Imaginamos que o amor seja o grande motor da vida humana e da literatura. Por ele, Julieta se mata, supondo Romeu morto. Por ele, Heathcliff, de O morro dos ventos uivantes, faz as piores atrocidades com quem quer que seja. Por ele, Riobaldo passa por todo o Grande sertão: veredas se castigando por crer estar apaixonado por outro homem. Por ele, nos casamos, temos filhos, os criamos, fazemos financiamentos quase impagáveis, sacrificamos dias e horas que podiam ser usados exclusivamente para nós, convertendo nossos prazeres em favor do outro. Também é por ele que uma imensa indústria comercial, tanto na literatura quanto na música, se sustenta — veja os livrinhos de amor rasgado e baixa qualidade vendidos em bancas de jornal (tipo Bianca) e as centenas de duplas sertanejas, que se multiplicam feito coelhos, colhendo sucessos e montes de reais a rodo, graças a canções pouco pescritíveis a diabéticos, de tão açucaradas. No limite, Jesus é crucificado por causa de seu amor pelos homens. O amor tudo pode, diz o senso comum, enfim.
Não discordo integralmente disso, mas falar de amor é algo já batido, todos concordam, e não é nisso em que pensei antes de começar a escrever este texto. Sempre preferi a dúvida às certezas. Portanto, em vez de falar do amor, prefiro falar do ódio. Estranho, mas mais interessante. Assustador, mas curioso. Continue comigo.
Se retomarmos todos os exemplos dados no primeiro parágrafo, poderemos repensar muitas das obras literárias que nos marcaram, desta vez sob o crivo do ódio: Julieta se mata por conta de uma discórdia secular alimentada pelas famílias Capuleto e Montecchio. Heathcliff mantém a própria vida graças a um ódio e a um rancor (que é o ódio depois que mofa) pelo que sofreu no passado. Riobaldo não reconhece Diadorim, travestida de homem, por conta de uma vingança que precisava ser perpetrada pela mulher-Diadorim contra o assassino de seu pai. Jesus é crucificado graças ao ódio de alguns que pediram seu sacrifício.
Assim, o ódio, tanto quanto o amor, move sentimentos humanos, e sua influência é percebida tanto na história quanto na literatura.
No entanto, há uma vertente da literatura cujo motor principal, mais ainda, é alimentado pelo ódio. Muitos autores dessa vertente são enquadrados no que hoje se chama de "literatura marginal". Ou "periférica".
Os críticos já atribuíram alguns significados a esse termo, "marginal". Já se caracterizou a literatura marginal como aquele movimento importante da década de 1970, cujos autores distribuíam seus trabalhos em cópias mimeografadas e vendidas amiúde em bares e restaurantes, casas de culturas e esquinas. A chamada "poesia marginal" foi um movimento que ganhou as ruas e deu origem a poetas do quilate de Cacaso, Ana C., Chacal e Paulo Leminski ("Eu hoje, acordei mais cedo / e, azul, tive uma ideia clara / só existe um segredo / tudo está na cara"). Também já se pensou "literatura marginal" como aquela feita "pelas margens", ou seja, por autores que se debruçavam sobre o universo das ruas, dos becos, dos vagabundos: do submundo. Aqui se destacam autores como o brutalista Rubem Fonseca, João Antônio, e dramaturgos com Plínio Marcos, por exemplo. Muitos, aliás a imensa maioria, ficam de fora por falta de espaço.
Atualmente, a literatura marginal é caracterizada como aquela produzida por moradores da periferia brasileira. Os pertencentes a esse movimento se distinguem por falar do cotidiano das favelas, tanto para seus moradores (sendo uma forma de resistência), quanto para o público em geral (sendo uma forma de divulgar a miséria, tanto econômica quanto existencial). A ideia é expor uma realidade vista pelo ângulo de quem vive à margem da sociedade. Não se trata da classe média a falar da realidade da periferia, mas da própria periferia a falar de si mesma. É claro que acaba por misturar ficção com testemunho, fabulação com autobiografia. Mas traz uma força há muito tempo não vista. Ficção em estado bruto, diamante não lapidado.
Ao mesmo tempo em que trazem a realidade imediata para suas páginas, os autores da atual literatura marginal apresentam uma brutalidade inata que lhes dá poder de tirar o leitor classe média de seu conforto de poltrona.
A primeira metade do século XX apresentou alguns autores que, da periferia, falaram da periferia. Cito aqui Carolina Maria de Jesus e seu Quarto de despejo (1960). A partir da segunda metade do século passado, o marco dessa forma de escrita foi o romance Cidade de Deus, escrito por Paulo Lins na década de 1990 e depois adaptado para o cinema por Fernando Meireles. Posteriormente acabou gerando também uma série para TV (Cidade dos homens). A obra foi escrita por um morador da comunidade de Cidade de Deus, contando com sua experiência, mesclada com os resultados de uma pesquisa de nove anos empreendida por uma antropóloga, Alba Zaluar. É um livro fantástico. Como é comum ocorrer, a versão em livro ganha com larga margem da versão filmada.
