A dor já não dói.
Fria, envolvente e etérea.
A dor flutua.
Foi dura e intensa,
deixou de o ser.
A dor, agora, é leve,
simples, quase graciosa.
Augusto Frederico Schmidt
No mesmo instante em que o vizinho botou Márcio Greyck pra cantar Aparências, o vento trouxe ao quintal aquela folha azulada, dobrada em forma de avião. Fabinho fora ao quintal se refugiar embaixo da velha goiabeira, enquanto tomava sua segunda xícara de café. Em dias de calor mais intenso, só conseguia beber café à sombra da velha árvore. Ensimesmado, reparou na coincidência daquele estranho acontecer: aos primeiros acordes da canção, o papelzinho traçara voo e aterrissara a poucos metros de onde ele havia escolhido se sentar.
Sem querer, pensou numa aula estúpida, zipada na memória, cujo tema era sincronicidade. Recordação tão mofada que ele teve medo de espirrar: vinha de quando cursava o ginasial no Wilson Lins. A professora de Comunicação e Expressão, grávida de sete meses, se ausentara, e no seu lugar surgiu uma pobre estagiária que se embananava não apenas na clareza do assunto, mas na própria pronúncia da palavra. A turma ria à vontade com as variações que a moça gaguejava à frente do quadro — sincroquinidade, sincronocidade —, enquanto Mila, a mais velha da sala, porque repetente, corrigia a nova pró aos gritos: é sin-cro-ni-ci-da-de, professora, presta atenção!
Por amor aos tempos idos, quando apreciava ver o pai fazer barquinhos, aviões e chapéus com papéis usados, Fabinho pôs a xícara no chão e alcançou o aviãozinho azulado. Ia se permitir ser criança de novo, se pendurar no muro e devolvê-lo ao vento, mas percebeu que havia algo escrito no papel. Cuidadoso, desfez dobra por dobra e leu:
É necessário arrancar uma boa muda e evitar tocar em suas nervuras até o momento em que o talo escurecer. Não um escurecer qualquer, comum às plantas extraídas do solo. Deverá ser um escurecer arroxeado, e é preciso também que gotas surjam dele. Melhor dizendo, lágrimas; lágrimas que brotarão do interior dos talos e estarão visíveis em duas, três semanas. A muda deve ser posta em água fria enquanto esse pranto não ocorra; posta em água fria e trocada a cada dois dias, sem engano ou esquecimento. Quando então acontecer o escorrer das lágrimas, plante a muda em solo profundo e cuide de que haja sol e chuva por lá. Ao final de doze meses, tenha certeza: a Santa Felicidade estará firme e enraizada.
A instrução terminava abruptamente, da mesma maneira que começou. Estava digitada e a fonte escolhida era arial. Fabinho achou mais que curioso, engraçado. Indagou a si mesmo onde encontraram aquela folha A4 num tom de azul bebê, detalhe que transformava ainda mais intrigante a impressão de todo o passo a passo pra se cultivar... o que era mesmo? Uma planta? Uma árvore? Uma flor? Releu algumas partes, contendo a gargalhada: Ao final de doze meses, tenha certeza: a Santa Felicidade estará firme e enraizada. Já pensou?, brincou consigo, tão fácil! É o caso de se achar um pedaço de terra imediatamente!
Santa Felicidade, ele murmurou, é um bairro de imigrantes italianos, no Paraná. Estivera em Curitiba no ano passado, com Elisa. Chovia fino quando tomaram o ônibus a fim de percorrer os parques curitibanos. Quando desceram no bairro italiano, o vento era gelado. Ele fechou os olhos pra ter mais viva a imagem daquela menina, sorridente e úmida, ao seu lado, escolhendo um Malbec argentino e uma massa à base de abóbora com molho de manjericão. Enquanto comiam, encostou-se nele, friorenta, cansada, e seu cheiro de lavanda foi moldando tudo ao redor. Santa Felicidade há de ser somente isto: viajar com Elisa, sentir seu perfume, mais nada.
O vizinho passou de Márcio Greyck pra José Augusto. Fabinho se abanou em vão com a folha azulada: o calor em Bom Jesus da Lapa sempre fora de matar, mas estava piorando a cada mês. Sentia o mundo todo alaranjado debaixo daquele sol, e assim, às 10h30, com o vizinho usando a trilha de quando começavam as chamadas pras matinês no extinto Marabá, Fabinho se sentia de miolo mole. Fora ao quintal tomar um café a céu aberto, esperançoso de que não suasse tanto embaixo da goiabeira. Mas não havia jeito: acachapado e lavado de suor ele estava. Debaixo da velha árvore, tirou a camisa e distraidamente pôs-se a refazer o aviãozinho, cantarolando parte da velha canção: se teus olhos me olharam, fingiram não ver/no meu canto eu fiquei entre o riso e a dor/lembrando do primeiro amor. Suspirou: até o que chamavam de música brega era melhor naquele tempo. Não se fazem mais canções assim. A música brasileira virou um cemitério sem placas, considerou. Logo se arrependeu de pensar desse jeito, temeroso de se tornar uma pessoa nostálgica, chata, a confrontar o ontem com o agora, balançou a cabeça, como se pudesse despistar o desgosto que ali se formava. Há anos evitava rádio e TV, não ia aos bares nem às festas da cidade, tudo pra se poupar das trilhas irritantes que o mundo resolvera tocar a cada esquina, todavia, seus esforços saíam vãos, pois a cada dia era informado, a contragosto, pela nova MPB, que homem não chora e não pede perdão ou que uma pessoa pode ficar com outra apenas por causa do seu lepo lepo ou do seu tchá-tchá-tchá. Tá todo mundo doente, ponderava Fabinho quando obrigavam-no a ouvir aqueles arremedos musicais, nem sequer falam mais português. E ele que apreciava tanto uma canção com história, com exposição! Os sambas, os boleros, os bregas que ouvia antes, no radinho de pilhas de seu pai, como eram bons, não? Todos tinham um propósito, uma razão de existir.
Depois de José Augusto, o vizinho atacou de Julio Iglesias: de tanto correr pela vida sem freio, me esqueci que a vida se vive o momento. Era uma versão de Me olvide de vivir, num português pra lá de canastrão. Fabinho riu e dedilhou na perna, lentamente, acompanhando o ritmo. Essa também é boa, um verdadeiro muscão! Sequer conhecia aquele vizinho, mudara-se há pouco tempo. Fabinho viajou no período em que o desconhecido ocupou a casa que, há anos, permanecia vazia. A casa dos pais de Elisa, posta à venda anos e anos a fio. Parece que finalmente fora vendida. Ou teria sido alugada? Por enquanto, não é possível saber, Fabinho ainda não criara coragem pra ir lá, tocar a sineta e dar boas vindas ao cidadão. Ou seria uma cidadã? Uma família inteira? Não, não ouvia barulho de crianças, portanto, certo estava em considerar que, do outro lado do muro, morava um ser humano solitário, quem sabe a enfrentar uma fase difícil, de dor de cotovelo ou paixão. De todo modo, exceto pela trilha sonora de quando ainda havia Cine Marabá em Bom Jesus da Lapa, poderia dizer que o novo vizinho, fosse homem, fosse mulher, era alguém educado e silencioso. Depois, obviamente, Fabinho iria se apresentar, dar às boas vindas. Educação é a base da vida, diria seu pai, se vivo estivesse. Claro, ser gentil não custa nada, levaria um pedaço de bolo, um licor de jenipapo, umas goiabas maduras. Quando tivesse ânimo e tempo pra organizar tudo isso. Por hora, não. Estava muito quente, não se deve sair nesse sol terrível, esse sol larva de vulcão a crepitar até os nervos da gente. Ademais, não tinha agenda pra essas amenidades: na segunda começaria a complexa pintura de um mercadinho, na Amaralina. A dona era muquirana e insistiu tanto num desconto que a Fabinho só restou diminuir os auxiliares: em vez de chamar o primo Esteves, parceiro seu há anos, e mais dois assistentes, acertou apenas com o moleque mais velho de seu Raimundo. Ia demorar o dobro do tempo, mas que jeito? Quando o pagamento é reduzido, a mão de obra também sofre impacto. Após esse serviço, Fabinho planejava pegar mais algum que surgisse, no máximo dois, e em seguida iria conhecer Cartagena, na Colômbia. Com Elisa, obviamente.
