BOBEIRA
Faz mais ou menos dois mil anos que se acredita que Judas se enforcou levado pelo remorso de ter traído seu Mestre.
Mas entre os companheiros apóstolos, já era sabido que seu remorso foi o de ter pedido apenas 30 moedas pelo serviço.
AFRESCO
Antes de pintar o apartamento para devolvê-lo ao senhorio, ela o chamou em casa e perguntou-lhe se gostaria de manter a poesia que ela escrevera numa das paredes da sala. Ele a leu várias vezes, caiu de amores, mudou-se para lá e manteve para sempre a poesia e a autora.
ARTES DE SACI
Desde pequeno ganhara esse apelido. Tinha as duas pernas, não fumava cachimbo nem usava gorro vermelho. Mas como escondia bem as coisas! Era alguém sentir falta das meias, do cachorro ou do tacho de goiabada, que já se sabia que era arte dele. Saci não afirmava nem negava, só fazia aquela cara alegre-safada que dizia tudo. E de nada adiantava apressá-lo: cinco minutos ou um mês depois, a coisa perdida aparecia. E tudo voltava ao normal, até outro sumiço.
Saci só não conseguiu devolver a Florinda, que ele escondeu no poço do terreno abandonado, quando a mãe dela a procurava pra lhe dar uma sova por ela ter ido pra rede com o Zecão, um dos peões da fazenda. Logo depois, Saci foi acometido de um dos ataques que o pegavam de jeito, e nunca mais se lembrou de onde havia escondido a amiga.
QUEIXAS
Ele mesmo dissera que se ela não estivesse satisfeita que fosse se queixar ao bispo. E ela foi. Contou tudo o que havia se passado entre eles: a acusação de ser ela a culpada dos pesadelos dele, os encontros só em dias sorteados no calendário, e não deixou de mencionar que ele não a queria com as unhas do pé pintadas de vermelho, como ela sempre usara até conhecê-lo. Quando terminou, o bispo apenas disse, com a voz baixa e calma de quem passara a vida a ouvir queixas: "Volte hoje à noite, às dez. E venha com as unhas dos pés pintadas de vermelho".
NO TABULEIRO
Na última vez que o rei comeu a rainha na torre, avisou-lhe que não tinha mais idade para tais estripulias. Gostava mesmo era da caça. Pegou seu cavalo branco, atravessou a ponte levadiça, baixada, e se embrenhou sozinho na floresta. Peão que é peão de verdade acompanha seu rei nas caçadas, leva suas armas e carrega as presas abatidas. Mas dessa vez, nenhum quis ir. Preferiram todos permanecer no castelo, fazendo fila na torre para comer a rainha, que adorava estripulias. E tudo nas barbas do bispo, que não comeu ninguém.
MAKTUB
Quatro reis magos foram avisados que uma criança muito especial havia nascido em Belém, num local de difícil acesso.
Cada um a seu jeito se preparou para a longa viagem, e três providenciaram presentes para levar ao recém-nascido.
O quarto deles pressentiu coisas ruins acontecendo na vida daquela criança. Sua intuição não mostrava muitos detalhes, mas não gostou do que sentiu. Como oferenda ao menino, resolveu levar galhos de arruda, pé de coelho, uma figa e amuletos contra mau olhado, cercando o mal por todos os lados.
Mas como ele sempre se confundia com mapas e não viu a estrela no momento em que ela mostrava a direção, perdeu-se pelo caminho, não conheceu a criança e não pôde entregar seus presentes.
Deu no que deu.
DESPERDÍCIO
Mais uma vez ela desembestou ladeira abaixo quando ouviu o apito do trem postal. Mais uma vez não veio a carta prometida e esperada há tantos anos. Na estação já sabiam por que ela estava ali e torciam para que recebesse logo a carta. Quando recebeu, estava assinada pelo jovem ajudante do chefe da estação, que se apaixonara por aquela menina pronta para o amor. Não foi correspondido. Ela continuou esperando a carta do outro, que nunca escreveu e já nem se lembrava que ela existia.
O AMOR É LINDO
Seu amor e uma cabana à beira-mar é o que basta para eu viver feliz com você.
Mas eventualmente também um binóculo, para quando seu amor acabar e eu ficar a ver navios pela janela de nossa cabana.
REFLEXO
Galinhou o quanto pôde, solteiro, casado. Eu, à èspera. Mijou fora do penico, levou um chute da mulher, foi descartado. Eu, à espera. Continuou na galinhagem, mal olhava para mim, e quando olhava não me via. Pensei em rodar a baiana, usar purpurina, fazer dança do ventre. Só pensei, e continuei à espera. Um dia, me enxergou. Me abordou, me cantou, me tocou, disse que eu era a definitiva. Olhei e não o reconheci. Estava triste, solitário, gasto. Não senti nada. Pediu que o aceitasse. Não senti nada. De tanto ficar à espera, desaprendi a olhar para mim. Descobri que também estava gasta, triste, solitária.
Dei-lhe as costas como quem quebra um espelho impertinente.
O BOTÃO
Era um antigo prédio comercial em Copacabana, que Lucimar frequentava para ir à depiladora, no sétimo andar. E sempre notava que o botão 12 do elevador estava muito mais gasto que os outros, como se fosse o andar mais procurado. O fato lhe chamou a atenção (sempre reparava em coisas que em geral só a ela intrigavam). Chegou a comentar com sua depiladora, que respondeu que nunca havia reparado nos botões.
