FANTASIA
Ainda existem mulheres bastante puras
para fazer vontade aos viciados.
Manuel Bandeira
Quando passei os dedos sobre os meus cabelos, alguns confetes, emaranhados entre os cachos mais espessos, soltaram-se e caíram no branco asséptico do piso. A balconista, que atendia ao telefone e anotava os pedidos, sorriu. Verônica deitou a cabeça em meus ombros. Quis lhe dizer que a vida, para a perversão do homem, é longa e fértil; que tempo há para que a integridade se arraste para a lama, para a prática de covardias, de traições, de vilezas, que apenas o estudo do acaso e suas circunstâncias poderia prever. Era bom e agora não sou mais. Acontece com toda a gente. Verônica rende-se a mim e deita a cabeça sobre os meus ombros. Sorrio e no ato tomo emprestado, do sorriso da balconista, a aleijada ternura. Amo também. O tempo do amor é qualquer tempo, o caráter do amor é qualquer caráter e a moral do amor é qualquer moral, sim, o leitor entendeu bem: amo Verônica. Levo a palma da mão direita até os seus lábios. Ela beija-me a mão, piedosa. Levo a mão beijada aos meus cabelos anelados. Ajeito-os. Confetes se desprendem e nevam sobre os meus ombros, sobre o branco asséptico estéril.
Verônica está usando uma camiseta com a frase "Madame Bovary c'est moi". Não é algo fácil de se ler. O homem que ama é qualquer homem que, se não possui, sonha possuir. É a minha fantasia de carnaval, ela diz e sorri. A balconista grita o meu nome. Vou até ela e recebo um embrulho contendo um x-frango bacon e um x-burguer vinagrete. Quer mostarda e catchup? Aceno que sim e recebo pequenas porções dos condimentos. Madame-Bovary-c'est-moi engata um dos braços ao meu e assim saímos da lanchonete, pisoteando, distraídos, os confetes sobre o chão — como se fôssemos um poema ruim, como se fôssemos, meu deus do céu, uma degenerada marchinha de carnaval.
Para o quarto?, pergunto enquanto a observo limpar a boca com um guardanapo e, antes de girar a chave na ignição, debruço-me sobre o seu corpo. Beijo-lhe a boca. O gosto de suor, de cigarro, de cerveja, do lanche há pouco devorado — os cheiros todos indistinguíveis uns dos outros. Enquanto beijo a boca afasto, com a mão mais próxima, os seus joelhos, acaricio a parte interna das coxas. Ao perceber as unhas, ela retrai-se. Avanço. Por sobre o duro tecido jeans dos shorts, acaricio-a. O carro está estacionado sob a sombra espessa de duas palmeiras. Ninguém nos vê. Tento tirar a camiseta em que está escrito "Madame Bovary c'est-moi". Tento, na verdade, rasgá-la. Um homem que possui é qualquer homem que destrói. Ela resiste. Ligo o carro.
Você sabe, meu amor, que a cidade está morta. Sabe que todos estão no baile da terça-feira gorda e que dormem os que não estão. Entre nós, há muitos que não gostam de carnaval, mas você sabe que não há outro lugar para ir, digo, tomando desespero por lucidez. E ela me contraria — como se encenássemos Hiroshima Mon Amour. Eu sei que a cidade vive. Eu sei que ninguém está no falido baile de carnaval da terça-feira gorda e que, em seus quartos, os corpos insones mordem as sombras com uma ânsia de arrancar sangue. Eu não sei. Eu não conheço o homem que beija a minha boca.
Do alto dos postes cai uma claridade esfumada, uma mistura de pó de mármore e cinzas de árvores, de lavouras inteiras queimadas na planície limite. Os homens, as mulheres que passam são fantasias borradas: um velho sobre uma bicicleta, uma senhora de corpo momesco mascarada como nos carnavais de Veneza, um carro fora de controle ocupado por rapazes que gritam e lançam, contra os muros, esvaziadas garrafas de vodca e uísque.
Já disse qual a minha fantasia, não disse?
Olho-a, incomodado.
Estou fantasiada de você, meu amor, de você. E então me lembro da tarde. O sol abrasando as paredes do quarto. A penumbra castanha abrasada. O corpo dela movendo-se como uma enguia. Os seios como vitórias-régias que vêm à tona no ardor avermelhado. Lembro-me dela se vestindo. O seu corpo nu saindo do horizonte das minhas retinas. Lembro-me dela remexendo as minhas camisetas. Pega aquela em que está escrita a frase "Madame Bovary c'est moi". Veste. Sou você. É a minha fantasia qualquer. Você. Poetinha de merda que ninguém sabe quem foi. Canalha moralista. Estou fantasiada de carne desvairada.