Embaixo da goiabeira, estalou a língua, sentindo o gosto do último gole de café, enquanto a voz inconfundível do Rei iniciava uma canção tristíssima: Virgem, menina morena, nos olhos toda a primavera/no peito uma longa espera, botão em flor se abrindo... Valha-me Deus!, disse Fabinho, rindo, esse vizinho ou vizinha tá com o diabo no corpo! Quer fazer a gente se derreter que nem manteiga. Quando fosse, enfim, dar às boas vindas ao desconhecido ou desconhecida, iria mencionar essa trilha, afinal, era muita coincidência que tocassem do outro lado do muro justamente as mesmas canções de quando Fabinho, anos atrás, ia com Elisa ao Marabá, de mãos dadas.
Tirou do bolso da bermuda o isqueiro e o maço de cigarro. Acendeu. Deu um, dois, três tragos seguidos, depois, pôs o isqueiro em cima da mesa de tampo de madeira escura e girou-o. Sentido horário, uma, duas, três vezes. Interrompia o giro. Recomeçava, sentido anti-horário, uma, duas, três, quatro. Parava. Tornava girar. O isqueiro colorido que trouxera de Frankfurt. Melhor dizendo: roubara daquela senhoria na Alemanha, com quem conseguira um quarto com vista pro Meno. O quarto tinha saída independente do resto da casa, além de uma porta lateral que dava num jardim interno. Nele, foram plantados diversos tipos de flores, mas o que mais chamava atenção eram as margaridas apertadas num enorme vaso, um bando delas, em cima de uma mesinha de ferro. Pensava naquelas margaridas, e também no Meno, tão plácido, tão gélido, cortando a ruazinha deserta onde alugara aquele quarto, no ano passado. Com Elisa.
Frankfurt, Alemanha, Elisa. Era bom pensar assim. Chique até. Mas, emendou logo, preferia Buenos Aires e São Paulo. É verdade, gostara mais de Buenos Aires e de São Paulo, murmurou pra si, enquanto girava o isqueiro colorido. Os pensamentos emendados ficavam mais naturais, não? Ele sorriu: não é incrível que um simples objeto leve o ser humano a territórios tão distantes? Puxou novo trago e completou: e tudo isso praticamente de graça! Podia se sentir naquele quarto, na ruazinha cortada pelo Meno. Podia sentir na pele o frio de lá, rever as margaridas, sentir o gosto da cerveja ruiva que comprara na primeira noite. Reviver tudo, de graça. Sim, pois se até aquele isqueiro colorido fora roubado! Riu, um tanto contido: não tivera intenção alguma de roubá-lo. Por sinal, era um troço feminino. Apenas se esquecera de devolvê-lo e ninguém percebeu. As câmaras dos aeroportos que vasculham os viajantes até os ossos não detectaram o objeto, e quando ele abriu a mochila, dias depois, no Brasil, olha lá o isqueiro!
Estava assim: fumando e admirado da falha de segurança nos aeroportos. Já se esquecera do avião azulado com a receita pra se plantar a Santa Felicidade, já se esquecera da viagem a Curitiba, da situação periclitante da música brasileira, da ruazinha quieta alemã, do rio, das margaridas, da cerveja ruiva, do cheiro de Elisa. De repente, pensava apenas nos aeroportos e em sua rede de câmaras. Passara por três deles pra ir e voltar de Frankfurt. Uma dúvida o atravessou: seria realmente possível?
Tocaram a campanhia. Um toque longo, como quem não pudesse esperar. Mas ele não aguardava por ninguém. Isso não é nada bom, ele considerou, temendo que algum intruso viesse lhe chatear, roubar a paz do sábado de sol. Muita gente em Bom Jesus da Lapa tem esse hábito ruim de aparecer sem aviso. Ergueu-se, sem vontade de se erguer, e foi atender. Uma mulher escandalosa estava lá fora e gritou:
— Você é Fabinho Viajante? Filho do finado Zé Pintor?
— Eu mesmo — ele rebateu, espantado com tanta referência vindo de uma desconhecida.
— Olhe, você precisa vir comigo. Mataram seu irmão!
O tom era de total desespero e ele sentiu os próprios olhos esbugalharem diante da figura patética da senhora.
— Sério? — indagou, tão assustado, tão perdendo o chão. — Mataram meu irmão?
— Sério! — ela gritou outra vez. — Mataram o coitado!
Estupefato, ele correu a vestir uma camisa, calçou os chinelos, pegou um boné e trancou o portão pra poder acompanhar a senhora. Ainda fumava e, quando acabou o cigarro, olhou em volta, em busca de uma lixeira. Não achou. Não se fuma mais nesta porcaria de cidade, resmungou, mantendo o toco nas pontas dos dedos até que a brasa se apagasse totalmente. Podia jogar no chão, não faria diferença, pois as ruas da Lapa estavam invariavelmente imundas. Mas não, aprendera nas inúmeras capitais por onde andou: jogue limpo, não suje a sua cidade. Chama-se cidadania, respeito. Muito bem, ele é um viajante, um verdadeiro cosmopolita, não podia fazer feio. Cos-mo-po-li-ta... Ah!, como admirava essa palavra... Não havia nada mais bacana do que um homem ser considerado um cidadão do mundo, um cosmopolita! Quando o toco do cigarro apagou completamente, meteu-o no bolso.
A mulher ia à frente e respirava alto, os cabelos em parte castanhos, em parte grisalhos, num rabo de cavalo, se sacudiam pra lá e pra cá. Em algum ponto da mente ele sabia que aquela mulher andava de modo muito semelhante a alguém outrora perdido. Alguém que deslizava pelos fios da memória e sumia num branco irritante. Mas quem, quem?
Quando iam atravessar a avenida Manoel Novais, ele avistou um tonel, então, pegou a baga do bolso e atirou no vasilhame. Não andaram muito. Cerca de quinze, vinte minutos talvez, entretanto, sob o sol de Bom Jesus da Lapa qualquer caminhada virava uma São Silvestre sem fim. Ele não tinha forças pra perguntar o itinerário e a senhora, à frente, numa estranha posição de comando, não se voltava a explicar razões, objetivos, trajetórias. Percebeu que se embrenhavam por trás do Hospital Carmela Dutra e se lembrou de que ali, há muitos anos, ocorriam as Cavalhadas. Mas estava tudo diferente: muitas construções e até ruas calçadas, onde antes só havia barro. Não trocaram qualquer palavra. A mulher pegou um atalho novo e esse deu num largo, cheio de folhas de amendoeiras maduras. Ali, somente ali, a mulher parou e disse: é naquela esquina, naquele bar. Calado, ele seguiu a direção apontada pela mulher cujo rosto, voz e jeito de andar não pareciam mais de uma desconhecida, ao contrário, eram tão familiares que chegavam a incomodar — quem era ela, afinal?
Enquanto caminhava do início da pracinha ao bar apontado pela senhora, ele pisava nas folhas e se sentia atraído pela cor intensa delas. Mesmo mortas, considerou. Sim, as folhas eram belas, vermelho-alaranjadas, ainda que mortas. Seria bom se os seres humanos fossem assim, não? Também não se lembrava que havia uma pracinha atrás do Hospital Carmela Dutra, quando construíram-na? Por que ninguém lhe dissera nada a respeito? Parecia outro mundo, outra cidade. Mas tudo bem, ele considerou, viajava muito, costumava passar cerca de quarenta a sessenta dias fora, daí porque todos chamavam-no de Fabinho Viajante Internacional ou Fabinho Viajante Sem Fronteiras.
— Não pode entrar não, moço — avisou um homem à porta do bar. — Houve um assassinato e esperamos a polícia.
— Ah! — ele disse, ainda assustado, mas sem saber como dizer ao mundo que estava deveras assustado.
Esfregou as mãos e repetiu com pesar: um assassinato! Mas logo a mente se distraiu com o costume das pessoas, ali no interior, de falar moço a todo momento. Era um tal de para, moço!, queta, moço, o que é isso, moço?, bastava passar dez dias na Lapa, que Fabinho já se via a repetir aquela cantiga. Não aprovava esse jeito de falar. Viajava um pouco por isso — pra perder tal sotaque —, um pouco porque tinha paixão por novos mundos, mas, sobretudo, pra ficar mais perto de Elisa, sua eterna companheira de escape.
De dentro do bar, uma voz masculina perguntou quem estava à porta.
— Ninguém não — respondeu o senhor que barrara a entrada de Fabinho. — Apenas um rapaz curioso.
— Acaso é o irmão da vítima? — quis saber a voz masculina oculta.
O homem que acabara de definir que um rapaz curioso não é ninguém, se voltou pra Fabinho, mais simpático e indagou:
— Você é irmão da vítima?
