destino
acomodá-lo de bruços
sobre os joelhos
e com jatos mornos d'água
lavar com cuidado suas dobras
com as mãos em concha
guardar as orelhas e os olhos
do excesso de água
e da espuma do sabão
secá-lo
untá-lo
com óleos e talcos
vesti-lo
alimentá-lo
ignorar
o leite derramado
a vida íntima em pausa
em prol do seu desabrochar
enlevar-se
diante do seu sono
do primeiro passo
do primeiro dente
e esperar calmamente
que ele ignore seus sonhos
e despedace seu coração
a propósito de léonce roudet
para a emissão vigorosa de uma vogal é necessário
consumir vinte e quatro vírgulas e um decilitro de ar,
ou seja, somadas às consoantes são necessários
aproximadamente cem decilitros
de ar para emitir a palavra amor
isso é quase um suspiro
o culpado
sinto raiva mesmo é do amor
ajoelhado nos ladrilhos do banheiro
em flagrante felação
nem para exigir troca
o amor
entre os dedos do amor
e debaixo de suas unhas
há sangue seco
o amor goza
até com castelo de cartas
com bilhete de loteria
não premiado
o amor, esse puto,
esgotou seu último pedido
a minúscula nascente
que a ausência de convicção
havia plantado em meu peito
consolação
não importa
que este seja um outono perdido
entre as cicatrizes de meus joelhos
ou que, ao final da história,
você venha a ser o príncipe
e eu, maleficent
para nos colocar
de maneira assim tão vulnerável
diante de nós
é preciso esquecer
o quanto, ao final
os contos podem ser cruéis
coringa e arlequina não disfarçariam
suas pequenas imperfeições
para dissimular o ridículo
das fantasias de amor
mas tão loucos quanto nós
dançariam diante do espelho
a cada sinal de desejo
ainda bem que não há dublês
para as paixões de homens
e mulheres comuns
ainda bem que se esquece
que o molhar dos lábios
e a mordida dos lóbulos
são cenas repetidas
em todas as histórias de amor
condição necessária
você sorri enquanto caminha
e pensa: "no verão o amanhecer
pode ser uma coisa alucinante"
em breve ouviremos
os proclamas do outono
se você poderá dormir
trocar de roupas, trabalhar
e seguir com ninharias
é algo que me parece atroz
como é possível que se esqueça
das palavras nas velhas cartas
dos poemas em guardanapos
das canções que me dedicou?
não que eu não seja capaz
de me render, amor
mas era sublime
a intensidade em seus olhos
nem todo ouro do mundo
me traria de volta aquela sensação
se você decidisse, só um pouco,
acreditar no amor
poderia ter ficado
lembra? parava diante
de qualquer espelho
e nos achava lindos juntos
não é o fim da vida, eu sei
só dói quando me identifico
com as heroínas dos filmes de amor
e lembro-me de minha sina: preterida
mas por deus, como você supera
o fato de ter nos transformado
para sempre no fragmento
de uma promessa?
você coloca os óculos escuros
evita o sol, observa os pombos cagando
na estátua da praça da estação
e parece não entender
que o amor é um punhado de renúncia
e uma meia dúzia de dias felizes por mês
a frota do novo homem
vejam, irmãs, quem aporta agora no cais
aspirem para dentro de seus pulmões as embarcações
naufragadas em sítios fora do mapa
irmãs, sei que andamos cansadas de ser árvores
e galhos para esses filhos mamíferos cinquentenários
nossos joelhos dormentes de tanto levar ao colo os amantes
mas alegrem-se, ó minhas quatro amadas irmãs
eis que ele chega, prenhe, mas ainda não nascido
traz entre os dedos vínculo, intuição e benevolência
aquele a quem chamamos homem, o signo de uma raça
é tempo de lançar nossos olhos ao norte
e sorrir para a grande alegria que nos espera
um tempo em que as mãos nos representarão
e mãos, irmãs, não possuem sexo
do que se pode chamar de lar
cento e vinte
metros quadrados
decorados
piso ladrilhado
e eu com saudades
do coqueiro
eles irão contar para deus
dois metros de pele
milhões de poros
dois olhos
a boca
e um desconsolo
convulsivo choro
por esses meninos
sírios
palestinos
pagã
herdei pouca
ou nenhuma mitologia
de minha mãe
umbigos
unhas
cabelos
dentes
eram arrancados
e jogados fora
[sem rituais]
sagrado para mamãe era a fome
tradição
dar-me uma noite inteira
ao trabalho de parto
uma vida inteira
ao trabalho de parto
e por fim
parir minha mãe
língua afiada
a entregar-me tijolos
para construir
as paredes da masmorra
que eu ergo
com a alegria
de quem corrige a torre de pisa
shame
se sobrevivemos ao naufrágio
foi por tomar distância
da dança atônita
do olhar desesperado
daquele que sucumbiu às águas
ninguém conta
mas todo mundo sabe
descendência
tive dois filhos que não chegaram a nascer
tinham nome, sobrenome e um destino arrumadinho
de gêmeos vestindo uniforme
não viveram o suficiente para eu provar
como posso ser uma péssima mãe
decifrando os escombros que deixaram
noto com que voragem os queria aqui
porque para o amor não interessa ser o pior
o amor: ele quer é consumar-se
janeiro, 2018
Norma de Souza Lopes (Belo Horizonte/MG, 1971). É autora de De mim ninguém sai com fome (Patuá, 2017) e Borda (Patuá, 2014). Escreve o Norma Din.
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