a sessão e oferecesse a porta aberta para um paciente atônito.
Aforismo, provérbio e máxima
Um outro ponto capaz de gerar dúvida — e muitas vezes se configura como uma área de transição nebulosa — é o que diferencia um aforismo de um axioma, máxima, provérbio, chiste, ditado ou epigrama.
Conforme o filósofo J. S. Mill, o aforismo seria a forma apropriada para expressar o tipo de "sabedoria do Mundo" inerente a todas as épocas. Seria como os "dados brutos", a "bagagem de mão da literatura". A forma possível de ser um aprendizado coletivo sobre a natureza humana ao longo de sua história.
Uma das formas mais consagradas, já presente nos primórdios da história humana, com o intuito de propagação de uma mensagem moral, é o provérbio. Tradicionalmente uma mensagem curta, metafórica e transmitida de geração em geração, o provérbio difere do aforismo por não ter um cunho tão instrutivo, sendo muitas vezes um traço divertido e irônico, e, principalmente, por não ter um autor conhecido. Por refletir as circunstâncias de sua origem, o provérbio só se mantém vivo se pertinente ao longo do tempo. É o caso do velho ditado grego: "Em pedra que rola não cresce musgo" ou o tão propagado" água mole em pedra dura, tanto bate até que fura". Quando comparados aos provérbios, além do caráter apócrifo destes últimos, os aforismos são mais informativos e podem ser prosaicos ou poéticos.
Outra forma muito celebrada, que possui entre os brasileiros grandes mestres, é o chiste. Construção comum nas comunidades virtuais, o chiste, embora possa ser carregado de uma mensagem moral, tem como objetivo primeiro o riso. Seja consciente ou inconscientemente, transita mais confortavelmente no território da língua falada.
Também muito utilizadas ao longo dos tempos, e que remontam aos célebres moralistas franceses, são as máximas. Dentre os famosos "frasistas" podemos destacar o francês La Rochefoucauld e o escritor brasileiro Nélson Rodrigues. Tomemos como exemplo a frase abaixo deste último:
"Antigamente, o silêncio era dos imbecis; hoje, são os melhores que emudecem. O grito, a ênfase, o gesto, o punho cerrado estão com os idiotas de ambos os sexos".
A acidez, o pessimismo e ironia fina são características dos frasistas. Essa característica fica muito clara na seguinte máxima de La Rochefoucauld: "Nunca somos tão felizes nem tão infelizes quanto imaginamos".
Como podemos observar, entre a máxima e o aforismo existe algo de tênue e, muitas vezes, irrelevante.
Para que um aforismo se sustente com os próprios pés deve preencher alguns critérios sobre os quais trataremos de forma sucinta.
Em primeiro lugar deve ser breve e respeitar uma estrutura. Vejamos um exemplo de Pascal: "O silêncio eterno desses espaços infinitos me aterroriza".
Se "a brevidade é a alma da inteligência", como observou Shakespeare, no caso do aforismo, para que ele atinja seu objetivo — fixar-se na memória do leitor —, não basta ser curto, mas tem que incorporar algo de paradoxal, irônico, um jogo de palavras que gere uma sensação de desconforto, de anticlímax. Feito por indivíduos habituados a pensar a vida e a sociedade, deve voltar-se para leitores que vivenciem situações extremas e difíceis. Para isso necessita de força e de requinte estilístico,.
Essa estrutura necessária ao aforismo (suas características estilísticas e filosóficas) está intimamente relacionada com o pensamento do autor e sua concepção crítica, metafórica e psico-fisiológica da linguagem.
Deve ser mais Universal que original. E como Universal, traduzir, geralmente com um traço definitivo, as reflexões do aforista. Como as definições, o aforismo afirma mais que discute. Tomemos o aforismo de Samuel Johnson: "O patriotismo é o último refúgio de um canalha".
Voltemos novamente nossos olhos para o traço pretensioso do texto. Não necessariamente o aforismo está correto, mas ele atinge seu objetivo: ser impactante, gerar a reflexão. Como afirma Novalis: "Para conhecer a verdade corretamente, deve-se polemizá-la".
E este é um traço fundamental no aforismo aos olhos do escritor e político inglês Francis Bacon: "Por representarem um conhecimento fragmentado, os aforismos realmente convidam os homens a indagar mais".
