Num passeio de retorno recente à minha cidade natal, passei pela calçada defronte de uma casa em que brinquei quando menino. Meu olhar se encompridou buscando alguma coisa que não estava nem nunca mais estará ali.
O que importa é que a casa tem para mim uma sedução que a transforma em símbolo. Seu silêncio, seu recato, sua singeleza, despertam em mim uma nostalgia do lar como categoria transcendente, o Lar cobiçado pelo pobre Harry Haller de O lobo da estepe, de Herman Hesse — pequeno-burguês, cheirando a limpeza, conforto, asseio, decência. Imagino o lar que não tenho, objeto de minha busca e fim de meu cansaço: o que foi um dia a minha casa.
Os móveis limpos cheiravam a óleo de peroba recém-passado, havia sombra, recolhimento, proteção, o rosto firme e martirizado de minha mãe, canários-da-terra "cabecinhas de fogo" no rancho do quintal, fogão de lenha, chão encerado, cuidado terno com coisas disparatadas como um ramo de palma benzido em Domingo de Ramos, um elefante de gesso vermelho, um rádio ABC sempre dando pane, uma bacia de banho enferrujada, uma cristaleira com peças baratas e bibelôs partidos.
Cedo demais para estas saudades? Não sei. Pressinto que passarei a minha vida procurando um sucedâneo desse Lar, empenhado em obter uma dignidade e uma paz que me parecem únicas, porque são as minhas.
E não era isso o que queria o Tônio Kröger, da novela homônima de Thomas Mann, que muitas vezes li? Ele tinha a vocação instável, "cigana", dos artistas, mas sentia uma saudade profunda da autêntica decência, da graça e da serenidade recatada desses pequenos mundos imóveis. Uma amiga — Lisavieta, a pintora — o chamava de "burguês errante". A precisão de tal definição o arrasava.
Tônio dizia temer o "demoníaco" da Arte. Mas também sabia que ser artista, se o que se busca é maior que a vida de todo o dia, é estar exilado da família humana, solitário, sempre incompreendido e rejeitado (pior quando educadamente) pelos sãos, pelos medianos, que atravessam a vida numa invejada bem-aventurança em que as contradições mais infernais não parecem encontrar abrigo. O que Kröger (ou Mann) parecia ignorar era que seu desejo de retorno ao "reino da amabilidade", sua impressão de uma superioridade inata nos pequeno-burgueses provincianos, figurinhas de um minueto rococó, suas contrições ante a pureza simbolizada por Hans Hansen e Ingeborg Holm eram ainda criações mentais, eram Arte, projeções de seu anseio e não realidades objetivas que não teriam sofrido contaminação pelo olho do artista. Um olhar mais acurado revelaria em seu mundo ideal a incultura, a intriga, a baixeza, a irracionalidade barata e o esteticismo «kitsch» dessas duas vocações irresistíveis para o ideal. Veria a rósea obtusidade e a hipocrisia robusta. Veria a repressão sexual, o desassossego oculto. Nada da grandeza monolítica e incorruptível de um mundo à parte, mas uma secreta dinâmica de inferno e porões obviamente freudianos.
Só mesmo em desejo cego o sonho de imobilidade resiste a uma análise honesta. Esperar por um mundo perfeito, isto é, adaptado às nossas idiossincrasias e imune às forças desagregadoras do real, é pura obstinação, ruína e embalsamento precoce. Mudamos, queiramos ou não, e, mesmo na mais rotineira das vidas, é possível observar a fluidez, a mutação, que ultrapassam as tentativas de manter um status quo psicológico, uma camisa de força de nostalgia e distanciamento olímpico.
Fernando Pessoa sonhava com uma "hora imóvel". Outros artistas de grande estatura demonstraram essa mesma nostalgia de uma paralisia ideal do Tempo, de uma pureza há muito perdida, uma pureza que em seus escritos apareceria mais como distorção irônica que como realidade. Estamos, como escritores, condenados a testemunhar escombros e a suspirar pelo inexequível. "O poeta é um ressentido e o mais são nuvens", escreveu Drummond.