Fabinho balançou a cabeça, afirmativamente. Continuava perplexo com toda aquela sucessão de acontecimentos. Primeiro, um aviãozinho de papel azul-bebê, que veio voando e trouxe a receita pra se cultivar uma planta chamada Santa Felicidade. Em seguida, o vizinho, ainda desconhecido, que colocava justamente a trilha sonora de quando Fabinho ia com Elisa ver filmes no Marabá. Por fim, um irmão assassinado. Antes que achasse voz e respondesse corretamente ao homem, chegou a polícia. Melhor: as polícias, civil e militar. Juntinhas, como naqueles episódios antigos de TV. Os policiais já desceram dos carros falando coisas, muitas, ao mesmo tempo, e ele não conseguiu acompanhar o ritmo das declarações, das perguntas. De repente, apontaram-lhe e disseram:
— Esse é o irmão da vítima, ele acabou de chegar.
Os policiais olharam-no em silêncio. Eram cinco e cada um tinha um par de olhos que vasculharam Fabinho pedaço por pedaço. Estavam avaliando-o? A tensão era clara e Fabinho não gostou nada daquilo. Estava em casa, em paz, ouvindo a seleção brega do vizinho, lembrando de Curitiba, de Frankfurt. Trouxeram-lhe pra cá, a contragosto, sequer tivera tempo de racionar. Uma mulher maluca. Jamais conhecera aquela criatura antes. Tocara sua campanhia como se quisesse queimá-la. Deveria ter mandado-a à merda. Todavia, educado como sempre fora, seguiu-a de bom grado. Afinal, era herança do pai, ainda a ressoar nos tímpanos: pobre, sim, dizia seu pai, preto, porque assim Deus quis, mas mal-educado e burro nunca, ouviu? Trate de se impor, meu filho. Mas é claro!, ele rebatia, faria isso, como não? Chateado, encarou os policiais de volta, um a um. Estava disposto a criar encrenca, bastava que lhe dissessem algum desaforo pro tempo fechar. Mas, de repente, o clima esquisito se dissipou e todos o cumprimentaram. Um deles sacou um caderninho e o saraivou de perguntas:
— Nome completo, senhor?
Senhor? Ah, muito bem, assim estava melhor. Se o tratavam corretamente, poderia responder qualquer coisa. Educação, gentileza, presteza: são as chaves do mundo.
— Fábio José da Silveira Júnior — respondeu.
O policial anotou, rápido. Enquanto isso, os demais conversavam sobre o desempenho constrangedor da seleção brasileira nos amistosos da Copa. Pra variar, ninguém aprovava o técnico do Brasil e todos tinham uma escalação melhor na ponta da língua.
— Endereço? — tornou o investigador, de caneta em punho.
— Rua do Desatino, nº10 — revelou Fábio.
— Onde fica essa rua? — quis saber o policial. — Não a conheço.
— É perpendicular à Travessa Santa Luzia — ele explicou. — É pequena. Só tem coisa de cinco a seis casas, tanto de um lado quanto do outro.
O policial anotava tudo abreviado, numa letra que nem aos deuses caberia entender.
— A rua é apenas uma quadra, então? — continuou o investigador.
— Quase isso — afirmou Fabinho. — A Lapa é muito torta pra falamos em quadra, né?
O policial achou graça:
— O senhor acaba de falar uma grande verdade, não tem nada mais torto que Bom Jesus da Lapa...
Fabinho não teceu qualquer adendo, tinha dúvidas do tom irônico do outro à sua frente. Também não lhe agradava falar mal da cidade. O comentário sobre a Lapa ser torta fora espontâneo e puramente geográfico. Não lhe ocorria criticar o chão onde nascera. Claro que não era um santo, longe disso! Pensava muita coisa ruim sobre o clima infernal da cidade, a sujeira e as viroses deixadas pelos romeiros, a incompetência de todos os prefeitos, a falta de norte da maioria de seus habitantes. Mas se no pensar era totalmente livre, na fala se sentia tolhido: não queria parecer essa gente metida a besta, que sai duas ou três vezes da Lapa, às vezes só pra ir a Salvador, e logo que retorna, se acha superior, a apontar defeitos em tudo. Fabinho, ao contrário, era um cidadão do mundo, mas, compreendam!, lapense de corpo e alma.
— Idade? — prosseguiu o investigador.
— Tenho 46 anos.
— Profissão?
— Pintor.
— De parede ou das artes? — esmiuçou o outro.
— De parede — falou Fabinho. — E de teto também.
O policial gargalhou, chamando atenção de todos no bar. Entretanto, logo se conteve, voltando às perguntas:
— Como soube do assassinato de seu irmão?
Sentindo-se estranhamente nervoso e emocionado, Fabinho resumiu:
— Uma mulher desconhecida bateu na minha porta e me avisou. Vim acompanhando-a. Mas ela foi embora.
— Seu irmão tinha inimigos?
— Não sei dizer não, senhor.
— Mexia com mulher alheia?
— Também não sei.
— Bebia? Jogava apostado? Era brigão? Usava drogas?
— Deus é quem sabe!
— Espere aqui — disse o policial, fechando o caderninho.
Todos entraram no bar. O sujeito que barrou, antes, sua entrada, não estava mais ríspido, tornou-se solidário, ofereceu-lhe uma cadeira, um copo d'água. Por fim, estendeu-lhe a mão e disse meus sentimentos.Fabinho agradeceu. Tinha vontade de dizer mais alguma coisa, porém, não encontrou nada útil na mente.
Esperou uma enormidade. Tentava se lembrar do rosto, do nome do irmão. Ele tinha mesmo um irmão? Não conseguia saber. Estava num estado pra lá de letárgico, uma névoa sem precedentes, qual sonâmbulo, sentia e não sentia a realidade. Esticava os dedos, respirava fundo, tentava ligar os fios, mas é que tudo parecia tão arenoso, tão móvel!
— Venha reconhecer formalmente o corpo de seu irmão — disse um dos cinco policiais.
Ele foi. Mal deu uma dúzia de passos, percebeu que o mundo estava definitivamente errado. O jovem morto, o jovem assassinado que deveria ser seu irmão — mas qual? Qual irmão? — parecia, na verdade, uma menina. Fabinho piscou os olhos, sem entender. Não apenas parecia uma menina adolescente, mas, que coisa estranha!, uma menina morta que sorria. Estava ensanguentada, mas sorria. Pior: seu sorriso era muito familiar. Ele balançou a cabeça sem querer entender. Uma pancada veio, no pescoço, mais precisamente na nuca: alguém com um porrete, ele deduziu.
Não tenho irmãos, lembrou-se, finalmente. Sou filho único, a mãe morrera no segundo parto. Estava grávida de gêmeas, ninguém sabia, mas eram duas meninas, e estavam coladas, segundo o médico. Morreram todas três na mesa do hospital, Fabinho só tinha sete anos quando tudo aconteceu. O pai passou muito tempo triste, bebia demasiadamente e jamais voltou a se casar. Tudo isso, quis explicar aos policiais, é um engano, gritou sem poder gritar. A pancada foi muito forte, os pés tremeram, levando-o ao chão.
— Coitado! — ouviu um dos policiais dizer. — Está desmaiando.
— Deve ser a emoção! — opinou o homem que havia barrado a entrada de Fabinho, horas atrás.
É Elisa?, tentou perguntar aos policiais, ao dono do bar, antes que o escuro lhe abraçasse de vez. Porque nalgum ponto sabia: tinha dezessete anos, quando ela se foi. Tinha dezessete anos e jamais saíra de Bom Jesus da Lapa, talvez por isso, não foi capaz de adentrar a realidade daquela nova perda: viver sem Elisa, esquecer os tantos planos que fizeram juntos, de ganhar o mundo, de viajar a cada verão. Sem Elisa, a vida se tornou uma mentira. E fugir daquele limite pegando fogo, aquele limite que sangrava, foi a única tarefa séria que lhe restou.