Outro aspecto indispensável, que pode definir o tipo de público interessado em sua leitura, é que o aforismo busca mais a conclusão que a simplicidade. Ser conciso e complexo. Diz-nos Chamfort: "A sorte, para chegar até mim, tem de passar pelas condições que o meu caráter lhe impõe".
A brevidade não é necessariamente simples.
O aforismo é pessoal e muitas vezes amargo. Por tratar-se de fragmentos que objetivam a reflexão, há de se evitar o frescor que remete ao prazer furtivo e transitório. O que se busca em um aforismo bem elaborado é a transcendência possível na memória.
E um dos aforistas que melhor representa esse traço estilístico é Karl Kraus a nos lembrar sobre "a fogueira das futilidades" do Mundo moderno: "Como são poderosos os costumes sociais! Apenas uma teia de aranha se estende sobre o vulcão, no entanto ele se abstém de entrar em erupção".
Como no caso das máximas, o estilo aforístico também pode se caracterizar pela ironia e pelo senso de humor, bem como pela presença de vários dispositivos retóricos como antítese, paralelismo, proporção, oximoro, metáfora e, como dito anteriormente, o paradoxo. Tudo isso de maneira concisa e enfática para abordar essa matriz de oposições. Vejamos alguns exemplos:
"Todo mundo nasce sincero e morre enganado".
(paralelismo - Lucde de Clapiers)
"Uma única morte é uma tragédia, um milhão de mortes é estatística".
(hipérbole – Josef Stalin)
"Don't die until you are dead".
(aliteração - Elbert Hubbard)
"Todos os animais exceto o homem sabem que o máximo da vida
é apreciá-la". (ironia – Samuel Batler)
"Ninguém sabe se a morte, que as pessoas temem ser o maior mal,
pode não ser o maior bem". (oximoro – Platão)
Por fim, pressupondo o traço filosófico que já se mostrou claro, resta dizer da surpresa, do desvio do óbvio que marca um grande aforismo, de uma certa ambiguidade. Para isso recordamos o aforista italiano, naturalizado argentino, Antonio Porchia. Aforista brilhante, Porchia soube como poucos aplicar um toque divino aos aforismos: "Creio em Deus. Não por mim. Muito menos por ele. Creio em Deus pelos homens que creem em Deus".
Essa mesma construção silogística foi praticada por muitos aforistas célebres. Caso do Chateaubriand ao nos levar do extremo do romantismo ao total desengano: "Enquanto o coração alberga desejos, o espírito guarda ilusões".
Aforismo: Humano, demasiadamente humano
Se entendermos ser a vida mais irônica que as palavras, poderemos perceber o quanto é adequado o aforismo à condição da vida humana.
Blanchot nos diz da obscura violência dos aforismos.
Bertrand Russsell, em entrevista ao programa "Face a Face" da BBC de Londres, em 1959, quando indagado sobre quais mensagens gostaria de deixar para a posterioridade, disse que gostaria de deixar duas mensagens, uma intelectual e outra moral. A mensagem intelectual é: "Quando está estudando um assunto, ou considerando alguma filosofia, pergunte a si mesmo, somente, quais são os fatos". E a moral: "Qual é a verdade que os fatos revelam quando analisamos a potencial utilização dos aforismos?".
A emoção quando nos deparamos com o aforismo utilizado por Tolstói para abrir seu romance Anna Kariênina: "Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira", não pode nos desviar da discussão de um outro aspecto referente à escrita aforística — sua relação e aplicação no ensino e na veiculação de preceitos ideológicos. Não podemos deixar que aspectos estéticos ligados à literatura nos desviem de uma análise da aplicabilidade do texto aforístico no mundo real.
Em A revolução dos bichos, George Orwell nos apresenta uma situação distópica, que ilustra a transformação de um tratado filosófico (a obra de Karl Marx) em breves textos aforísticos formatados por Stálin como uma "cartilha doutrinatória". Em uma parede do fundo do Celeiro, os lideres da revolução — no caso encabeçados pelo porco Bola de Neve (que remete a Trotsky) — escrevem os "7 mandamentos" a serem seguidos pelos bichos insurgidos. Em um determinado momento, tudo se transforma em uma única máxima: "Quatro patas é bom, duas patas é ruim...". Nesse instante, esse aforismo excludente define a igualdade entre os bichos e define o homem — ser bípede — como seu rival. Mas tudo evolui e, quando os líderes revolucionários se encontram confortavelmente instalados no poder, agora encabeçados pelo porco Napoleão, ocorre que a máxima é reescrita na parede do celeiro: "Todos os bichos são iguais, mas alguns bichos são mais iguais que outros".
