buchada
a operação faca no peito
esta semana
que acontece no largo
próximo da sua casa
acaba de sangrar vários manifestantes
que reclamam que nem ao menos a semântica da ação foi respeitada
pois o alvo principal das fardas
foi o bucho dos participantes
bucho este que se espalhava pela praça
transformada num grande matadouro
era bucho pra todo lado
a buchada exposta
parecia de bode
parecia outras coisas também
aliás bucho é bucho e vice-versa
e os animais sangrando
após recolherem limparem os seus órgãos e recolocá-los nos seus respectivos lugares
grudaram as barrigas com fitas faixas ataduras
nestas horas é preciso estômago forte
esta é a principal regra para a sobrevivência quando se vai a uma manifestação
ontem hoje amanhã sempre
preciso repetir
sempre
e mesmo com algumas baixas
os manifestantes seguem firmes
preparam as faixas para a próxima manifestação
— não é o bucho das pessoas espalhado pela praça que vai impedir de
[continuarmos lutando por dignidade
dizia o letreiro no bucho de um dos participantes.
aula de cochilo
[oração para várias vozes]
tem horas que a gente não quer
mas é preciso cochilar
tem horas que a gente não gostaria
mas é preciso cochilar
tem horas que a gente não precisa
mas é preciso cochilar
tem horas que a gente não tem sono
mas é preciso cochilar
tem horas que a gente está exausto e com medo de dormir pra sempre
mas é preciso cochilar
tem horas que a situação não permite
mas é preciso cochilar
tem horas que sentimos vontade de sair correndo
mas é preciso cochilar
tem horas que o coração pesado sente
mas é preciso cochilar
tem horas que o corpo não dobra
mas é preciso cochilar
tem horas que se cochilar o carro pode parar na ribanceira
mas é preciso cochilar
tem horas que a vida está por um fio
mas é preciso cochilar
tem horas que o mundo cospe de raiva na tua cara
mas é preciso cochilar
tem horas que é preciso cochilar para que o corpo se mantenha
que seja
no fio de improviso que o cochilo tem com a morte.
cânone
e quando o poema
atingir a maior idade
a gente corta o cabelo
apara o bigode
faz a barba dele
coloca os calçados
a roupinha bem passada
e cheirosa da crítica
e dá um cargo nos anais
ou no cu da literatura.
corpos
isolados corpos distantes isolados corpos nus um pouco longe longe distantes bem mais que poucos corpos muito isolados tentando segurar extirpar da vida distantes talvez com medo talvez sempre com medo isolados no cadafalso de lado de quina corpos pra frente diz a placa distantes com as mãos frívolas calejadas atadas em degraus suspensos tempo tempo tempo suspensos tempo tempo tempo isolados como nunca como sempre coração atônito corpos vazados distantes com os olhos dourados na manteiga mel e pimenta de cheiro isolados marejando o que resta os corpos os conflitos as amenidades causando espasmos distantes sôfrego empapuçado na correnteza rodopios mais que muitos rodopios isolados em estado bruto brutíssimo corpos sentimentalizados ora dramatizados ora os dois ora distantes as horas tangem o galo canta fora do combinado quem combinou o que com quem pois ninguém desapareceu quando devia deveria o verbo a cortina do tablado os corpos nem tudo esticado frouxo na vitrola um sinal para o próximo ato distantes digerindo deglutindo o fígado ameaça a bílis o pâncreas o baço o estômago uma peneira isolados nada perto nada nada nada e não chega à margem o galho outro galho outros corpos que frutificam o mesmo o que se repete não há alegria distantes não obstante perto a fuligem que transforma o pulmão em dia noite resfolegado tramando para se manter o fio de memória atado na tornozeleira do pé esquerdo isolados bem distantes de tudo contudo soltos corpos com o arco das costas distantes das cores que dão alimento ao fosso quando isolados quando corpos quando distantes para desobstruir as veias o alimento a sujeira aquilo que quer parar o coração o coração o coração e eu aqui na esquina da porto alegre com a rio branco em um dia chuvoso olhando para o sinal de trânsito que me dá apenas cinco segundos para cruzar uma vida movimentada.
crematório
cremação pública,
o poste, o homem amarado
na praça, ali, no
latifúndio do estado
la crema de la crema
de la crema de la crema
os romanos de hoje
incendeiam e
incendiados
eufóricos gritam:
[fritam no asfalto o cu
o furico]
habemus césar
habemus papa
habemus hitler
habemus capital
que tal?
