ADÉLIA DE CASTRO
NA IGREJA DA GRAÇA
Para Carlos Calliga
Aprendi a esperar algumas coisas:
amigos, certos livros, boas chuvas,
a luz dentro do tempo nas manhãs,
o seu corpo sonhando no meu colo,
os versos invisíveis mais à mão,
a passagem das horas descabidas
em que as harpias seculares guincham
meu nome de batismo como cúmplice.
Aos pés da espera, sentam-se as idades
e a paciência é fruto de outra espera,
tendo o silêncio como ouvinte único.
E cai o gota a gota dos segundos
no olho do real com mais doçura
e entendo que esperar sustenta o mundo.
23 –
Na rua São Luiz, na Barra,
a sombra paira antes da hora,
começa pelas grandes copas:
felinamente esconde as garras,
mas a surpresa do seu golpe
(borracha e pano num martelo
de baque surdo tão austero!)
vai deslizar n’outro suporte:
filtrado em cinza, que a luz sopra,
se adensa e acama na ladeira,
traz no seu bojo velhas perdas,
sua cegueira possui rota.
A tarde muda de plumagem,
as aves buscam seus atalhos,
a vida põe rotos sapatos
de quem andou nas duas margens.
A luz do poste (antes da hora)
resseca os galhos do São João;
o verde escuro rememora
seus ancestrais de um tempo bom?
Surdas cigarras explodindo
feito guitarras distorcidas,
súbitas cortam (é domingo)
o fio elétrico da vida.
Um intervalo se aproxima,
aquele gris, mortiço e medo,
os cães calados, céu-morfina —
os meus fantasmas vão de preto.
A noite espera esse intervalo.
Tateio farpas nos meus ermos,
e, lá embaixo, muitos carros —
sombra no chão, faróis acesos.
PRIMEIRO ARCO
Podia ser pior
e não ter nem nascido.
E desde já eu agradeço
essa beleza pobre,
o requinte rústico, o calor infernal,
e a ausência de bibliotecas.
Se bem pesado,
adquiri um realismo inútil,
bicho que disfarça seus caninos
para menos ferir.
E de que me serviu o São Francisco?
Imagem num postal,
metáfora de rio,
e a fome perigosa dos mergulhos.
Mais de trezentas romarias e esta fé que titubeia
(aí, a culpa é minha).
E esse menino contínuo, não cede
e, às vezes, extrapola
com ruas poeirentas, caieiras, olarias, campinhos.
Seu excesso de luz que transforma
ou cega,
a depender.
E nem posso tirar daí minhas vergonhas,
alguns amores, que vitórias?, vícios —
como varrer do coração o coração?
9 –
A VENDA POR DENTRO
Serengas, peixeiras,
vianas e naifas,
facões, lambedeiras
— as lâminas várias;
pregos, parafusos,
quinas, estreitezas
— o roxo mais puro,
a dor mais espessa;
o chumbo de fita,
o chumbo de caça
— o peso da vida,
o grão na garrafa;
os sacos de estopa,
as tais aniagens —
a mais suja estofa
serve de bagagem;
lata de eletrodo
e lata de tinta,
vassouras e rodos
— falta coisa ainda:
no baú de tampa,
açúcar, arroz,
feijão, a sustância
que só vem depois;
volumes, texturas,
cores, formas, cheiros —
nesse caos que açula
o pai é o ordeiro;
nesse labirinto,
a vida a varejo,
a Casa Bahiana
desse João Galego;
os tais viajantes,
suas promissórias,
o dever de ontem
vou saldar agora;
enxada, estrovenga,
pá, grosas e plainas,
as chaves de fenda,
verrumas, chibancas;
espátulas, tornos,
formões, discos, cintas,
cincerros, gangôlos
— falta coisa ainda:
foices, roçadeiras,
mata-pastos, lixas
— em dias de feira
o freguês capricha;
via de mão dupla —
toma lá, dá cá,
o freguês tem culpa?
E quem não terá?
Breu, painço, alpiste,
pacotes, sacolas,
os vários calibres
da mesma bitola;
cartucho, espoleta
(chamada de escorva),
da cinza e da preta
os tipos de pólvoras;
coloratos, bombas,
nitroglicerina,
dinamite assombra
— falta coisa ainda:
grifos, alicates,
torqueses e puas,
mas qual é a chave
da porta da rua?
o mundo das cordas,
nylons, piaçavas,
zinco pesa e corta
a mão destreinada;
anzóis, garateia,
o mundo das linhas,
pequena epopeia
da Venda e da Língua;
segunda a segunda,
domingo não falha,
o balcão circunda
nossa vida e fala;
balança: o ouro a fio,
o metro que finda,
serrotes, barril
— falta coisa ainda.