No início, pareceu-lhe impossível: a falta dela se assemelhava à perda da mãe, anos antes. Estava espalhada em tudo, fundia-se à poeira das ruas, ao correr ágil do rio São Francisco, ao céu profundamente azul de Bom Jesus da Lapa, donde, de dia, habitam as mais alvas nuvens, e, de noite, se pode ver de perto, uma a uma, qualquer estrela do planeta. A falta delas era sumiço e presença ao mesmo tempo, embaralhando a percepção, assim: tanto a mãe de Fabinho quanto Elisa não mais estavam ao alcance das mãos, mas, estranhamente, irrompiam no meio de uma aula, soprando-lhe as respostas corretas nas questões mais difíceis de português, geografia e matemática. Tanto a mãe quanto Elisa estavam mortas, avisavam-no, garantiam-no, exibiam-lhe provas, contudo, ambas se punham do lado de Fabinho e com ele subiam o Morro, passo a passo, pedra por pedra, respiração saltada, palavra nenhuma. Não era possível entender, tampouco dividir com alguém a dolorosa sensação de tê-las e, em verdade, não tê-las. Nas poucas vezes em que Fabinho buscou se expressar, deu com a incompreensão alheia, fosse em casa, fosse no colégio, ou no grupo dos Jovens Católicos Filhos de Maria e José — do qual ele e Elisa faziam parte desde o catecismo. Era esforço perdido. Ele podia falar horas e horas sobre a presença-ausência da mãe e de Elisa nas tardes de domingo, na garupa de sua bicicleta, cantando canções tristes de Lilian ou Kátia.
Seu pai até que ouvia de vez em quando, sobretudo quando estavam pintando alguma parede juntos, ouvia, mas logo lhe respondia, impaciente: deixe de assuntar o passado, meu filho, todo homem encafifado morre doido. Igualmente respondiam os colegas: está ficando maluco, Fabinho? Não se pode sentir a presença de quem já morreu. A única pessoa que não o censurou foi padre Francisco, que o ouviu atento. Ao fim da confissão, o padre não deu bronca nem desfiou o mundo de conselhos que as pessoas costumavam dar a Fabinho quando o assunto era a morte da mãe ou de Elisa. O padre se ergueu e o abraçou, ternamente. Tinha um forte cheiro de jasmim na roupa do padre e Fabinho ficou alguns segundos quieto, apenas pensando nisto: jasmim é uma flor, tiram-na do pé e fazem perfume com ela. Naquele instante, pareceu um mundo absurdo, tão violento, tão sem sentido, que ele estremeceu: meu Deus!, arrancam das vísceras das pobres flores um perfume, que horror! E pra quê? Pra que tudo isso? É absurdo, pensava, o mundo é um lixo, não adianta pôr perfumes. As flores não têm vísceras, rebatia a si mesmo, mas nem por isso estão salvas da ganância humana, nada presta ao redor da gente, esse é o problema.
O padre Francisco desfez o abraço, como se adivinhasse os pensamentos revoltados do rapaz, e convidou Fabinho a rezar um terço pela alma das duas pessoas queridas. Com o senhor, padre?, indagou o jovem, surpreso. Comigo, confirmou o padre, venha. Foram juntos, em direção ao altar. O padre ajeitou a batina branca com faixa verde e inscrições douradas, que usava na sala de confissão, e se ajoelhou ao lado do rapaz enlutado. Rezaram um terço, que a Fabinho pareceu interminável. Todo o processo o deixava sonolento, mas era bom, assim se esquecia do mau cheiro do mundo, da ganância das pessoas, das flores sem vísceras, de tudo, enfim. Lutou bravamente contra o sono, afinal, era muita honra rezar ao lado do padre Francisco, com certeza, a mãe e Elisa ficariam contentes, ambas eram muito católicas. O padre puxava as orações, um Pai Nosso, dez Ave Marias, e Fabinho ia acompanhando, satisfeito por não ter recebido nenhum sermão, nenhuma penitência.
Continuem assim, vivas e lindas, disse o padre Francisco ao fim das orações, e que Deus as conduza à vida eterna, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Emocionado, Fabinho murmurou amém. Beijou a mão do padre, recebeu sua bênção e foi pra casa mais leve. Fez questão de permanecer alegre o resto do dia, durante a semana, nos meses seguintes. Não havia o que lamentar, nem queria mais conversar com ninguém a respeito de coisa alguma. Vivas e lindas estavam a mãe e Elisa, ao lado dele, muitas vezes a soprar excelentes ideias.
Uma dessas ideias foi a das cartas. Fabinho pôs um pequeno anúncio numa revista de circulação nacional: compro cartões postais, relatos de viagens e fotografias de monumentos e paisagens de cidades turísticas — preferência por capitais, do Brasil e resto do mundo. Logo, as ofertas começaram a chegar. Naquele tempo, se pagava com Vale Postal, um processo facílimo, o pessoal do correio lhe explicou uma única vez e ele logo estava preenchendo tudo sozinho.
Ia selecionando com um rigor invejável as propostas que chegavam. Muita gente sequer cobrava, mandava de boa vontade relatos minuciosos, pilhas de fotos e postais, souvenires e até mesmo camisas, das mais diferentes cidades do País e do mundo. Maravilhado, descobriu que havia um povo por demais sozinho, espalhado por aí, disposto a conversar através de longas cartas, a expor suas viagens, a compartilhar vivências e impressões. Às vezes triste, às vezes contente, Fabinho concluía, a cada pacote de cartas lido e arquivado, que mesmo o mundo sendo um lixo de tão ruim, mesmo a vida sendo torta de tão errada, ainda havia gente decente no Brasil. E não era esse um bom motivo pra se tomar uma cerveja no quintal, embaixo da goiabeira, ao final de uma semana de serviço? Mas claro que sim! Às sextas, ele tomava um banho frio e demorado, derramando quase o frasco inteiro do xampu na cabeça e no corpo. Gostava de se banhar por inteiro com xampu, não com sabonete, porque xampu faz mais espuma e o aroma é melhor, resmungava, só assim conseguia se ver livre do cheiro de tinta, massa corrida e tinner.
Ia ao boteco de seu Raimundo, na Travessa Santa Luzia, comprava a cerveja, preparava um tira-gosto, punha Agepê e tamborilava os dedos na mesa de madeira, animado: Ei, ei, ei, menina de cabelos longos/quero te levar pra longe/no primeiro bonde a gente pode partir, ei, menina! Terminava um samba, entrava outro tão contagiante quanto o primeiro. Tinha uma fábrica de sambas bons o Agepê!, concluía Fabinho, se entregando a essa pequena festa solitária. Quando o pai era vivo, também ouviam sambas juntos, bebiam e cantavam, embaixo da goiabeira. Entretanto, ele não guardava muita saudade desse tempo, pois nunca estava completamente sozinho com o pai, sempre vinham uns amigos marrentos ou parentes cansativos, a discutir futebol e política quando Fabinho só queria beber uma boa cerveja e ouvir sambas bem-feitos, ao lado do pai.
O maior prazer que tinha, no entanto, era o de assimilar as viagens narradas nas cartas. Assim soubera do calor descomunal que faz o ano inteiro em Belém do Pará, da senzala desativada em Ouro Preto, de uma lagoa chamada Massaguera em Maceió. Ia fazendo amizade com aquele bando de gente desconhecida que lhe ensinava ser Aracaju a capital mais hospitaleira do planeta, e Brasília, a mais cara e mais vazia. Que lhe dizia pra não perder a Feira de Livros em Porto Alegre, nem o forró de Campina Grande, tampouco às noites de sexta-feira em Palermo Viejo, o bairro mais encantador da capital argentina. Gente boa, atenciosa, que o aconselhava a evitar João Pessoa, Recife e Salvador em junho — época em que as três cidades se desmancham debaixo de chuvas impiedosas — e a percorrer sem medo o centro histórico do Rio de Janeiro. Que violência que nada!, sublinhava um dos remetentes, o Rio é um acontecimento, um desenho de Deus — bordão que Fabinho imediatamente incorporou e passou a dizer a todos com a maior naturalidade possível: o Rio é um acontecimento, um desenho de Deus.
Os relatos variavam de breves e óbvios a engraçados, detalhados e incomuns. Então, mesmo sem jamais sair de Bom Jesus da Lapa, Fabinho ficava sabendo que se podia passar dez dias hospedado num motel em Niterói, por puro engano dos viajantes que, desatentos, não se informaram sobre a natureza da hospedagem! Esses mesmos turistas atrapalhados lhe contavam pormenores preciosos sobre a travessia da barca, a delícia da cerveja sempre gelada em qualquer boteco onde se entre, a dimensão absurda e o engarrafamento cotidiano da ponte, e a placidez de se caminhar em Ibicaraí com o Rio de Janeiro ao fundo. Fabinho gostara disso: andar numa praia de nome indígena, em Niterói, com o Rio de Janeiro ao fundo. Chique, não? Estavam em pleno verão, enfatizou o missivista, e as pessoas ficavam até 20h, 21h, na praia, correndo, namorando, jogando frescobol. Magnífico, pensou Fabinho, fechando os olhos e se sentido exatamente lá, na praia de Ibicaraí. Com Elisa, lógico.