Mistura o cotidiano de Cidade de Deus com dramas específicos de alguns personagens que desfilam pelos olhos do leitor. Embaralha poesia com AR-15. Dor de amor com sangue escoado por vingança. Paixão com narcotráfico. Amor com ódio (estranho mesmo, o poder da literatura: unir duas coisas aparentemente inconciliáveis).
Daí seu interesse, seu frescor, sua novidade.
Além do romance de Paulo Lins, outras obras e autores recentes trazem o mesmo frescor, a mesma novidade de retratar uma realidade desconhecida para quem não vive na periferia.
A maioria traz uma característica interessante: leva para as páginas de um livro a fala das ruas da periferia. Meio fabulação, meio etnografia. Gírias, construções (algumas que até contradizem a tal "norma culta" da língua), expressões. Sabemos que a forma com que nos expressamos espelha a nossa visão de mundo, certo? Assim, a fala daqueles personagens reflete o mundo em que se movem.
Falei do Paulo Lins, do Cidade de Deus. Ele é um escritor que conjuga super bem a exposição crua da periferia com uma bruta dose de poesia e de manejo da "coisa" literária. Dá gosto ler o livro. Mas há outros autores que igualmente pertencem à tendência chamada "literatura marginal", mas que apresentam abordagem diferente da do Paulo Lins. Quero falar de um moço chamado Ferréz.
Nome artístico de Reginaldo Ferreira da Silva, Ferréz nasceu em 1975 e viveu no Capão Redondo, super periferia na zona sul de São Paulo. É ligado aos "mano" do hip-hop e já publicou diversos livros, dentre eles Capão Pecado, Amanhecer Esmeralda, Manual prático do ódio (que não inocentemente batizou este texto) e Deus foi almoçar. É fundador do 1DaSul, grupo interessado em promover eventos e ações culturais na região do Capão Redondo, e mantém seu blogue [blog.ferrezescritor.com.br] e sua página no Facebook [www.facebook.com/ferrez.escritor] atualizados. Já teve seu livro Manual... traduzido na Itália, México, Alemanha, Portugal, Espanha e França, e seus direitos vendidos para um longa, além de manter um quadro no programa "manos e minas", da TV Cultura. Ou seja, o sujeito está mais que na ativa.
A crueza de Ferréz supera a de Paulo Lins, sobretudo, porque ele mais se propõe a denunciar aquela realidade, se importando menos com a forma com que faz isso. O resultado são livros doídos, às vezes com desvios em relação ao chamado "português correto", o que faz com que uma parcela dos críticos, mais tradicional e aguerrida à correção gramatical, menospreze sua obra.
Dele, li Capão redondo, Manual prático do ódio e Deus foi almoçar.
Agora, aperte o pause. Voltemos no tempo. Século XIX. A literatura de aventura. Júlio Verne, por exemplo. A obra dele trazia a possibilidade de mover o leitor para o centro da Terra ou para a cesta de um balão a percorrer o planeta. Seus personagens moviam-se em espaços estranhos ao leitor comum. Essa é a graça da literatura: tirar-nos do nosso lugar de conforto, da realidade que conhecemos e dominamos, e nos colocar numa zona de estranhamento, de abismo, de insegurança, da penumbra. O leitor, ao comprar uma obra numa livraria, busca essa viagem, busca perder-se, desconectar-se do seu mundo conhecido. A literatura apresenta-lhe mundos novos. O Ferréz faz isso. O Paulo Lins faz isso. O Alan da Rosa. Outros autores (que, infelizmente, conheço pouco) nascidos na chamada marginalidade fazem isso. E por isso trazem novidade. São como um novo amor ou uma nova amizade, que, diferentes da anterior, bagunçam nossas certezas e desalinham nossas verdades.
Desejo vida longa (cronológica e literária) a autores como esses. É deles que a literatura se alimenta, é por conta da mistura de um AK-47 com uma mãe que procura por seu filho depois de um tiroteio entre bandidos ou entre bandidos e policiais, da mistura de poesia com realidade que ela, a literatura, se refaz e aprende potências maiores que o cânone (aqueles autores consagrados para os quais a crítica tradicional entoa cânticos de maravilha) consegue nos fornecer.
Se retomarmos a frase do poeta Ferreira Gullar, a literatura e a arte existem porque a vida não basta. Mas no caso desses autores, a vida que subjaz em suas páginas extrapola seus limites e contamina os padrões do certo e do errado, do belo e do feio. Extrapola, no limite, os padrões estéticos da literatura, rompendo-os. E dando mais vida ao literário.
setembro, 2018
João Peçanha nasceu em Niterói/RJ há bastante tempo e escreve desde que se lembra, embora tenha tido problemas crescentes com a memória. Dirige a "Escola de Narradores" e é idealizador do coletivo de escritores Artes da Escrita. É membro da Liga de Escritores de Juiz de Fora. Autor de contos, peças e romances, é professor e doutor em Literatura Comparada (UFF).
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