CIDADEZINHA QUALQUER (NUNCA MAIS REVISITADA)
Adeus à terra
onde se põem
salto alto
prótese nos seios
lente de contato
e se alisa o cabelo
e se passa batom
e se pintam as unhas
da cor do vestido
apenas para levar
o lixo para fora
CONTORCIONISMO
Já caibo numa
Caixa de sapato
Mas o que eu queria mesmo
Era ser trapezista
TIMBUKTU
Escorre o sal pela ampulheta.
O cão e eu contemplamos
a paisagem
para onde iremos um dia.
Um dia sairemos desta casa
eu e o cão, que,
pelo contágio,
ficou doente.
Recolhi-me com ele no fim do mundo
depois de ter espalhado o escuro.
Eu e cão
que só emerge de dentro de sua carcaça
quando atraído pela luz.
Ele e eu atravessaremos o deserto
rumo à fonte de fogo
onde outrora
do sal, do barro e do pó
se ergueu um mundo.
Para lá iremos
quando a peste acabar.
MORTE DE MARIA DEODORINA
As imagens antigas se misturam às palavras que vieram depois
num livro desencadernado que trago na cabeça há anos,
desde que num certo verão fiz pela primeira vez sozinha a longa travessia
e suas páginas foram durante muito tempo a única companhia
que de vontade própria escolhi.
Desconheço enredo, trama, entrecho.
Não me importam senão as palavras dispersas
cujos significados me escapam:
"exclamei me doendo",
"meu de natureza igual",
"eu não sabia por que nome chamar".
Um homem se fazendo homem
quando já era tarde,
beijando olhos,
acariciando cabelos cortados rente com uma tesoura de prata,
suas lágrimas lavando um cadáver para afogar a memória.
As imagens, anteriores às palavras,
eram ainda mais confusas aos meus olhos novos,
mas não menos imantadas.
Por algum motivo que não lembro
— talvez o acidente que nos quebrou a todos —
eu podia ficar acordada até o programa acabar.
Desconheço enredo, trama, entrecho.
Só recordo que o corpo da mulher
oferecido inútil em sacrifício
jazia num altar e brilhava todo no seu fim,
nos olhos velhos do homem,
e que era tarde,
muito tarde.
Eu, que também não pude ser a mulher que devia,
combatendo como estava em outra guerra,
descobri menina que o amor morava numa tela luminosa de TV.
JANE BOWLES
Não cortará os cabelos e os laços por Diego
Não irá para o hospício por Auguste
Não se matará com gás por Ted
O máximo que faria
Era se mudar para Tânger
MUSHIN
Quando não há mais sujeito e objeto
como saber se aquele que mata
não é o mesmo que é morto?
OFÉLIA
Assim me preparei
para o que viria:
a maior parte da vida gasta
em manter a cabeça
fora da água.
No ar
qualquer mudança no curso da borboleta
me derrubava.
Tinha ossos frágeis
e veias se viam
de meu pulso fraco.
Não sabia que teria de respirar sob a água.
Depois de tanto ter medo
(as pontas dos dedos se enrugam)
agora reino sobre Atlântida.
*
MOVENDO-SE AFLITO pela sala
O cavalo selvagem derruba os quadros
E destrói os cristais
Com um coice
Ou um sacudir de cabeça
Impossível pôr-lhe arreio
Só o que podemos fazer
É abrir a porta
março, 2018
Leila Guenther publicou os livros Viagem a um deserto interior (Ateliê Editorial); O voo noturno das galinhas (Ateliê Editorial), traduzido para o espanhol (Borrador Editores) e editado em Portugal (Nova Delphi); e Este lado para cima (Sereia Ca(n)tadora, Revista Babel). Participou das antologias 50 versões de amor e prazer: 50 contos eróticos por 13 autoras brasileiras (Geração Editorial), Cusco, espejo de cosmografías: antología de relato iberoamericano (Ceques Editores), Outras ruminações: 75 poetas e a poesia de Donizete Galvão (Dobra Editorial), 70 Poemas para Adorno (Nova Delphi), entre outras. Escreve o blogue Na linha da vida.
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