Aquilo que mais gostava em cada relato era devidamente selecionado, decorado e incorporado às memórias do que jamais vivera. Ele substituía os sujeitos das cartas pela imagem dele próprio e de Elisa, que, invariavelmente, viraram protagonistas naquelas terras desconhecidas. Depois de um tempo, não precisava fazer esforço algum, lia algumas linhas e pronto, já estava lá, no novo destino, a andar de mãos dadas com Elisa. O gosto daquelas memórias, daquela felicidade alheia, penetrava-lhe por todos os poros, habitava seus sonhos, surgia vivo em seu discurso: gosto santo, sabor intenso — pro espanto dos conterrâneos que sabiam ser tudo mentira, afinal, Fabinho jamais saíra da Lapa.
Mesmo jovem, ele trabalhava o menos possível. Não era ambicioso com dinheiro e herdara não só o ofício, mas também a fama do pai de ser o melhor pintor da cidade, então, nem sequer se preocupava em buscar serviço, as pessoas o procuravam com demandas, com propostas, com convites. Trabalhava um mês, separava o básico pra despesa, o resto investia na organização daqueles relatos. Comprou excelentes arquivos com pastas etiquetadas, na mão de um contador que estava fechando o escritório na Rua Lauro de Freitas. Se isolava a fim de melhor usufruir o raro prazer daqueles itinerários feitos com Elisa. Antes, pra que não viessem lhe perturbar com visitas indesejáveis, tratava de avisar: vou ficar um mês fora. E vai pra onde?, perguntavam os mais próximos. Pra Buenos Aires, respondia. Pra Curitiba. Pra Santos. Pra Toronto. Pra Frankfurt, na Alemanha. Pro interior de Minas. Dependia dos últimos correspondentes, claro. A casa já não comportava tanto arquivo, mas antes que Fabinho se afogasse naquele mundaréu de correspondência, o mundo girou de novo e veio o tempo dos e-mails e das redes sociais. Ficou mais fácil, e ele, de bom grado, aderiu àquele novo jeito de se comunicar com o mundo.
Definitivamente, não era uma pessoa babaca, a reclamar do presente, a prever misérias no futuro e a bendizer o passado. Sabia ser flexível. Se os novos tempos chegavam, nos novos tempos ele travava de estar. Assim, passou a tirar a poeira das fotos que um dia foram enviadas, a fotografar em cima das imagens, e, após usar uns recursos aqui, outros acolá, postá-las pra que fossem curtidas pelos amigos do Face. Sentia sinceramente que eram memórias totalmente suas, vividas de um jeito suave e bonito, como deveria ser o verdadeiro ritmo da vida: ele e Elisa; Elisa e ele.
Com o advento do Google Maps, aperfeiçoou ainda mais seu perambular pelo mundo. O Google Maps virou uma extensão natural dos relatos arquivados. Fabinho separava as cidades, as histórias, anotava as referências de ruas, largos, monumentos, igrejas, hotéis e praças indicados pelos viajantes e digitava-os no aplicativo. Passava dias e noites viajando por aqueles lugares maravilhosos, a mão quente e viva de Elisa, apertada na dele.
De vez em quando, ouvia rumores: Fabinho está doido, coitado, se tranca em casa, depois, sai a dizer que viajou! Ele, porém, sacudia a cabeça e tratava de esquecer. Um ou outro conterrâneo podia ser mais atrevido e, de modo provocativo, barrar-lhe o caminho quando, por necessidade, nunca por distração, andava pela cidade: por que não viaja de verdade, cidadão do mundo?, zoava o intruso. Mas não adiantava, Fabinho punha as mãos no bolso, assobiava uma canção de quando ia ao Marabá com Elisa, fitava o interlocutor e comentava: está ouvindo essa música? Nossa, essa é linda de matar! A pessoa podia rir e falar asneiras à vontade, ele virava as costas e seguia seu caminho, cantarolando os versos daquela canção imbatível que, misteriosamente, voltava a ser tocada nas ruas da cidade: olha eu nem me lembro quanto tempo faz/mas eu não esqueço que te amei demais/pois nem mesmo o tempo conseguiu fazer esquecer você... Sequer se sentia ofendido com as abordagens, murmurava consigo que estava tudo bem, tratava-se de pessoas encafifadas, em Bom Jesus da Lapa havia muitas delas: pegajosas, porque deixavam a obsessão de dentro subir, criar alvoroço e perturbar a paz alheia. Coitadas!, morrerão loucas, já dizia seu pai, lá no passado, pra que se chatear então?
Não, não é bom ter ideias fixas, no máximo, podem ser saltitantes, considerava Fabinho. Ele, por exemplo. Ele seguia vivendo do seu jeito, sem dramas, sem abismos, e de repente: pimba!, o tempo o obrigava a mudar, a pensar diferente. Acontecia, simplesmente, acontecia. Como quando se viu vidrado na Europa. Ocorreu de se achar assim: somente a Europa no seu horizonte de interesse. Passou a ignorar qualquer correspondência que viesse tratar de outro sítio. Porém, essa obsessão também arrefeceu, quando Fabinho leu o relato de um poeta que fora a Frankfurt, se hospedara num quarto em frente ao rio Meno, e voltara com um isqueiro feminino na bagagem, passando, sem que ninguém percebesse, por todas as barreiras dos aeroportos, internacionais e nacionais. O poeta era engraçado, mandou uma caneca com a bandeira alemã e o isqueiro colorido, por PAC. Simples lembrancinhas, ele escrevera a Fábio, guarde-as como metáfora de tudo aquilo que não pode acontecer. Rapidamente, Fabinho tratou de entender o que estava por trás daquela mensagem: não havia nada de mais na Europa, o rio era bacana como muitos tantos que existem por aí, a cerveja podia ser tanto boa quanto ruim, e haveria falhas na segurança dos aeroportos, como em qualquer lugar do Brasil e resto da América. O que deu a pista pra essa leitura sem erro foi a penúltima frase daquele relato: Frankfurt é bacana, declarava o viajante, chique até, mas confesso que gostei mais de Buenos Aires e São Paulo. Mas é claro!, resmungou Fabinho, batendo no próprio joelho. Ainda estupefato por compreender tão rapidamente as entrelinhas não de um missivista qualquer, mas, vejam bem!, de um poeta — um poeta que fora a uma feira literária na Alemanha e se hospedou num quarto com entrada independente, com vista pro rio Meno e jardim cheio de margaridas! Conforme disseram a Fabinho há anos, ainda à época do ginásio no Wilson Lins, um verdadeiro poeta deve imitar Deus e, como Ele, escrever certo por linhas tortas. É óbvio!, murmurou Fabinho, mandando ao bardo uma breve resposta: obrigado e aplausos.
* * *
A loucura dele não é fácil não, dizia alguém de voz familiar, é um negócio diferente e bem apurado. A voz tinha uma gravidade e um pouco de rouquidão. Um velho?, pensou Fabinho, dentro da preguiça de abrir os olhos. Seu Raimundo talvez? Mas como se trata de um louco manso, e parece só fazer mal a si mesmo, não há o que temer, pontuou outra voz, essa feminina e de sotaque moroso. Fabinho não queria abrir os olhos naquele momento, mas ainda assim percebeu: a segunda voz era certamente de alguém de Salvador. Isso o encrespou um pouco: não gostava de pessoas oriundas de Salvador, achava-as chatas, metidas a superiores e, sobretudo, barulhentas. Falavam naquele jeitinho frouxo e fingiam-se de amistosas, porém, que ninguém comprasse tal engano, no fundo, eram barulhentas e agressivas, pior: tinham o péssimo costume de jogar lixo nas ruas. Fabinho mesmo observou, alarmado: homens, mulheres, velhos, crianças, todo mundo!, descartando, sem a menor cerimônia, cascas de frutas, latas e frascos de bebidas, embalagens de produtos, o que quer que fosse, pelas ruas da cidade. Ele passara quase um mês na capital baiana e sabia muito bem: os soteropolitanos têm modos de fazer cair o queixo do próprio Cramunhão. Certa feita, sentou-se numa barraca, na praia de Ipitanga, com Elisa. Estavam sem fome e só consumiram uma água de coco e duas latinhas de cerveja. Queriam relaxar, pegar um solzinho, apreciar a brisa marinha, no entanto, estava difícil: na barraca o som era uma aporrinhação tremenda, músicas sem sentido, sem narração, só gente gritando boboseiras como alegria, meu povo e já é carnaval, cidade! Tanto Fabinho quanto Elisa odiavam aquelas músicas sem propósito. E, pra piorar, algumas pessoas nas mesas mais próximas também falavam alto, como se estivessem numa maldita feira. Desgostoso, o casal resolveu não esticar a manhã em Ipitanga. Pois não é que quando veio a conta havia o acréscimo de uma taxa pelo uso das cadeiras e do guarda-sol? Um verdadeiro absurdo! Reclamaram: quando se sentaram, não havia aviso de que se pagava aluguel de cadeiras e guarda-sol! Mas de nada adiantou protestar, tiveram de pagar e sair correndo dali: foram ameaçados pelos filhos do dono e receberam olhares enviesados dos outros clientes. Alguém na mesa ao lado chamou-os de metidos a espertinhos. Metidos a espertinhos?, ele se empertigou. Que gente é essa?, murmurou Elisa, envergonhada, é pra isso que nascem na primeira capital do País? Prefiro Porto Seguro e Ilhéus, ruminou Fabinho, no que foi prontamente apoiado pela companheira de viagem: Salvador é uma farsa, meu amigo!