quando algo não vai bem
mal, o de sempre o habitual
o culpado é a sobra do real
o fora do quadro, da fotografia
que tu não viu no canal
afinal, a imagem do brasil
desde muito sempre
[igual surreal genial]
é meramente ilustrativa
e claro, passional
la crema de la crema
de la crema de la crema
o fogo agora
substituiu a guilhotina
que substituiu o fogo
que substituiu a guilhotina
que substituiu o fogo
que substituiu a guilhotina
que substituiu o fogo
que substituiu a guilhotina
que substituiu o fogo
que substituiu a guilhotina...
la crema de la crema
de la crema de la crema
o menino
filho do estupro
de pais e de mães fornicados
no simplório de sua educação
se diverte acrescentando
um graveto na história
para no (seu) futuro
in glória
quando achar que se sentiu lesado
heroico brado retumbante
encontrar no povo o mesmo culpado
e substituir o método
a guilhotina pelo fogo
ou o fogo pela guilhotina
e assim
[massa de manobra]
fazer girar a máquina do estado
o açougue humano
a outra a mesma
a eterna (e gravata) chacina.
[Esse poema pode ser ouvido aqui]
interditos
quando faço companhia
para os móveis da casa
e eles me espremem
os sonhos contra a parede
vou pra sacada do prédio
arremessar saudades
e do alto do destrambelho
da incerteza dos olhos
vendo a vida nublada
apenas escombros cinzas ruínas pó
me sinto ainda mais espremido
no bagaço do corpo
e não ouço respostas
não ouço não não ouço
do mesmo modo que não ouço os outros
quando sentem saudades de mim se é que sentem
as frequências nem sempre se cruzam
talvez deveria assumir que arremesso egoísmos
pintados de outra coisa
para agradar a um eu
de olhos estarrecidos
com um mundo fadado
bruto bruto gemo
e num silêncio caudaloso
volto para o aconchego com o nada
onde bebo garrafas de vinho
a espera da morte que não chega
e que por não chegar me dá
a oportunidade de na noite seguinte
na que danço com os móveis
arremessar outras coisas
mas que é claro não o faço
pois o egoísmo que mora ao lado
mora junto e se estatela no piso
como um copo que cai e fere o desconhecido
e nos arrebenta os interditos que somos.
lotação
[trecho]
há um homem chorando no lotação
na sétima viagem o
ônibus desatina e silencia
com o solavanco último
curva breque brusco
todos se assustam
se acentua o tardio e os
confusos se alteram
descem palpites
conversas
conversos
desconexos
ditirambos ora
mais narrativos ora
soluços
soluços
soluços
outro carro chega
para rebocá-lo
outro para saborea-lo
amassa que dá
o trauma fornicado
várias vezes
segue para a garagem da empresa
o homem não desceu
acho que não sentiu o
solavanco nem os
soluços muito menos o
ônibus quebrado
isso é o de menos
o ônibus segue
o homem corda
a vida também
aperta
frouxa um pouco
aperta
frouxa de novo
aperta
tem horas que o soluço quer pular pra fora da boca e não consegue
aperta
há um homem ali
bem ali e bem aqui não há alternativa
do ladinho talvez
apenas talvez
os asilos seguem determinados
pelo surto do dia
o moço da empresa
chamou a polícia para retirá-lo
[precisa fazer a manutenção]
a polícia não veio
o jornal também não
ufa ufa ufa várias vezes ufa
o padre junto com a ONG não
não há reclame
nem propaganda
a engrenagem enferrujou
a vida desidratou o corpo
o simbólico o mantém respirando ou
mantém as sinuosidades
intactas
há um homem chorando no lotação
que não tem mais conserto
aproveitaram o óbvio
no novo ferro velho da cidade
o mundo ali fundo bem no fundo dali
não tem mais concerto
fino fútil delgado
ninguém se afina mais
bem nem mas ali
os calos calam
há um homem
morando no lotação.
no elevador
era um animal que corria
dentro de um elevador
em círculos com a couraça coração
que mordia o peito mole bem mole
corria esbaforido corria e o corpo
como uma mola ora descia ora subia
era rápido o suficiente para dar bafo do meio
morno pro gelado na própria nuca
gesticulava sinceridades e convertia
os tombos da vida em hematomas
no elevador que parecia um cubo mágico
ele pulava entre o nada e o absurdo
de vez em quando pelo alçapão não
claro que não pelo porão também não
e quando a sineta anunciava a próxima estação
gritava junto como um animal que era
um dia o elevador chegou ao térreo
e a servente do dia perguntou:
plástico vidro metal papel ou orgânico?