EVIDENCE RESORT
A mudança para o condomínio de casas Evidence Resort não havia completado dois meses quando Cristina começou a tomar ácido fólico. Sentia-se feliz o bastante para pensar em posteridade. Com a janela do quarto, no segundo andar da construção, voltada para o oeste, a visão do poente incendiado era um cartão-postal, e isso nem era o que mais a maravilhava. Preferia o instante imediatamente depois, quando o entardecer já era uma brisa arrefecida — a claridade estourada dissolvendo-se em tons de violeta quase púrpura e, na relva diante do muro eletrificado e farpado, um novelo de neblina se desenrolando rente ao solo. Mais além, um trecho da estrada, o frenesi constante dos carros que passavam velozes, e, no outro lado da rodovia, a gigantesca cratera da pedreira abandonada. Para Cristina, tal cenário descortinava uma paz decorrente da certeza de estar distante, a satisfação por ter alcançado o sul mais lindo.
A notícia da gravidez veio no início de julho, denunciada por um teste doméstico realizado numa manhã de falta d'água. Cristina, em meio ao primeiro sentimento de incredulidade, pensou que o amarelo da urina, claramente visível no vaso sanitário, atormentava-a como uma nudez inconveniente. Demorou cerca de quinze minutos para contar as novidades a Marcelo.
Vamos estourar um champanhe à noite.
Cristina argumentou que talvez já estivesse proibida de ingerir bebidas alcóolicas. Marcelo concordou e sugeriu duas canecas de chá.
Pode ser um novo hábito, ela falou, sorrindo, enquanto passava a água da chaleira para duas grandes canecas que traziam, na porcelana, inscrições e desenhos ao estilo da publicidade americana dos anos 40. Tommy's Brand Coffe e Radio Brand Coffe. No interior de cada uma das canecas, um sachê de chá da Twining's of London. Marcelo escolhera Lady Grey; Cristina, Wild Berries. A água ficou rubra e subiu um vapor contra o seu rosto. Estavam sentados em torno da mesa de fórmica branca, um de cada lado. Marcelo brincava de submergir e emergir o sachê. Cristina cortou um limão siciliano em duas metades e espremeu levemente uma das metades sobre o chá, depois cortou uma rodela de limão da outra metade e também a colocou dentro da caneca. Pensava nos novelos de neblina correndo rentes ao chão, no relvado do outro lado do muro, como se do outro lado não houvesse uma rodovia convulsa vinte e quatro horas por dia.
Não está feliz?, perguntou para Marcelo.
Mas é claro, meu amor, disse e arriscou os primeiros goles no chá. Gosto tanto de Lady Grey, mas é preciso algum açúcar, e então, de um pequeno pote de porcelana, pescou três torrões para adoçar a bebida e, enquanto os dissolvia com uma colherzinha, falou em português, mas com uma voz que acreditava ser a de um aristocrata inglês. Três torrões de açúcar para o Senhor Davenport, é como ele gosta. Segurou forte a mão de Cristina. Vai dar tudo certo, não percebe? Não é sempre que o amor é tão nítido, deixando pegadas claramente visíveis e então é só seguir o seu rastro. Só precisamos tomar cuidado com o cartão de crédito. Dois mil reais no cheque especial mês passado e esse mês no mesmo ritmo.
Cristina pensava em duas realidades como se fossem uma única: a neblina e o útero em flor. Velho hábito, amaldiçoou o próprio corpo: magro demais, depois gordo demais, depois infiel demais, tornando-se tão radicalmente diferente daquele corpo que lhe fora apresentado pelo espelho na juventude, traindo-a, e ainda teria que passar pelo extremo da gravidez e do parto. Pic, disse para um incrédulo Marcelo, é um corte cirúrgico que se faz entre o ânus e a vagina para facilitar o trabalho de parto. As contrações, quando o feto está pronto pra nascer, são confundíveis com vontade de defecar. Havia tomado anticoncepcionais durante dez anos, sem interrupção. Adoless, à base de estrogênio, até que, durante a menstruação, de seu corpo saiu um musgo encarnado. A ginecologista disse que estava tudo bem. É o seu corpo cansando dos hormônios. Já então pensava em ter um filho.
Marcelo ainda brincava de emergir e submergir o sachê, pensativo.
Dois mil reais no vermelho. Em nove meses, talvez sejam mais de cinco mil. É preciso cortar gastos, evitar os juros dos bancos, os seus empréstimos imorais. Pode sim ser um hábito de família. Aqui é a nossa casa, não? Três quartos. Um quintal com grama e rede para deitar, talvez comprar uma luneta, ensinar à criança o que é vastidão.
março, 2018
Daniel Francoy (Ribeirão Preto/SP, 1979). Participou da coletânea 4 Poetas na Net (Lisboa: Sete Sílabas, 2002), do número 1 da Revista Literária Agio (Lisboa: Artefacto, 2011), da coletânea de poemas mixtape (Porto: doladoesquerdo, 2013) e, como colaborador do revista Enfermaria 6, do Caderno 2 (Lisboa: Fyodor Books, 2014) e Caderno 3 (Lisboa: Fyodor Books, 2015). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Mallarmargens, Parênteses e Escamandro e colaborou com o jornal literário RelevO. Publicou Em Cidade Estranha/Retratos de Mulheres (Lisboa: Editora Artefacto, 2010), Calendário (Lisboa: Editora Artefacto, 2015), e Identidade (Bragança Paulista: Editora Urutau, 2016. 3º lugar, Prêmio Jabuti, 59ª Edição, categoria poesia).
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