Uma farsa, ele repetiu, ainda de olhos fechados. Verdade verdadeira, murmurou. Sentia vontade de ficar ali, dentro daquele sonho que já não é mais sonho, senão preguiça esbranquiçada. Tentou relaxar de novo, cair de cabeça nas imagens. Hmmmm, mesmo sem dormir, ficar de bobeira deitado era bom demais.
Minutos depois, quando abriu os olhos, percebeu que estava num hospital. Imediatamente a sensação boa o abandonou e ele praguejou de mau humor. Mesmo quando lhe trouxeram água, comida e remédios, continuou de mau humor e se recusou a falar com quem quer que na porta surgisse. Detestava hospitais, seus cheiros, suas cores, seus horários. Quem o havia levado pra ali? Ergueu-se pra ir embora, mas foi detido pela mesma enfermeira pra quem trabalhara no ano passado, uma senhora gorda e de poucas palavras, comadre de seu Raimundo. Cobrara até barato pra pintar a casa dela, por pura consideração a seu Raimundo, que fizera as recomendações, mas Fabinho bem sabe que não devia ter baixado o preço, pois fora uma pintura cheia de detalhes, numa casa de seis cômodos, no São Gotardo. E como é que essa senhora devolvia a gentileza do desconto que fizera à época? Prendendo-o à toa num leito de hospital! Tinha graça! Irritado, concentrou-se todo naquele ato de desgostar de onde estava. Quando alguém lhe dirigia a palavra, ele cruzava os braços e fazia uma tromba pior do que a do mais forte de todos os elefantes existentes no planeta. Respirava de forma exaltada, como se estivesse numa corrida e encarava o interlocutor, enraivado — fosse médico, enfermeira, técnico, parente, ou mesmo o policial da Civil que aparecera a fim de questionar por que Fabinho se fizera passar por irmão de um rapaz assassinado. De braços cruzados, respirando altíssimo, ele encarou em silêncio o policial.
O homem se voltou realmente surpreso e indagou à enfermeira que estava a arrumar o soro:
— Esse rapaz é doido?
— Completamente — respondeu ela.
— Você o conhece? — quis saber o policial.
— É Fabinho Viajante Sem Fronteiras — explicou a funcionária, bastante jocosa. — Quase todos o conhecem, é o maior cosmopolita de Bom Jesus da Lapa.
O investigador não entendeu a ironia e ela tratou de reexplicar:
— É filho do finado Zé Pintor e da falecida professora Zildinha — tornou a enfermeira. — Nunca foi certo não. Ele se tranca em casa e depois reaparece, dizendo que viajou. Mostra fotos alheias, alegando que são suas. Nunca saiu da Lapa, mas jura que viaja todo verão. Até na Alemanha já andou a mentir que esteve.
— Na Alemanha? — repetiu o policial, franzindo a testa. — Por que na Alemanha? Por que não Estados Unidos ou França?
— Quem diabo sabe?! — rebateu a funcionária. — Simplesmente, ele esteve no ano passado em Frankfurt! Foi a uma feira literária e alugou um quarto, à beira de um rio chamado Meno.
— Nova Iorque não? — insistiu o investigador.
A enfermeira riu:
— Não dê a ideia, daqui a pouco ele inventa que foi ver a neve caindo por lá...
— E por que razão ele está com raiva? — continuou o homem.
— Não quer ficar aqui no hospital — explicou a funcionária.
— Ah! — fez o policial, boquiaberto.
O diálogo entre o investigador e a enfermeira iniciou e terminou sem que Fabinho desse uma única palavra em sua própria defesa. Permaneceu inerte, a respiração alta, mas tratando de não mexer qualquer músculo, os braços cruzados, os olhos agressivos, o único movimento possível era o de passar os olhos ora num, ora noutro. Enraivado, tão somente enraivado. Mesmo quando os dois se foram, fechando a porta, não se mexeu. Insistiu no gesto de raiva consigo, até que, exausto, os músculos doloridos, caiu na cama e voltou a dormir.
Ao final do dia, veio um médico, acompanhado da enfermeira, e ambos também tentaram em vão fazer o paciente falar. O doutor trazia exames na mão, verificava-os e encarava Fabinho, severo, manipulando um bloco de informações. Deixe de ser malcriado e responda ao doutor, mandou a enfermeira, qual mãe rigorosa. Todavia, o paciente adotou sua velha postura de ficar mudo, de braços cruzados, o que fez a enfermeira rir por dentro e o médico, se enfezar de vez.
— Olhe aqui, rapaz — vociferou o doutor — não somos obrigados a aguentar sua grosseria! Estamos lhe fazendo um favor, entendeu? Padre Francisco veio pessoalmente pedir que arranjássemos leito pra você.
Ajeitava os papéis na prancheta, ajeitava os óculos e encarava Fabinho. Mas como o paciente não dava sinais de que iria, enfim, interagir, o médico foi subindo o tom de voz, pro completo espanto da enfermeira, que, antes, julgava o doutor um doce de pessoa. Ao lado do médico, calada, ela observava a cena, estudando qual deveria ser o momento certo de dizer ao doutor que se acalmasse, aquele paciente era caso perdido. É doido, doutor, ela já ensaiava dizer, é doido de ver e sentir quem já morreu, é doido de viajar sem sair de casa, de namorar sem ter ninguém ao lado, de ouvir músicas que não mais tocam, de entrar nas lembranças alheias, de habitar fotografias de outrem, é doido sem jeito, daqueles que bastam a si mesmo, não perca seu tempo, doutor!
— Sabia que você chegou inconsciente ao hospital, sem documentos, sem plano de saúde, sequer tinha o cartão do SUS? — acusou o médico. — Sim, um completo indigente! Mas acaso alguém aqui o expulsou ou o tratou mal? Não! Foi muito bem atendido, as pessoas te reconheceram, correram a sua casa e trouxeram seus documentos, até um padre veio pedir vaga pra você!
Obstinado, Fabinho continuava calado, a encarar o médico, de braços cruzados, respirando alto, olhos de pouca simpatia.
— Pois então, meu caro — continuou o médico, um pouco mais contido. — O senhor está abaixo do peso pra um homem de sua idade e de sua altura. E outra: tem pressão baixa. Precisa se alimentar melhor.
Como não estava conseguindo resposta alguma, o doutor apelou:
— Não precisa ficar amuado. Vamos lhe dar alta. Mas saiba que a polícia está avisada de sua liberação. Você não se meta a fingir que é irmão de quem não é. Um homem foi assassinado e a polícia precisa fazer o trabalho dela. Se você tentar atrapalhar, será preso.
Horrorizado com aquela acusação séria, finalmente, o paciente saiu do estado de mutismo:
— Preso? — gritou, estupefato.
A enfermeira se adiantou na explicação:
— Sim, pode ser preso, se tentar atrapalhar de novo as investigações. Não faça mais isso, entendeu?
— Preso! — repetiu Fabinho, assustado.
— Exatamente — confirmou o médico. — A polícia não tem tempo pra perder com molecagens.
— Não sou moleque! — gritou o paciente. — Eu trabalho! Me respeite!
— Psssiiiiu! — fez a enfermeira de forma grave. — Não grite com o doutor!
— Não sou moleque — tornou Fabinho, mais baixo. — Eu trabalho... Eu pintei sua casa no ano passado, fiz até desconto! A senhora não se lembra?
A enfermeira balançou a cabeça, afirmativamente. Se lembrava e gostara muito do trabalho dele. Mas não era esse o caso. O problema é que Fabinho não podia se passar por irmão de uma pessoa assassinada. Que deu nele pra inventar uma besteira daquelas? Queria brincar com a polícia? Não podia. Estava errado.
