Bênção
Hoje uma luz nova pareceu cobrir os mirantes da cidade
e acentuar o brilho acinzentado da baía de São Marcos,
despertar gemidos de dor e luxúria entre buzinas de ônibus,
interjeições do vendedor de frutas — ombro pejado de açúcares
passo de equilibrista sobre o fio de outra manhã,
misericórdia visível nas folhas de amendoeira avermelhando o caminho.
Teus passos
Quando a tarde cai, teus passos rompem
a quietude fria do meu peito,
és promessa de luz que me ampara
à beira do devir — cercado de bromélias e de espanto.
O rodar da chave na porta, a casa reabitada por tua presença
traz-me o verso inconcluso à tona das frases,
tinge de ouro e púrpura o silêncio.
Cicatriz
O amor se partiu em lascas de sílex
dor primitiva que ainda ecoa pela web
cegueira insana, rota possibilidade de alegria
cacos de vidro espalhados, restos de luz que se apagam.
Contigo fundaria um reino onde a noite jamais nos alcançasse,
e a vida se regozijasse em nunca envelhecer.
Filogenia
Vestígio de avós, enigma de renda
colares de contas, bilros, bordados
mar que se cruza, adivinhação.
Não sei fazer doce de espécie
pago impostos, reclamo direitos
não nasci em Itabira, mas luto com palavras
não tive ouro, não tive gado, não tive fazendas
e, vez por outra, preciso ser dura, de mármore
sensível ao mais ingênuo risco.
Amanhecer
Quando despertas, todas as formas vivas abrem à manhã o quarto frio
peixes se movem no fundo oceanário dos meus olhos
o dia invade o espelho, refletindo flores e sementes
palavras trespassam a dor, unguento milagroso
louça antiga amparada antes de espatifar-se
seda de raro fulgor, teia translúcida e tenaz.
Degelo
Assim decifram-se palimpsestos
enquanto decifro enigmas abarrotados de frases.
Crispa-se a pele ao frêmito da luz em pleno corpo
reconhecendo vestígios que o esquecimento baniu,
transmuda-se em verso claro a noite ensandecida.
Pego-me escolhendo sedas, berloques, estamparias
com a alegria que arde nas tangerinas maduras.
Sobrado da Rua do Trapiche
Nem o musgo é capaz de trespassar a angústia
que os cômodos vazios exalam
ou mesmo as roupas penduradas na sacada
disputando luz com insetos e lamúrias.
Ali as horas se encantam em fermentar o ócio
de tudo o que se move e ainda pulsa.
A vida só espera um pouco
nos meninos que soltam papagaios.
dezembro, 2017
Lenita Estrela de Sá nasceu em São Luís do Maranhão. Graduada em Letras e Direito, tem 13 livros publicados (alguns, de forma independente e outros, como parte de premiações literárias). Seu último livro, um volume de poesia intitulado Antídoto (7Letras), conta com a apresentação do poeta Salgado Maranhão. Tem poemas publicados nas revistas literárias "O Casulo" (São Paulo: Patuá, 2017) e "Gente de Palavra" (Rio Grande do Sul, 2017); e conto, na revista portuguesa "InComunidade" (2017, n. 62). Incluída por Rubens Jardim na série "As Mulheres Poetas" (São Paulo, 2016). É citada por Nely Novaes Coelho no Dicionário de Escritoras Brasileiras (São Paulo: Escrituras, 2002). Mantém o site literário www.estreladesa.com.br.
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