Significativamente, a subversão ou reescrita da máxima ou provérbio é reservada aos personagens cujo status social é superior.
Esse é um traço que merece a atenção quando se discutem os aforismos. Sua utilização com fins doutrinários, visando à manutenção do status quo; massificação de uma ideologia; uniformização e simplificação de uma moral desejada. Ela possui a capacidade de encarnar e sofrer o efeito do detentor do poder. Ao leitor de aforismos cabe estar atento para o fato de que "certas bocas não vestem bem as palavras" e ao aforista evitar ser o "aliado inteligente dos seus próprios coveiros"...
E, se é dado ao leitor conhecer criador e criatura, cabe recorrer a uma reflexão do jovem Sartre ao nos dizer sobre a incoerência humana, exemplificada pela figura de seu avô: (...) Estava preparado, para admitir — se me encontrasse em idade de compreendê-las — todas as máximas de direita que um velho de esquerda me ensinava através de sua conduta: que a Verdade e a Fábula são uma e mesma coisa, que é preciso representar a paixão para senti-la, que o homem é um ser de cerimônia".
A escrita aforística é um retrato, não do singular, mas das características e valores da coletividade. E como podemos analisá-la neste princípio de século?
Aforismo: um olhar renovado
Para uma correta análise tanto quantitativa quanto da relevância da produção aforística no final do século XX e inicio do corrente século, há de se ter cuidado com o viés imposto pela fonte consultada. Se buscarmos no mercado editorial habitual, teremos dificuldades — ao menos no mercado brasileiro — de encontrar publicação de livros de novos autores seriamente comprometidos com esse gênero literário. Entretanto, se buscarmos nas redes sociais, encontraremos muitos autores que, seja por questões pessoais, seja por circunstâncias, como a necessidade de contenção decorrente do espaço exíguo, se manifestam com aforismos.
O surgimento de muitos escritores altamente dotados para elaboração de textos breves e pungentes indica que a sociedade pós-moderna é uma fonte de inspiração infinita para os aforistas. Nas palavras de Quignard existe em cada início de século um "appétit de dire ou de penser", como se cada novo século sentisse o desejo ou a necessidade de afirmar-se, para construir uma autoridade.
"Le temps politique comme le temps littéraire est un
éternel retour". (Maurice Blanchot)
Isso demonstra nosso infortúnio coletivo. Essa "abundância de material" reflete a desintegração do Estado e a crise econômica que provocam outras crises (sobretudo, moral) que aumentaram significativamente a produção de aforismos,. E isso é absolutamente esperado já que o aforismo, em sua essência, sempre carrega algum tipo de sabedoria a "picar a loucura humana", a nos despertar o senso de incoerência e a falibilidade de nossa consciência facilmente moldável aos nosso interesses.
Uma das razões da popularidade do aforismo é que ele não representa apenas o espírito de um homem (isto é, seu autor), mas também o espírito comunitário (sua fonte de inspiração). Dessa forma, o aforismo torna-se um elo possível entre partes separadas da comunidade envolvidas de maneiras distintas nos processos sociais.
E por que é dificil publicar um livro de aforismos? Os editores preferem os romances. Os críticos consideram que eles poderiam escrever eles mesmos aforismos idênticos — desqualificado-os como literatura. Os leitores consideram um despedício e uma repetição, palimpsestos reescritos à quinta potência, mais apropriado ao território do virtual, de materiais didáticos ou, no máximo, às páginas intelectoides de revistas populares,-. Usando das palavras de Dominique Noguez: "On ne peut les sauver qu'en les prenant pour ce qu'ils sont: des flocons de grâce tombés des cieux noirs de la mélancolie, de la sagesse en miettes, la vie en puzzle, une Voie lactée minuscule brillant comme du mica".