— Não fiz nada — ele se defendeu.
— Que aconteceu então, meu filho? — indagou a enfermeira, mais simpática. — Como se meteu nessa confusão toda?
Mais calmo, Fabinho resumiu:
— Estava em casa, debaixo da goiabeira, bebendo café. Nisso, o vizinho achou de colocar a trilha sonora de quando eu ia com Elisa pro Cine Marabá. Aí, no mesmo instante, jogaram uma aviãozinho de papel com uma receita pra se plantar uma árvore chamada de Santa Felicidade. Lembrei de uma aula onde se tratou do tema da sincronicidade. A senhora já ouviu falar?
— Não! — respondeu a enfermeira, começando a se irritar com aquela conversa sem tino do paciente.
— Sim! — disse o médico, achando engraçado o jeito tão diferente de contar as coisas daquele rapaz. — O que tem a sincronicidade?
— É uma coisa que acontece — comentou Fabinho. — Acontece quando menos se espera, a qualquer hora, em todo lugar, sabiam?
— É verdade — concordou o médico.
— E daí? — espumou a enfermeira, sem paciência.
Fabinho logo retomou o fio:
— Pois eu estava lendo o passo a passo que veio descrito no aviãozinho de papel... O que se deve fazer pra se cultivar aquela planta chamada Santa Felicidade... Mas tinha no bolso o isqueiro trazido de Frankfurt, acendi um cigarro com ele e me distrai. Nisso, o vizinho já havia pulado de Márcio Greyck pra Julio Iglesias... Eu realmente fiquei abismado com aquela trilha... Vocês acreditam?
— Que interessante — disse o médico, que não sabia quem era Márcio Greyck, tampouco Julio Iglesias.
— Posso imaginar — murmurou a enfermeira, com desdém.
Certo de que estava sendo compreendido pelos dois interlocutores, Fabinho prosseguiu:
— Pois por incrível que pareça, tocaram a campanhia. Era sábado e eu não esperava nenhuma visita. Fui atender e lá estava uma mulher que me pareceu completamente desconhecida, mas depois eu soube que podia ser alguém familiar.
— Quem era? — indagou a enfermeira.
Sentindo uma pontada na nuca, Fabinho teve medo de reconhecer: era realmente a sua mãe quem tocara a campanhia? O jeito de andar, os olhos, o cabelo... Sim, pareciam demais... Mas não, não tinha razão de existir, não podia ser.
— Não tenho certeza — despistou Fabinho. — Uma senhora de cabelos presos. Ela estava muito nervosa e disse que meu irmão havia sido morto e eu tinha de acompanhá-la ao local. Calcei os chinelos, apanhei as chaves e fui.
— Mas que irmão? Que irmão, Fabinho? — gritou, de repente, a enfermeira.
— Calma! Isso era o que eu queria saber — respondeu ele.
— Se você é filho único, moço! — censurou a enfermeira.
— Pois é! — concordou o pintor. — Só que naquela hora essa informação me fugiu!
O médico arregalou os olhos:
— Você se esqueceu que é filho único? — questionou o doutor.
— Completamente — retrucou o paciente.
— E depois? — insistiu a enfermeira. — O que aconteceu?
— Fui andando com ela e não havia lixeira pra eu colocar o cigarro já fumado... Vocês sabem que não se deve jogar coisas na rua, mesmo sendo a Lapa um lugar muito sujo e descuidado, devemos jogar limpo...
— Pule essa parte — pediu a enfermeira, já acostumada com as peripécias verbais do pintor, que contava os casos mais espantosos do mundo, interrompidos aqui e ali por digressões generalizadas. — Você seguiu a mulher desconhecida e foi parar no local do crime, é isso?
Fabinho assentiu.
— E depois? — replicou o médico.
— Depois, nada — disse o pintor, que realmente se perdia quando alguém lhe cortava as digressões.
— Como nada? — insistiu o doutor. — Você chegou ao local do crime e sustentou que era irmão da vítima! Por que fez isso?
— Não fiz nada! Foram eles que disseram — se defendeu Fabinho.
— Eles quem? — indagou a enfermeira.
— O homem oculto que estava no bar e o outro, que me barrou a entrada — explicou o pintor.
— Que homem oculto era esse? — quis saber a enfermeira.
Fabinho revirou os olhos, começando a perder a paciência. Aquela enfermeira era uma chata de plantão. Próxima vez que fosse pintar sua casa, ia cobrar o olho da cara. Se ela não quisesse, chamasse o diabo. Ora que homem oculto era esse! Oculto é oculto, pombas! Era abestalhada a sujeita pra desconhecer um troço simples desses? Por sorte, ele se lembrou da explicação de uma aula de gramática: oculto é aquele que pratica a ação, mas está invisível. Sabemos dele pelo verbo, mas não aparece na frase.
Pronto!, repetiu a definição, de boa vontade:
— Era um homem invisível, estava lá dentro do bar, sabíamos dele pelo verbo, mas não se podia vê-lo — respondeu.
A enfermeira respirou fundo diante da fala absurda do paciente. Necessário era ter muito controle naquele instante, pra não mandar o rapaz ir à merda com tanta loucura enfileirada.
— Tá, tá bom... — rebateu. — Então esses dois homens confundiram você com o irmão da vítima... e daí?
— Daí, chegaram os policiais e continuaram a dizer que era meu irmão quem estava morto — prosseguiu Fabinho. — Tudo foi acontecendo. Eu não soube o que fazer.
— Você deveria ter desmentido — pontuou o médico. — Se não tem irmãos, deveria ter desmentido.
— Essa informação estava ausente — murmurou Fabinho. — Na hora lá, estava ausente. Somente quando vi que era uma menina e não um homem, que estava ensanguentada, mas sorria, somente quando me deram uma pancada na nuca, me lembrei que sou filho único.
O médico se espantou:
— Que história é essa? — questionou. — Havia uma menina ensaguentada? E te agrediram no bar?
— Não tinha menina nenhuma naquele bar — interferiu a enfermeira, já cansada de tanta narração esdrúxula. — Mataram um homem lá. Um moço de Igaporã. Vinha à Lapa, de quando em quando, e namorava com mulheres casadas. O marido de uma delas o seguiu e o matou com três tiros. O resto é invenção da cabeça desse cosmopolita.
— Ah! — fez o médico, a olhar paciente e enfermeira, alternadamente, pensando em que terra de doido viera ele se meter.
Fabinho, no entanto, ignorou a fala da enfermeira e continuou:
— Após a pancada, eu apaguei e acordei aqui, neste hospital.
— Não houve pancada nenhuma — cortou a enfermeira. — Você teve hipoglicemia. Tem de parar de tomar café puro, deve se alimentar direito e evitar andar à toa debaixo desse sol quente.
Ao ouvir aquilo, Fabinho realmente se chateou com mulher. Deu no limite dele, simplesmente deu! Ergueu-se da cama, decidido:
— Olha aqui, dona Carmem, tenho meu jeito de viver e estou bem com ele, muito obrigado pelos seus conselhos, mas não me servem. Pela manhã só se deve beber uma ou duas xícaras de café. Logo mais há o almoço e se resolve qualquer problema de fome. E a senhora, por favor, cuide de sua vida.
— Ei, não ponha o dedo em meu nariz! — gritou a enfermeira.
— E não me chame mais pra pintar sua casa! — vociferou o paciente. — Se me chamar, cobrarei o triplo do preço. Não adianta vir seu Raimundo querer mediação.
— Pois muito bem, seu maluco — devolveu a enfermeira. — Não te chamarei nunca mais. Pensa que é o único pintor da cidade? Está enganado. Seu tempo está passando e as pessoas estão cansadas de suas loucuras.
— E eu também! — rebateu Fabinho. — Estou cansado de todas elas! Vou no mês que vem pra Cartagena. Pra mim chega! Bom Jesus da Lapa já passou da hora de sumir do meu horizonte!
Virou às costas e foi saindo, arrastando os chinelos. Mesmo achando tudo muito esquisito entre aqueles dois, o médico evitou rir e correu no encalço do paciente.
— Volte aqui, rapaz, há uma medicação pra você — gritou, antes que o pintor avançasse pra saída.
