Em Últimos & Derradeiros Almir Zarfeg apresenta uma poesia aguda, não raro lampejante, como se estivesse sendo esculpida a marteladas, no momento mesmo da leitura — textos rítmicos, rápidos e rasteiros, libertos da estrutura burocrática que retira o tônus lírico de qualquer estilo literário, sobremaneira o poético. Uma das características marcantes da poesia de A. Zarfeg é a organização intencional das palavras, às vezes aparentemente despretensiosas, porém, permeadas de diálogos, de deslocamentos rizomáticos, de metáforas e de musicalidade/sonoridade, decerto fruto das substanciais fruições travadas pelo autor com diferentes matrizes poéticas.
Obra polissêmica e multidimensional. Reduzi-la a uma única forma/estilo é tirar-lhe essa particularidade da escrita contemporânea, bem como das muitas possibilidades de leitura, pois a singularidade do livro consiste em sua multifacetação, em sua abertura ao Outro: ele caminha por vários territórios e em cada um retira e/ou finca uma bandeira. Nele se depreende a crise política, a metalinguagem, a liquidez do amor, o disparate vernacular, o pastiche, os subterfúgios psicológicos, o hedonismo fortuito, o intercâmbio linguístico, as utopias coletivas, as imagens oníricas.
Últimos & Derradeiros é menos uma busca pelo transcendente e mais uma autêntica e generosa maneira de a linguagem se mostrar alegre, viva, mutante e pulsante. A isso se somam, por causa e efeito, a lucidez do escritor e a ludicidade da escrita. Nietzsche já havia chamado a atenção para esse phatos positivo da Arte ao prestar homenagem à apoteose dos abismos dionisíacos que, em harmonia com a equilibração apolínea, representava a grande força artística, pelo menos na Grécia Antiga e nos primórdios do Renascimento.
Zarfeg é autor de uma poesia intensa, sinergética, que celebra os instantes, e não um guardião das melancolias em busca da suposta razão profunda da existência, como queria Samuel Beckett. As palavras dialogam com várias imagens do cotidiano; brincam, sorriem, provocam, incomodam até. Nesse sentido, a obra lembra as inesquecíveis epifanias de Clarice Lispector (exceto o seu existencialismo à Heidegger), a concisão e coloquialidade de Paulo Leminski ou ainda, recordando um poeta estrangeiro, dialoga com a fluidez simbólica do francês Charles Baudelaire e suas observações em torno da Paris da segunda metade do século XIX.
Com efeito, o que não falta em Últimos & Derradeiros é o olhar atento do observador (para si e para o mundo) tal como o flâneur — aquele que anda, que vê, que sente, que compara, que registra. Não foi exatamente isso o que o filósofo Walter Benjamim destacou em uma de suas principais obras, "Charles Baudelaire: um lírico no auge do século XIX"?
E por que não afirmar, a propósito da obra do autor de Últimos & Derradeiros, "Almir Zarfeg: um lírico no início do século XXI"? A comparação não parece exagerada quando se coteja o mundo contemporâneo à luz do lapso temporal e histórico que o separou das vitrines de Baudelaire e Rimbaud, há quase 200 anos!
Na poesia de A. Zarfeg é possível vislumbrar o desapego à forma pedante, classicista, quando não apelativa e intolerante de conceber a linguagem. Os signos são ao mesmo tempo tratados com lisura e adornados com a quantidade certa de prosa, de cotidianidade. Poesia civilizada, erigida de uma simplicidade franca e refinada. Poesia moderna, pós-moderna, quiçá não conceituável — daí sua liberdade, seu devir, sua potência lexical e semântica.
A burocracia da "literatura de gabinete" não logra espaço em Últimos & Derradeiros. Nesta, o referente é alcançável pela clara, flexível e modesta elegância inerente a cada texto, isto é, ao próprio eu lírico do autor e a todas as vozes e imagens que ele traz para os enunciados. O deleite se apresenta nessa empatia de A. Zarfeg com o seu tempo, eis que nenhuma obscuridade desoladora o atormenta. Nisso ele cumpre seu ofício de poeta atento às circunstâncias históricas, sociais e o respeito à sua própria subjetividade diluída nos 134 poemas que compõem todo o livro.
A obra é dividida em duas grandes partes: A primeira, composta por 82 poemas, chama-se Últimos; a segunda possui 52 poemas, chamando-se Derradeiros. A frase que antecede a primeira parteilustra e sugere o viés do título: "Eu lhes ofereço estes últimos &/derradeiros direta &/indiretamente". Uma asserção cujo tom confessional, dilacerante, quase escatológico parece encontrar um paralelo, ainda que tangencialmente, com o contorno não menos confessional e apocalíptico que inaugura as "Memórias póstumas de Brás Cubas", obra-prima de Machado de Assis: "Ao verme/que/primeiro roeu as frias carnes/do meu cadáver/dedico/com saudosa lembrança/estas memórias póstumas".