Mas algo mais ocorreu neste inicio de século que fez não só com que autores se interessassem especificamente pelos aforismos, mas também que os romancistas e contistas se encaminhassem para uma escrita com as características que definem o aforismo: a busca da brevidade. Os críticos sugerem sobre a literatura narrativa contemporânea uma tendência ao "minimalismo", a uma escrita com tendência poética, que leva em consideração os limites a serem respeitados e para isso a necessidade de "apertar a malha". Além disso, ocorreu um aumento de autores preocupados com questões éticas em lugar da ênfase na originalidade.
Podemos também vislumbrar uma interferência inconsciente do tempo na restauração da estrutura aforística nos textos literários. A primazia do tempo, do instante, fez ressuscitar o minimalismo do texto, uma das principais características estruturais do aforismo.
E como isso pode ter acontecido? Basta observarmos os mecanismos utilizados na mídia atual. Basta observarmos a restrição de caracteres impostas no twitter; a necessidade de que os textos sejam sucintos para que possibilitem sua leitura nas postagens no facebook. Aqueles habituados a conferências em eventos científicos observem a profunda mudança ocorrida nos últimos 20 anos quando o tempo para apresentação de um determinado tema se tornou exíguo...
Outro aspecto é a existência de uma interposição entre imagem e texto. Há indivíduos que conduzem muito bem todos os recursos disponíveis (lembremos o sucesso atingido pelos artistas multimidiáticos).
Mas esse mínimo não reflete necessariamente outras características presentes nos aforismos. Não significa dizer que um microconto venha a tratar de um absoluto. Obviamente nosso momento é de particularidades, não de absolutos. Uma literatura voltada para seu próprio problema, ocupada em estetizar a realidade — a "arte pela arte".
De qualquer forma o fragmentário prevalece na literatura de nossos dias. E, dentro desse traço fragmentado de escrita, o aforismo reflete a relação, como nos diz Ranciére, entre a criação literária e a democracia, expondo o que há de contraditório e excessivo na palavra — gerando o desconforto necessário que leva à reflexão.
Mais que uma verdade definitiva, poderíamos considerar que um bom aforismo nos convida a participar do jogo infinito de uma questão. E, nesse contexto, mesmo como um objeto estético, como proposto por Rancière, o texto aforístico, fragmentário, pode funcionar como uma "partilha" do sensível, uma ferramenta interpretativa do que vivenciamos na sociedade.
Essa distinção entre valor e verificação é crucial para o funcionamento de um aforismo: privado de uma prova conclusiva ou que o negue, desprovido de um procedimento científico para isso, ele flutua dentro do reino do efêmero e relativo, evolutivo e transformador.
E, no sentido em que se afasta das ciências naturais, onde erroneamente se busca uma verdade única e definitiva, o aforismo se coloca como a forma potencialmente arquetípica de escrita da pós-modernidade. Na medida em que as ideias nos aforismos sejam formuladas com um espirito experimentalista em um terreno tão habituado ao dogma, ocorre à ideia ser compelida a um fluxo constante. O aforismo, pleno de significados desestabilizadores, cria o clima de instabilidade que propicia outros insights. Um exemplo de aforismo como forma fundamentalmente moderna: "Uma gaiola saiu à procura de um pássaro" (Kafka).
Nesse contexto, a aplicabilidade do aforismo se faz ainda mais amplo. A instabilidade a partir da qual deriva o poder criativo do aforismo serve como uma constante improvável; uma incerteza perene surge como o aspecto previsível de um gênero baseado na imprevisibilidade. Eis um novo dado que se impõe ao gênero: a experimentação substituindo, ou ao menos se colocando como uma opção, a simples replicação.
"O momento decisivo do desenvolvimento humano é perpétuo. Em torno, movimentam-se os espíritos revolucionários, os quais, em verdade,
buscam inutilmente de antemão tudo explicar, pois nada
definitivo ainda aconteceu". (Kafka)
Aforismo: um fim ou um meio?
Como podemos ver, existe no aforista — e isso se acentuou ainda mais a partir dos escritos de Kafka e outros aforistas do século XX — muito mais que uma pretensão de verdade.
O aforismo é "um pequeno monumento ao paradoxo da vida cotidiana", e sua simplicidade é apenas uma cobertura bem formulada para numerosas variações de significados. Mensagens escondidas no aforismo requerem um esforço do leitor, não apenas para procurar o significado das palavras e circunstâncias sociais, mas também para decodificar o que se encontra subentendido no contexto "não falado" pelo aforismo.