CANÇÃO DE JOÃO
Lá vai joão-ninguém,
lá vem joão-sem-braço.
Da vida refém?
Da morte colaço?
Lá vem joão-sem-nome,
lá vai joão-das-quedas.
No próprio abdome
o nada se hospeda.
Lá vai joão-sem-grana,
lá vem joão-das-botas.
Da palma dimana
a velha derrota.
Lá vem joão-de-joão,
lá vai joão-sem-fim,
compõe seu brasão
paládio e capim.
3 –
AVÔ
Da viagem
de quase um século
na nave sem retorno,
não mais o gesto agreste,
o rosto ossudo é doce,
véspera de término
ou como se fosse.
A fala campestre
entre maca, agulhas e soro
desadormece
em sua atmosfera total
minha infância-tesouro
6 –
Branco de nuvem
bastasse
Gota neste plexo
nutrisse
Luz de pólen
acendesse
Que essa escassez
antiavara,
síntese que amplia,
translumbrasse-nos
14 –
Para Zeca de Magalhães, novamente
Duas vezes o vi
antielétrico:
triste pelos seus
noite em febre
A estampa em que aparece
súbito
é tão dorida
que sem querer
escapa uma prece
E, olhe, não foi ontem
o féretro,
nasceram uns
padeci amores
endereços outros
Na tarde,
o rosto cavo
é ausência palpável,
intento estéril
eu sei
é demonstrá-lo
Não há riso que amenize
a solidão definitiva
— adeus de novo
clown magrelo
16 –
Não há pieguice na falta
nenhuma dramaticidade patética
Midas inverso
tudo o que toco
empobrece
Estranha colheita
a da ausência:
trigo que queima
sem chama
Naqueles dias
(apesar do entorno ríspido):
verde esmeralda
azul topázio
amarelo limão
cantavam
Tua incisão delícia
no frescor dos começos
naqueles dias
34 –
Para Flávia Aninger
as fragilidades sustentam o mundo
o menos que frêmito
entre o ser
e o seu fracasso
o sol é um ponto de luz
no olho do canário
a amêndoa ao cair
equilibra o espaço
APRENDER PELAS ARESTAS
Amar o que no corpo é inconstância
— a árdua aprendizagem das arestas;
o que fica depois que nada canta,
ou canta numa clave mais modesta.
Depois dessas esplêndidas guirlandas,
que o corpo nos enreda numa festa;
a dança começada após a dança;
além da cama, o corpo sem promessa.
A luz envelhecendo em Alessandra,
presença que não cessa quando cessa;
amar o que no corpo também cansa,
o que depois do corpo ainda resta.
AFFONSO MANTA FALA A
ALBERTO LUIZ BARAÚNA
Para a professora Ligia Teles
Caminhando seremos. Ser é caminhar
— em viagens imóveis, cordilheiras,
todas as vidas são vidas inteiras,
que escapam sem regresso pelo ar.
Porque nasceram para isso: retornar.
Sigamos. Cada passo é um passo à beira
do que nos funda e finda de primeira
— as praias desvendadas pelo mar.
Esperando seremos. Ser é esperar:
nos vagões que nos restam de terceira,
no fluxo dessas noites passageiras,
insones e cansadas de passar.
março, 2018
João Filho nasceu em 1975, em Bom Jesus da Lapa/BA. Participou de algumas antologias de contos, dentre elas, Terriblemente felices. Nueva narrativa brasileña (Argentina: Emecé Editores, 2007); 90-00: cuentos brasileños contemporâneos (Peru: Ediciones Copé, 2009); Geração Zero Zero, fricções em rede (Brasil: Língua Geral, 2011); Popcorn unterm Zuckerhut (Alemanha: Verlag Klaus Wagenbach, 2013). Publicou Encarniçado (contos, Editora Baleia, 2004); Ao longo da linha amarela (contos, P55 Edições, 2009); A dimensão necessária (poesia, Mondrongo, 2014 - Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca Nacional); Dicionário amoroso de Salvador (crônicas, Casarão do Verbo, 2014); Auto da Romaria (poesia, Mondrongo, 2017); Auto do São Francisco (teatro, Kelps, 2017).
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