Nesse mesmo dia, na saída, Lucimar não desceu ao térreo. Foi ao 12º para matar a curiosidade. Deparou-se com um terraço limpíssimo. Nem placas de aviso nem material de limpeza nem gente nem gatos. Nada. Apenas silêncio e alguns urubus pousados quietamente na mureta que cercava o local. Ainda ficou algum tempo, sem entender direito onde estava e a aflição que sentia.
Saiu do terraço com uma pontinha de frustração por não conseguir elucidar seu pressentimento. Mas entrando no elevador, a surpresa: o botão 12 estava novinho, como se nunca tivesse sido tocado por ninguém. E o do andar de sua depiladora estava praticamente apagado, como o mais visitado do prédio.
OSMOSE
Entrou um inseto no meu ouvido direito. Não que o lado faça diferença, mas quero ser fiel aos fatos. Entrou e lá se encontra até hoje. Tem algumas semanas que isso aconteceu e a essas alturas suponho que já esteja morto, porque se vivo estivesse, pelo menos daria para eu ouvir seu zumbido de desespero ou algum movimento. E não sinto nada.
Eu estava quase dormindo, com o lado esquerdo do rosto encostado no travesseiro, quando ouvi um zumbido muito próximo. Instintivamente fiz o gesto natural de espantar o inseto e o zumbido tornou-se mais forte, provavelmente porque ele se desnorteou ao fugir do meu tapa. E foi aí que eu senti, concretamente, que ele estava na minha orelha. Espantei-o outra vez. Naquele momento o sono já tinha ido embora. Levantei-me com cócegas na orelha e corri para providenciar álcool, pensando que com o cheiro forte o mosquito sairia tonto. Engano meu. No que espremi dentro do ouvido o algodão encharcado, senti uma sensação engraçada, e só. Depois disso, mais nenhum sinal de vida no local.
Marquei hora no otorrino para ele examinar mais detalhadamente o local. Minha audição do lado direito está meio apagada e sinto desse lado um peso diferente do normal. Um peso generalizado que me dificulta a percepção de sons.
Meu medo é que ele seja ela e que estivesse prenha na hora do acidente. Vai que morreu, os filhotes nasceram durante sua agonia etílica, se adaptaram ao novo ambiente e se transportaram para meu cérebro, onde se reproduziram.
Também preciso definir o estranho som que às vezes emito quando falo. Um som arranhado, meio agudo, que pouco se assemelha à maneira como eu falava antes da chegada desse meu hóspede.
PRIMEIRAS NOÇÕES
— Primeiro se posicione atrás do fuzil, de maneira confortável, mas firme. Na hora do sufoco pode não dar tempo de escolher a melhor posição, mas pelo menos você tem que estar bem apoiada, em pé ou deitada, certo?
— Certo.
— Bom, uma das mãos vai sustentar o cano, que é muito pesado e tende a baixar.
— Tá bom.
— Mas não ponha a mão no cano, ela vai se queimar quando passar a munição.
— Então onde eu seguro?
— Mais pra trás, no guarda-mão, justamente por isso tem esse nome.
— Ah, tá.
— Agora encoste a soleira da coronha no ombro, e descanse a maçã do rosto na coronha, do jeito que eu estou fazendo.
— Assim?
— Isso mesmo. A sua mão desse mesmo lado vai segurar o punho do fuzil e o dedo indicador vai descansar na tecla do gatilho, pronta pra ser acionada.
— É a mesma coisa que apertar o gatilho?
— É, mas deixa isso pros cowboys. No nosso ofício nós dizemos acionar a tecla do gatilho. Bem devagar e continuamente, pra não perder o alvo com um movimento brusco. Entendeu?
— Acho que sim.
— Antes de subirmos aqui pro terraço você disse que estava com um pouco de medo, lembra?
— Lembro.
— E agora?
— Só um pouquinho, tá menos.
— Mais tarde, quando você sentir o cheiro da pólvora depois do seu primeiro tiro, vai ver muita coisa mudar.
— Como assim?
— Na hora você vai entender o que estou falando.
— Ah, é?
— Pode apostar. Bom, continuando. Afaste a tampinha da luneta e comece a procurar o alvo.
— Por que a luneta tem uma tampinha?
— Porque dependendo do local onde você se posicionar, o vidro da luneta vai dar reflexo e vão te localizar.
— Ah, entendi, isso não é bom... E quem a gente vai acertar?
— Ninguém. Hoje só estou te passando as dicas de posicionamento pra você ir se acostumando com o peso do fuzil e com a maneira de segurar sua arma.
— Só isso?
— Por enquanto, é.
— Mas então quando eu vou começar de verdade?
— Nessa profissão é preciso ter paciência e autocontrole, filha. Começar de verdade, só quando você fizer 11 anos.
dezembro, 2017
Ana Flores. Carioca, professora de Português e Literatura. Vinte anos lecionando na Escola Americana inspiraram a criação do livro didático Muito Prazer! Curso de Português do Brasil para estrangeiros, em 2 volumes. Publicou Corporco e outros contos (2003) e a tradução para o português de Sete conversas com Jorge Luis Borges (2009, entrevistas realizadas pelo autor argentino Fernando Sorrentino). Tem minicontos publicados no blogue Minguante, crônicas na Folha Carioca e no site do jornalista Marcio ABC. Prepara monografia para o Liceu Literário Português: Influência do Tupi-Guarani na toponímia fluminense.
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