É quase impossível não observar o diálogo de A. Zarfeg com um dos maiores romancistas (e poetas) do Brasil. Todavia, a verve do carioca, autor de "Quincas Borba" e "Dom Casmurro" — a exemplo das obras de outros intelectuais da época — fizeram-se em meio à transição histórica e cultural que ocorreu no Ocidente a partir do século XVIII, onde o império da razão e da tecnologia, somados a uma nova ordem mundial espoliadora e aviltante suprimiu, ou tentou suprimir, os espaços de criação artística. Um tempo de penúria, de redução da condição humana, assim reclamava o poeta alemão Hölderlin, bem antes de Machado.
Contudo a poesia continuou a fazer chover em muitos quintais, e a cada estação novas e abundantes colheitas foram possíveis. Últimos & Derradeiros não deixa equívocos. Nesse sentido, é plausível entender que não se trata nem de Últimos, nem tampouco de Derradeiros; antes, obra de maturidade, consistente, bela na forma e forte no conteúdo. Obra não datada, de leitura fundamental, apesar de escrita na Era pop onde quase tudo dura quase nada.
Logo no primeiro poema do primeiro livro, o sujeito poético insere o sujeito leitor na arena do humor com "Oh" — um jogo de perguntas, na forma de quatro dísticos. Na primeira estrofe, tem-se a impressão de um cenário existencial: "Quantos oh você deixou escapar hoje?/Quantos oh saboreou neste 6 de abril?". A data, delineada com algum propósito (ou não), antecipa a ideia de tempo expressa ao final do primeiro verso, de vez que, não fossem os versos posteriores, o texto sublinharia a ideia de decadência, de naufrágio, de queda. Mas não é o que se depreende quando se lê todo o poema.
Ainda em "Oh", o poeta mostra sua sensibilidade criativa: "Sabia que, para cada oh, tem dois ah?/Para cada ah há apenas meio oxente?". As frases são possivelmente uma referência às modalidades lexicais de sua região. O jogo de palavras é flagrante e tão notável quanto o uso que se faz de estrangeirismos e neologismos: "1º bolo: oh my god, para ohnde olhar?/2º bolo: ahqui e ahcolá em todo lugar!". O ritmo fisga o leitor. A sonoridade é assaz envolvente.
Tal estilo (ou seria estratégia?) é observável em outros poemas da mesma obra: "Let's Talk", "Perfect", "Crazy", "Ranking", "Art & Pop", "C'est si bon...", "November Rain", "Love-Mail", "Santa", "Say You", "Leitura", "Impeach", "Salud", "Yeah", "Mika", Toast and Honey", entre outros.
O último poema — o único que não possui título — tem 134 versos. Cada verso é, na verdade, o título de cada poema de Últimos & Derradeiros. Tem-se, assim, uma espécie de índice remissivo, mas que, na verdade, pode ser o último poema, ou ainda, um novo jogo de palavras, cujo desfecho surpreende o leitor.
Os textos evidenciam a força da poesia (e do poeta) em sua forma e conteúdo. Em Sociologia, dir-se-á "cultura da resistência". É o que se depreende ao ler cada texto e neles e com eles experimentar novas dimensões daquilo que nos constitui enquanto seres humanos: a palavra.
"Let's Talk", por exemplo, é uma narrativa voltada para si, onde o poeta-autor se insere como poucos foram capazes de fazer: "Mas poeta não conversa/Se encanta de repente/Poeta não joga conversa/Fora, rumina essências/Nunca desconversa/Inaugura o verso e o fogo".
"Nunca desconversa/Inaugura o verso e o fogo". A originalidade está para o humor assim como o humor está para a originalidade. Precisão e dilatação. O eu lírico, apesar da predominância subjetiva, objetiva-se sem hesitação, e por isso é capaz de "inaugurar o verso e o fogo".
Ora, o que seria da palavra se não fosse o seu objetivo? Ou: qual o sentido da palavra se não há intenção?
Um pequeno trecho do poema "O poeta-operário", escrito por Vladímir Maiakóvski em 1918, descreve e explicita a relevância dessa arte-utilidade — por muitos vista como "arte inútil" —, explorada por A. Zarfeg no segundo poema dos "Últimos":
Grita-se ao poeta:
"Queria te ver numa fábrica!
O quê? Versos? Pura bobagem!
Para trabalhar não tens coragem".
Talvez
ninguém como nós
ponha tanto coração
no trabalho.
[...]
Que faz Almir Zarfeg senão crer, dedicar-se, entregar-se e compartilhar conosco seus poemas? E quantas gentes ele já não pescou com a linha de sua inspiração e o anzol de sua escrita?
Um ofício tão nobre como em 1918, afinal.
Notas
Os poemas "Arvoredo", "November Rain", "Alados", "Aldravia", "Poder", "Coração", por exemplo. O poema "Singular" pode ser entendido como referência ao escritor, ensaísta e poeta Ferreira Gullar, além da estrutura do texto e sua linguagem explicitarem o concretismo e pós-modernismo, ou seja, o estilo que predominou na escrita do poeta nordestino.
São ilustrativos os poemas "Discografia", "Fonema", "Foto", "The" e "Humanidade".
março, 2018
Cristiano Vasconcelos é filósofo, pedagogo, ensaísta e poeta. Capixaba, mora em Vila Velha (ES).