Educadamente, Fabinho se controlou, ouviu as recomendações médicas, pegou a receita, a lista de alimentos que deveria consumir, prometeu fazer quatro refeições ao dia, sim, sim, tiraria sempre a pressão, pois não, doutor, não quis lhe incomodar, me desculpe qualquer coisa, tudo de bom pro senhor, agradeceu a todos e rumou pra casa. Enquanto andava, percebia à sua volta burburinhos variados. Estavam a falar dele, é claro, mas Fabinho ignorou aquela gente, feliz por terem lhe dito as palavras mágicas: você pode ir pra casa. Caaasaaaaa!, ele murmurou pra si, os olhos saltando de alegria, como se fosse um personagem de animação. Casa, ele saiu trotando pelas ruas, casa, casa, casa, dizia, até que, enfim, chegou na rua do Desatino, abriu o portão e entrou.
A primeira coisa que fez foi molhar os pezinhos de Santa Felicidade, plantados nos caqueiros, na entrada de sua humilde morada. Conferiu se estava tudo bem, sequer se lembrara quando regou as bichinhas da última vez. Arrancou umas folhas amareladas, e ficou animado com a aparência delas: estavam mais verdes do que nunca, salvo uma ou outra folha murcha.
De duas a três frutas por dia, o médico dissera que ele tinha de consumir, mas que droga!, pensava, não gostava de fruta, só de pão com manteiga, amendoim torrado, salame com limão, cerveja e café. Ia comprar laranja e banana logo mais. Por enquanto, comeria aquelas goiabas que caíam lá fora. Qualquer coisa, no quintal do vizinho tinha um pé de umbu. Pediria alguns. Estou doente, contaria, tenho de comer umas bobagens aí que o médico passou. Sim, explicaria tudo ao vizinho, ou seria vizinha? Boa oportunidade pra diminuir a distância entre eles. Pegaria alguns umbus e faria uma umbuzada, pronto, melhor do que ficar comendo três porções de fruta por dia. Porções... Aquele médico era engraçado: em vez de dizer unidade, dizia porções. Conferiu a lista de alimentos e não viu goiaba nem umbu. Os exemplos de frutas eram tangerina, laranja, mamão, maçã, melancia, pêra, banana, uva e pêssego. Fabinho riu: pêssego em Bom Jesus da Lapa! Tá de sacanagem, né, doutor? Não, não ia comprar pêra, tenha paciência... Melancia, laranja e banana tudo bem, mas pêra? O que se passava com aquela gente, afinal? Não conseguia entender.
Tomou um banho demorado. Usou quase meio frasco de xampu. Vestiu-se, foi ao quintal catar algumas goiabas. Muitas enchem de bicho, é preciso lavar e partir com cuidado. Os bichos são brancos e nojentinhos, saltam no meio de uma mordida, caso a gente não dê fé deles. Fabinho fez cara de asco: só comia o doce de goiaba mesmo, aprendera a fazer desde a adolescência, com calda. Mas ordens são ordens, e vindas de um médico esquisito então? Melhor obedecer. Quando ia voltar pra cozinha, o vizinho ou vizinha irrompeu, do outro lado do muro, com Peninha. Nossa!, Fabinho aprovou, rindo, estava passando da hora de conhecer aquele vizinho, não? Vi um grande amor gritar dentro de mim como eu sonhei um dia... quando o meu mundo era mais mundo e todo mundo admitia... uma mudança muito estranha, mais pureza, mais carinho, mais calma, mais alegria, no meu jeito de me dar...... Tá vendo?, ele disse pra si mesmo, canção boa é assim, não tem preguiça de dizer algo acerca da vida, tem história, não vem com um monte de monossílabos e malditos tchus-tchus-tchus.
Separou umas goiabas, lavou-as, buscou uma cestinha e as colocou dentro da geladeira. Quando geladas devem ser mais tragáveis, deduziu. Comeria duas ou três antes de dormir. Pegou as outras e pôs num saco plástico. Iria tocar a sineta do vizinho, oferecer umas frutas e travar uma conversa sadia com ele. É preciso ser educado, sobretudo com quem está próximo de nós. Sim, seu pai lhe dissera isso a vida inteira.
Fabinho ia passando pela sala, decidido a fazer a tal visita que há semanas adiava, porém, seus olhos bateram numa das gavetas do arquivo que estava escancarada. Notou que algumas cartas e fotos foram espalhadas na mesa. Olhou tudo aquilo de sobrancelhas arqueadas, mas não se assustou: no hospital lhe disseram que alguém pegou a chave e veio buscar os documentos de Fabinho, a fim de que esse não fosse internado como indigente. Pois não era melhor passar por indigente do que ter suas coisas bulidas? Está certo isso? Vir um desgraçado ou desgraçada, fingindo-se de bom samaritano, e andar a mexer nas memórias alheias? Ele respirou fundo, contendo-se. As pessoas são assim: curiosas, enxeridas, folgadas. Foi pegando as cartas e fotos e recolocando-as nos seus devidos lugares. Mexeram em tudo! E pra quê? Provavelmente pra roubar, não tinham condições de viajar, eram uns babacas medrosos, a cabeça enterrada na rotina da Lapa desde que vieram ao mundo, por isso, tinham inveja dele, um viajante, um cosmopolita... Gente medonha, praguejou, terminando de pôr tudo no lugar, realmente, conviver com essas pessoas é o fim.
Mal abriu a porta, se deparou com um barquinho na calçada. Aproximou-se, devagar, e constatou, sem surpresa, a cor do papel: azul-bebê. Ele sorriu: que interessante! No mesmíssimo segundo em que se abaixou pra pegar o objeto, o vizinho pôs um muscão de Fernando Mendes, daqueles de fazer marmanjo velho cair num canto e chorar: sentada na porta em sua cadeira de rodas ela estava/seus olhos tão lindos, sem ter alegria/tão tristes choravam/mas quando eu passava a sua tristeza chegava ao fim/tua boca, pequena, no mesmo instante/sorria pra mim. Que filho da puta!, suspirou Fabinho, vai cutucar sem piedade o coração de sua mãe!, resmungou, rindo. Era de lenhar aquela música! Ele pegou o barquinho do chão, percebeu que havia algo escrito, mas dobrou-o com cuidado e pôs no bolso. Leria depois.
Podia sentir o cheiro de lavanda de Elisa invadindo-lhe. Aspirou profundamente: tão bom! Esticou a mão e segurou firme na dela, que estava ali, vivíssima. Do seu lado. A verdadeira felicidade sempre fora Elisa. Linda. E santa. Apertou a mão dela e foi tocar a sineta do misterioso vizinho. Lógico que poderia ser uma mulher do outro lado do muro. Ou uma família inteira. De todo modo, alguém que gostava de boa música, Fabinho considerou. Daria as boas vindas, pediria desculpas por não ter feito a visita antes, estava viajando, sabe? No verão, sempre fugia do Brasil. Gostava de atravessar o oceano, beber novos ares. Onde? Espanha, Portugal. Variava, variava muito. Porém, sempre fora educado, seu pai lhe ensinou: educação e gentileza são a chave do mundo, entendeu, meu filho? Mas é claro!, Fabinho respondeu, batendo na própria perna, como não?
[Publicado originalmente na antologia Casa de Orates, organizada
por Rodrigo Melo. Salvador: Mondrongo, 2016]
março, 2018
Állex Leilla nasceu em 1971, em Bom Jesus da Lapa/BA. Publicou seu primeiro livro Urbanos (contos), premiado pela BRASKEM e Fundação Casa de Jorge Amado, em 1997. É autora de Obscuros (contos, 1999); Henrique (romance, 2001); participou da antologia 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (2004) com o texto "Um elefante". Em 2009, publicou a novela O sol que a chuva apagou. Em 2010, lançou o romance Primavera nos ossos, premiado pelo Programa Petrobras Cultural. Também em 2010, ganhou o 20° Concurso de Contos Luiz Vilela, com o texto "Felicidade não se conta". Foi selecionada com o conto "Não se esqueça de pisar firme no coração do mundo" para integrar a antologia Wir Sind Bereit. Junge Prosa aus Brasilien, da editora alemã Lettrétage, lançada em outubro de 2013, na Feira de Frankfurt/Alemanha. Integra, ainda, a antologia Panorama de Autores Bahianos, da Fundação Cultural do Estado da Bahia e Editora P55, lançada na Feira de Frankfurt, em 2013, em quatro línguas: português, alemão, inglês e espanhol. Em 2013, lançou o livro de contos Chuva Secreta. E em 2016, publicou o romance Não se vai sozinho ao paraíso. É graduada em Letras, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde fez mestrado em Letras e Linguística. É doutora em Estudos Literários, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora de Literatura Portuguesa e de Tópicos da Narrativa, na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e tem pós-doutorado em Literatura pela USP. Vive, atualmente, em Salvador/BA. Seu blogue: www.allexleilla.blogspot.com.
Mais Állex Leilla na Germina
> Contos