ele não teve tempo de responder
a servente retrucou
[como se fosse em um alto-falante]
lixeira marrom
a porta se fechou rapidamente
dele não se teve mais notícia
ela seguiu limpando o hall de entrada e saída do prédio.
quebra-cabeça
os olhos caíram da face
quicaram sobre a mesa
sem sintonia alg'
uma
duas
três
quatro
cinco e
quicaram no chão
seis
sete vezes
o último quique
já em cima do tapete:
um olho voltado pra TV e o outro pra debaixo do sofá
[o narrador cuspiu veias no desenho
animado e no desânimo
da vida exposta
fratura]
ele gritou
— agora o nariz!!!
o nariz caiu atabalhoadamente
sem leveza
sem delicadeza
apenas caiu
parecia gripado
ploft!!!
ele
— as orelhas!!!
elas desgrudaram mansamente
deram um rasante na sala
chegaram roçar o pelo do tapete
voaram sóbrias
pousaram no corrimão da sacada
ficaram olhando para o desconhecido
num silêncio kafkiano
a booooooocaaaaaaaa!!!
pra se desfazer dela precisou gritar
queria que o último grito
zunisse no espaço
e reverberasse
mesmo que com
medo de atrapalhar
o improviso das orelhas
e o absorto dos olhos
[gesto influenciado pelo que
remonta a vida
na estupidez próxima
colada no corpo
fora de fora
filme talvez]
a boca no chão
indefesa
sendo perseguida por uma
gosmenta língua lesma losna
e uma dentadura
gengiva grossa e mal cuidada...
aí ergueu os braços e ficou pensando
em uma maneira de se desfazer das mãos
perder os sentidos de vez por todas
e pra acabar com o quinto
usou o cesto
mãos e pés calejados
braços e pernas
tendinites e bursites às favas
quando achou que tudo havia terminado
(percebeu)
estava de pau duro...
lembrou da primeira vez que
enfrentou a escuridão desse jeito
se viu
com o olho da TV
[depois que uma das orelhas deu um rasante e lhe mudou o horizonte]
um idiota completo
suando frio
esperando que o tempo não se demorasse
mais que os vestígios
deve estar ainda lá agora
olhando o desmonte
[afinal os coros replicam]
tentando ser outra coisa
qualquer menos do que imaginou
para que o trauma
no preto do silêncio
se faça inverno.
baile funk
este é o poema do cume
[do erudito ao não dito
da cumeeira sem beira
que do cume agito
acima abaixo
a fora e a dentro
de um pretendente
pra sempre
a ser gente]
do cume lado do presidente
que do cume fala
que do cume governa
que do cume só pra
com um cálice
cálice cálice
o cume trouxe
estrume lado
na mão
o cume lado do presidente
moro do paraná
toda vez que sobe o cume
desce o cume lado
o cume lado desce
e do cume lado moro
a galope o golpe
do cume vaza
documentado
ou do cu mentido
é o cúmulo
é o cu mula
é o cume tido
é o cume moro
é o cume tendo
tendo sido
tendencioso
ver-te merda todo o dia
do cume o presidente
num país desmoronado
desmoronando e dançando
com o verde amarelo da colônia
com cheiro de cume engana
pois quem cunha uma moeda do safado
do safado uma moeda cunha
este é o poema do cume
pra dançar no baile funk
no palanque do planalto
do cume tendo e aprovando
o passado danação
com a chibata no coro
com o coro no tronco
entoando a manchete da tv
repetida como refrão
vai vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai
vai vai vai
vai vai...
dezembro, 2017
Demétrio Panarotto nasceu em Chapecó/SC, em 1969. É doutor em Literatura (UFSC) e professor universitário (UNISUL). Músico, poeta, escritor e idealizador do programa Quinta Maldita (na webrádio Desterro Cultural). Publicou, dentre outros, Mas é isso, um acontecimento [Editora da Casa, 2008, poemas]; Qual Sertão, Euclides da Cunha e Tom Zé [Lumme Editor, Móbile, 2009, livro/ensaio]; Poema da Maria 3D [Coleção Formas Breves, e-galáxia, 2015, e-book, conto]; Ares-Condicionados [Nave Editora, 2015, contos]; A de Antônia [Miríade, 2016, infantil]; No Puteiro [Butecanis Editora Cabocla, 2016, poemas]; Café com Boceta [Butecanis Editora Cabocla, 2017, poemas] mais alguns discos e alguns filmes. Reside em Florianópolis/SC.
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