Embora ainda prevaleçam ensaios críticos que corroborem a visão de Auden de que "o aforista não discute ou explica, ele afirma; e se encontra implícito em sua afirmação a crença de que é mais sábio ou mais inteligente do que seus leitores". E o pior, continua Auden, é que, por detrás dos aforistas que adotam "um estilo folclórico, com dicção "democrática", se esconde um insuportável e covarde hipócrita. Um novo olhar tem-se voltado para algo que se mostra "aberto" nos aforismos, como nos mostra o aforismo da gaiola de Kafka, o que denota uma quebra dos paradigmas descritivos desse gênero e, muitas das vezes, discriminatórios — que enfatizam a pretensão do autor de aforismos.
"La volonté de sagesse a pour finalité non seulement d'élucider l'univers mais
aussi de fonder une éthique"23. (Bernard Grasset)
Como diz Clifton Fadiman, em oposição sutil a afirmativa de Auden: não é que o aforista acredite possuir uma inteligência superior aos seus leitores, mas sim que os leitores de fato compartilham tal atitude e entendimento com o aforista. "As declarações do aforista clássico não são emitidas de uma posição superior — por conseguinte, de risco. De fato, é por isso que os desfrutamos; Tanto o aforista como o leitor ocupam, por um instante, o poleiro seguro de superioridade".
Seja como for, é claro que uma atitude pretensiosa é comumente atribuída aos usuários desse tipo de texto escrito.
As máximas mais pungentes e paradoxais tendem a suscitar, pelo menos em muitos leitores, uma resposta intuitiva ou emotiva, uma reação imediata que caracteriza o impacto e a efetividade que se desejam atingir com uma máxima. Seria uma "resposta nervosa, uma perturbação que precede a cognição". E foi esse aspecto, aliado ao aspecto de "sentido fechado" do pensamento ou argumento, que levou muitos críticos a dizer: "Apesar de seu poder de induzir o choque do reconhecimento, o aforismo Pode ser um professor enganoso, simplesmente pela razão de que todos os seus circuitos paradoxalmente energizados são sistemas fechados". (Pagliaro).
Ao reconhecer essa propriedade do aforismo, Derrida nos propõe: "O aforismo diz a verdade na forma do último julgamento, e essa verdade leva à morte".
Não se deve ignorar esse traço constitutivo de grande parte dos aforismos. Mas, por outro lado, nossa visão atual não deve estar restrita a esse pressuposto estilístico.
Entender a evolução do aforismo implica entender as circunstâncias históricas e o impacto delas sobre os aforistas e seu estilo. Embora o aforismo tenha mantido uma integridade formal, é possível observar, partindo da proposta hipocrática, passando pelas máximas criadas e trabalhadas nos salões de Luis XIV, cruzando o século XIX de Nietszche e Maricá e desaguando no século XX com Cioran e Kafka, que transformações sutis ocorreram na sua constituição.
Cada tempo é um rio e cada margem apreende o segredo das águas.
Sim, em geral o aforismo se propõe "desestabilizar suavemente a ordem interna do estado de espírito do leitor (produzir um novo equilíbrio no qual o texto desempenha um papel)". Em outras palavras, ele se alimenta e se justifica na figura do leitor.
O aforista confia nisso e também no conluio de leitores que não esperam que os aforismos revelem seu significado, mas apenas forneçam algumas pistas com as quais possam trabalhar.
"Só tem convicções aquele que não aprofundou nada". (Emil Cioran)
Não se deve deixar que se esgotem as dúvidas; a pretensão da certeza "endireita", se transforma em dogmas.
"Não me peçam juízos definitivos numa hora em que tudo se desintegra".
(Mário da Silva Brito)
A justeza do estilo do aforismo se nutre do silêncio. Ele busca no cotidiano do leitor inserir um "espaço" para o silêncio. E o leitor deve se ocupar com esse silêncio, e escutar uma sonoridade distante nesse silêncio.
São as palavras pretensiosas ou não do aforismo, que observam o leitor com seus olhos atentos a lhe mostrar que nada mais sobra solucionável apenas com palavras.
Notas
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