É como se eu, ao resenhar este livro, desenvolvesse sentimentos por você, leitor, sem que você nunca soubesse de minha existência. E que o objeto do amor, ou seja, o ser amado, me fizesse permanecer exilado de minha vida segura e de sucesso — porém, incompleta e incômoda. É com este quadro em mente que o escritor alemão Thomas Mann (cuja mãe era brasileira) retrata os conflitos de seu protagonista, Aschenbach, na bela novela Morte em Veneza. É "uma espécie de vago desassossego" (alguém aí pensou no contemporâneo de Mann, Fernando Pessoa?) que tira o bem-sucedido escritor Gustav Von Aschenbach da apolínea Munique e o conduz para a dionisíaca Veneza. Os conflitos que perturbam o aparentemente resolvido Aschenbach não são resolvidos — são, aliás, reforçados na "viagem interior" que ele realiza à Veneza. E o título da novela já sugere a dimensão do destino que o aguarda na Itália.

O sucesso do qual Aschenbach desfruta na Alemanha não contribui para que ele construa uma estrutura de vida estável. Geneticamente, o protagonista carrega a racionalidade de uma vida regida por uma sistemática organização, já que seus antepassados "tinham sido oficiais, juízes, funcionários da administração, homens que haviam levado uma vida reta, decentemente parcimoniosa, a serviço do rei e do Estado". Sua obra literária reflete essa hereditariedade, pois é caracterizada por extremo rigor artístico, focada na perfeição da forma e na beleza ideal. No entanto, a estética cartesiana que lhe é imposta ("tinha extrema necessidade de disciplina"), e que ele reproduz, não deixa de ser um peso que Aschenbach carrega nos ombros e do qual procura se livrar. A viagem que ele faz, da racional Munique para a emocional Veneza, é o retrato mais evidente de um jogo de espelhos, simetricamente elaborado por Thomas Mann, que reflete conflitos internos e sociais de Aschenbach e de sua época. A dialética existencial na qual ele se encontra é o motor que o desloca da realização aparente para a aparência da realização. E a caótica Veneza se apresenta como um perfeito contraponto para a organizada Munique do início do século XX.

O nome do protagonista, em alemão, já oferece algumas pistas do dilema que vive. O substantivo próprio "Aschenbach" é formado pela justaposição de "Asch" (cinza) e "Bach" (riacho). Se, de um lado, existe um rio ("Bach"), um meio que aponta uma saída, um caminho a ser percorrido, essa estrada é cinzenta ("Asch"), sem cor e com ameaça de chuvas e trovoadas. A água do rio são suas emoções, reprimidas por uma postura racional e ascética. Veneza, com seus canais e o mar Adriático, contém a água por onde Aschenbach procura navegar sem jeito. As águas venezianas carregam o cheiro e o fatal vibrião do cólera, contaminando um ar acinzentado, cremando a vida. Mas o cego amor platônico não sente o cheiro da morte.

O prenúncio de um tempo nublado, cinzento, é ofuscado pelo início da novela, cujas primeiras cinco palavras apontam para a estação das flores: "Numa tarde de primavera". A narrativa, portanto, floresce com a ideia primaveril que perfuma a mente de Aschenbach, empurrando-o para fora de Munique, sua zona de desconforto interior. O deslocamento geográfico é consequência de uma necessidade de se movimentar, de buscar uma mudança, de se rejuvenescer. Aschenbach vive a tensão entre dualidades que o tornam uma pessoa intranquila: o artístico e o natural, a luta contra a passagem do tempo e a decadência do corpo. Aschenbach carrega ainda, com seus conflitos, o "Geistzeit" de um mundo às portas da Primeira Guerra Mundial, pois a doença traduz-se como metáfora de um mundo em agonia.

A arte de Aschenbach é fruto de dialética que ele personifica, pois, como define Mann no livro, "a fusão de uma escrupulosidade profissional austera com impulsos ardentes e obscuros fez surgir um artista, este artista especial". Ele, solitário e calado, encontra-se em uma busca que o equilibre e o complemente. Longe da Alemanha estruturada, Aschenbach, em Veneza, se questiona: "Que importam a arte e a virtude ante as vantagens do caos?". É nessa atmosfera cinzenta de caos organizado que ele se apaixona, em Veneza, por alguém diferentemente parecido com ele, que Aschenbach enxerga de forma espelhada: um "deus de faces ardentes", um jovem que é a "personificação da estética da beleza", o "Belo" (sim, grafado por Thomas Mann com letra maiúscula). O fato de se tratar de uma paixão homossexual apenas enfatiza seu conflito existencial, pois o "ser humano ama e respeita seu semelhante enquanto não tem condições de julgá-lo, e o desejo é produto de um conhecimento imperfeito", como afirma o narrador.

O incômodo existencial do calado Aschenbach encontra no silencioso diálogo com o belo e jovem rapaz uma sonoridade aguda que, por um lado, provoca uma autorrejeição por ele se enxergar mais velho quando vê o corpo do jovem; por outro lado, o sentimento platônico lhe restitui a frescura da juventude. Ironicamente, Aschenbach é cegado pelo sol da quente Veneza: "Não estava escrito que o sol desvia nossa atenção do intelectual para o sensível? Que ele entorpece e enfeitiça a razão e a memória de tal modo que a alma, entregue ao prazer, esquece inteiramente sua verdadeira condição e se apega surpresa e maravilhada ao mais belo dos objetos iluminados por ele?". O sol, em Veneza, é o vinho de Dionísio, que embriaga a razão de Aschenbach. Na Itália, ele vivencia o "lado B" do que ele experimenta na Alemanha. E, no gole que dá em seu mergulho onírico, se envenena com a desordem fatal. A morte é bela e sedutora (como em As Intermitências da Morte, de Saramago) e narcisistamente enganadora para Aschenbach.

A alternância entre a ordem e a desordem aparece, no processo de criação de Aschenbach, com sinais trocados em relação ao movimento que ele realiza ao sair de Munique e ir para Veneza, pois sua obra artística apresenta uma estética mais vanguardista, mais experimental no início, tornando-se conservadora conforme ele amadurece. Ele bane "de seu vocabulário toda expressão vulgar", e o Departamento de Ensino passa a incluir páginas de sua autoria nas antologias escolares oficialmente adotadas. Sua obra, inicialmente colorida e ensolarada, se torna cinzenta e burocrática. Em contrapartida, enquanto o artista envelhece, o homem rejuvenesce através do amor juvenil que vivencia.

Mergulhado em um oceano de dualidades, Aschenbach, no final, faz uma escolha mais latina do que germânica (talvez Freud tivesse buscado aqui uma explicação implícita no fato de Thomas Mann ser filho de uma brasileira), já que ele prefere o quente mar de Veneza à fria secura de Munique: "Amava o mar por razões profundas: pela necessidade de repouso do artista exausto que, assediado pela multiformidade das aparências, anseia por abrigar-se no seio da simplicidade, da imensidão, e por um pendor proibido, diametralmente oposto à sua tarefa e por isso mesmo tentador, para o indiviso, o desmedido, o eterno, para o nada".

Morte em Veneza é uma novela que se lê entre momentos secos e molhados. Aschenbach é um personagem de cujos poros escorrem estados líquidos que transmitem silenciosas palavras derretidas pelo efeito estufa de opostos que não se complementam.

 

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O livro: Thomas Mann. Trad. Herbert Caro e Mario Luiz Frungillo.

A morte em Veneza e Tonio Kröger.

São Paulo: Compnhia das Letras, 2015, 200 págs.

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março, 2018